domingo, 1 de maio de 2011

NOME DO PAI

Um pai – disse Stephen, batalhando contra a desesperança – é um mal necessário.
(Joyce - Ulisses)

Em que a arte pode desmanchar o que se impõe pelo sintoma?
(Lacan - Seminário James Joyce, o Sintoma)

Não me falte, senão enlouqueço. Preciso de um corte. De barreira que me segure. De fronteira, pra cruzar. Limite, pra transgredir. Regra, pra fazer exceção. Necessito de um nó pra me sustentar, do contrário descosturo. De um ponto de basta pra por termo a tanto revirão. De lei, que determina o desejo: foi proibido, eu quero. Dela me sirvo pra não ficar à deriva. Minha âncora, quando desgarrado.
Deixo-me interrogar, uma vez que a ignorância tem um preço e é alto. Entrego-me a essa dolor, douleur, pain. Ela resulta de estímulos pulsionais que irrompem na mente, atestando o fracasso das instâncias protetoras, só isso. Tudo isso, quando dói, e é quase sempre. Dor também é desafio, em espanhol: duelo, derivado do latim: duelum. Se parece que não agüentamos mais é porque aí está quente, estamos perto de algo que nos concerne, de um lugar sensível qualquer, nevrálgico, ali onde o Real nos reclama se lhe damos dignidade de chamada e ousamos responder. Se assim não for ele fica solto, e com o imaginário longe periga correr fora do enlace da palavra. Sem sutura. Sem sentido.
Você não veio, eu escrevo. Produzo meu próprio nome. Teço ali onde o tecido está esgarçado, cirzo. As linhas arrancadas da carne, feito Bispo do Rosário que desfazia o uniforme para com os fios coser o seu manto. Estou nu. Despi um santo ego para vestir outro, de autor, pois apontar toda a verdade não equivale a bem dizê-la, como se pensa, ao contrário, dessa forma ela está mal dita. Maldita! Ela tem que ser parcial para ser bem-dita, senão é o caos, suporto até certo ponto, a partir daí me desestruturo.
Éramos bestas, e a evolução (o sopro divino) – com a dádiva da construção do pensamento e seu corolário, a linguagem – nos humanizou. Resta, porém, um gap entre enunciado e enunciação. Penso, "logro sou" é a crítica ao cogito de Descartes, esse engano. Somos sujeitos letrados, mas a letra é quem nos soletra. Tive que traçar muita leitura pra saber, ao menos, quem não sou. Quem sou sigo (des)cobrindo pela vida afora, cada texto re-vela (vela de novo) minha identidade, ao mesmo tempo em que a expõe, em diferentes escritas de imagem. Num constante endereçamento a um outro ausente, faltoso, ainda que presente.
Escrevim. Vim, vi e escrevi. Só assim venci: através da literatura, artifício que compensa aquela falha, suplência à falta do nome-do-pai, ao seu rateio. Trançado graças ao qual não sucumbo. Um achado, onde me encontro e me autor’izo por mim mesmo. Laço finalmente dado. Simbolização alcançada ainda que tardia e fadada ao insucesso, já que escrever é um ato impossível. O que não impede que se continue tentando, como Beckett: Fail. Fail again. Fail better.

Ana Guimarães

Texto já publicado em: http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=2506