domingo, 21 de março de 2010

BISPO COM QUIXOTE



A derrota do ser-no-mundo aos olhos de uns pode ser a vitória interior, ainda que travestida de desespero e dor. Liberdade que roça a loucura. Claro e escuro coabitando na mesma dimensão. A perseguição do enigma no lugar primeiro. O real arrancado todo dia a fórceps. O avesso do avesso do avesso. A confiança no paradoxo da duração do efêmero: quanto mais escapa, mais dele se tem certeza. É justo na escuridão que surge a luz. Quanto mais turvo, mais chance de verdadeiro.

Assim foi com Arthur Bispo do Rosário, alguém que mais do que na psicose jogado foi no abismo do espaço asilar, só restando a expressão pré-verbal através da linguagem das formas, das cores, das texturas. Sem mediação da letra, ou melhor dizendo, inscrevendo-se ele próprio como (música e) letra de seu auto-processo criativo. Fez arte com o tremor do pensamento. Criando, ele se produziu. De fantasmas que habitavam os porões da mente, como imagens que surgem de sombras na parede. Aí restava a possibilidade de sua ressurreição como sujeito, imprimindo seu traço, sua marca, através de bordados feitos com linhas esfiapadas do uniforme da instituição e de objetos de uso cotidiano alçados a categoria de instrumentos.

Diz-se que toda obra de arte resguarda um nonsense, bordando em suas bordas, margens, litorais a instauração da verdade pela eclosão do ente desvelado, o além do saber, o que transcende e aponta para o indizível, para o impossível, para o limite. Nesse caso, literalmente. “Como é que eu devo fazer um muro nos fundos da minha casa?” estava escrito ao lado de expressivo monte de cacos de vidro em cima de um muro. Seria suplência à falta da barreira primordial, a castração? É a óbvia associação, mas só uma hipótese, nada de analisá-lo via seus trabalhos. The meaning of the meaning tão procurado nos escapa quando se fala de arte. Ela já é o decodificar – mesmo cifrado – do saber inconsciente que a constitui. Resto de um despertar (mesmo que incipiente aqui). Tentativa de elaboração de novo enunciado. Percurso em torno de um lugar cavado para fora da simbolização.

Talvez ele tenha falhado – embora com brilhantismo tentado – em dar sentido (senso), já que ficou no censo, no cálculo, contando, “fazendo o inventário do mundo antes de se apresentar a Deus”, como evidenciam muitos dos objetos seriados manufaturados . Sua obra, de reconhecimento internacional, aponta para uma travessia, porém não completada. Cabe a quem a vê escutá-la, ouvir esse silêncio e o grito que ela promove.



E Quixote com isso? A obra de Cervantes se funda sobre o poder revolucionário do livro, da leitura, da literatura. Da litura, essa rasura feita nas palavras para descaracterizá-las, deformá-las, deixá-las livres para que o sentido dê quem as lê. Fracassa a leitura enquanto compreensão, só fica a ranhura sem sentido, como Joyce, que Lacan dizia para ser lido e não entendido. Menos consenso, menos verdades, logo, mais verdade. Enigmático, mas revelador. Revela-a-dor. The viewers are those who make the painting (Duchamp). O artista desfaz o sentido ou finge desfazê-lo para que o público o reconstrua a seu modo particular, único, diferenciado – daí se dizer que a obra de arte “funciona como analista”.

O fidalgo Quixote, leitor inveterado e identificado com os heróis dos romances que lia, parte despreparado para a batalha, da ficção para a realidade. Quando se dá mal, amigos Fahrenheit bem intencionados queimam seus livros para poupá-lo de adversidades (e aventuras!) futuras, culpando-os por seu excesso de imaginação. No entanto, em vão: ele já tinha sido inoculado por esse vírus (como se o homem precisasse disso ou daquilo para voar, para guerrear! Aliás, Navios de Guerra é o nome de outra produção de Bispo, feita de madeira, plástico, tecido e linha. E pulsões).

Quixote encarna o herói que crê nas pessoas a despeito de zombarias, traições, decepções, golpes sofridos. Estaria aí sua loucura?





Ana Guimarães