terça-feira, 23 de julho de 2019

Gradiva

GRADIVA*

Sem precisar estar em Pompéia
na cálida e sagrada hora dos espíritos
vemos seu espectro
(eu e um lagarto imaginário
que foge assustado
interrompendo o banho de sol
na escadaria)
breve aparição
borboletas-mensageiras do Hades
logo lhe chamam

resto só, diante de ruínas
externas e as minhas
a ouvir o pio sardônico de um corvo
não mais trinados de canários na gaiola
e um fiapo de razão me faz pensar:
alucinação
fantasma ao meio-dia
ou você em carne e osso?
(uma terceira via)

grito meu próprio nome
tentando acordar
desse sonho
sempre o amor como mosca
a zunir na cabeça da gente!

Gradiva sou eu, agora
aquela que avança
ainda que em direção ao passado
arqueóloga da mente
passo em revista as lembranças
na esperança
de assim continuarmos vivos
inútil paisagem
a visão real de um ramo de flores
fúnebres
logo interpreto como mau augúrio

*Uma releitura poética do estudo psicanalítico de Freud sobre a Gradiva de Jensen

Ana Guim

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Sete Vidas

SETE VIDAS

Quando a velhice nela se hospedou de vez com face de doença terminal, subjugando-a, anunciando a morte, Joana retornou à casa abandonada. Retirou a placa de vende-se. Tratou que se capinasse e replantasse o outrora vicejante jardim, que fosse logo iniciado o conserto e a pintura  da cerca de madeira e o tratamento das vigas de sustentação da varanda, cheias de cupim ou broca. Ah, quem dera pudéssemos fazer o mesmo com a gente, suspira, enquanto vê o técnico trabalhando, tomara tantas injeções quanto, sem resultado. Acabara desistindo, apesar das súplicas de seus familiares e médicos.

Sozinha, administrou a  troca  das lajotas do piso da sala, que o alto tráfego arranhara. Mandou raspar, emassar e pintar as bases das paredes perto do chão, cobertas de mofo por causa  da umidade do solo próximo à lagoa. Faxinar todos os cômodos. Abrir os armários para arejar. Expor colchões e travesseiros ao sol. A roupa a secar no varal, cheirando a limpeza. Ligou geladeira, freezer e os abasteceu. O forno e as quatro bocas do fogão acesas, muita comida, parecia que receberia convidados além dos que já trouxera: a saudade e as boas lembranças.

Mirando no espelho do fundo do corredor viu-se décadas atrás, jovem, feliz, saudável e rodeada de pessoas queridas. No silêncio da noite que avança, entre um grilo e outro, quase pode ouvir o passado feito ouvirá daqui a pouco sua oitava Bachiana, posando de maestrina como gostava, desde menina. Insana evocação, real como uma alucinação, praticamente podia vê-la, tocá-la. A casa sempre tão cheia, acabava faltando algo. Uma almofada do sofá  passava por travesseiro, uma colcha usada como cobertor, toalhas de rosto substituíam a de banho para um hóspede extra, bem-vindo em qualquer ocasião. 

E as noites dormidas lá fora, enrolada na rede, protegendo-se daquele ar frio que aparecia na madrugada e se despedia assim que o dia clareava para dar lugar ao soberano calor? Trilhas de formiga, que, com displicência acompanhara, nas raras tardes silenciosas. Flores que as crianças semearam (e vira ambas crescidas). Árvores frutificadas. Acordar com piados de filhotes de passarinho no ninho no telhado, logo acima do seu quarto. Muitas vezes deitada na grama, o livro deixado de lado, a observar o vôo baixo do gavião, o saltitar do bem-te-vi na beirada do muro, os rasantes do nervoso beija-flor.

Se um gênio da lâmpada aparecesse agora, seu único pedido seria viver tudo de novo, igual a um filme que se rebobina. Até os episódios dramáticos, como o susto da filha mais velha com o pé sangrando, levada às pressas para o hospital para dar pontos (o médico que a atendeu era vizinho, e, de churrasco em churrasco, ganharam novos amigos). Ou quando a caçula se perdeu andando de bicicleta nas imediações e foi trazida sã e salva pelo filho do vigia do condomínio da rua ao lado, daí em diante seu inseparável companheiro de brincadeiras. Apenas dispensaria, se possível, o assalto à mão armada que sofreu num fim de tarde de domingo, o único na antes e depois calma região, praticado por rapazes de fora que ali vieram para um amistoso jogo de futebol. Roubaram o carro lotado com as malas cheias. Escapou ilesa, nenhum arranhão a não ser na alma, por muitos meses tivera pesadelos de repetição com os bandidos, tentando elaborar o trauma. 

Sua última viagem, sem volta. Sua última morada antes da derradeira. Aproveitaria, para recordar, se o tempo, generoso, permitisse, a vida plena que ali levara, a aceitar as atuais mazelas e o fim que breve viria. Fizera por ela o que não mais podia fazer por si mesma. Reformada, consertada, bem cuidada assim, outras sete vidas viveria. Seus alicerces eram bons, sólidos, sobrevivera às intempéries, à violência. Joana não, encaminhava-se para a demolição interna espontânea. 


Mas foram dias suntuosos de linguagem. A divina, musical, e a dos homens, falando pelos cotovelos, pelos quatro cantos, da calçada ao quintal dos fundos, do nascer ao por do sol. A casa escutando, acolhendo. Herdeira de sons, de energia, e finalmente de seu corpo, servindo de pré-epitáfio. Encontraram-na caída, serena, um leve sorriso esboçado. Ao seu lado, olhar triste e zeloso de quem entendia e sentia mais do que ninguém, seu velho gato, rouco de tanto miar.

Ana Guimarães


sexta-feira, 5 de julho de 2019

Bispo com Quixote

BISPO com QUIXOTE

A derrota do ser no mundo aos olhos de uns pode ser a vitória interior, ainda que travestida de desespero e dor, liberdade que roça a demência. Claro e escuro coabitando na mesma dimensão. A perseguição do enigma no lugar primeiro. A confiança no paradoxo da duração do efêmero: quanto mais escapa, mais dele se tem certeza. Mais turvo, mais chance de verdadeiro. É justo nas trevas que pode surgir a luz. 


Assim foi com Arthur Bispo do Rosário, alguém que, além da psicose, jogado foi no abismo do manicômio, só restando sua expressão pré-verbal através da linguagem das formas, das cores, das texturas. Sem mediação da letra, ou melhor dizendo, inscrevendo-se ele próprio como (música e) letra de seu auto-processo criativo. Fez arte com o tremor do pensamento. Criando, ele se produziu, perambulando no pantanoso espaço delirante, repleto de fantasmas que habitavam os porões da sua mente, como formas que surgem de sombras na parede. 


Aí restava a possibilidade de sua ressurreição como sujeito, ao imprimir seu traço, sua marca nos bordados feitos com linhas esfiapadas do uniforme da instituição (é famoso o seu Manto da Apresentação, com o qual deveria estar vestido no Dia dia do Juízo Final) e no manuseio original de objetos de uso cotidiano, muitas vezes oriundos de sucata e até mesmo do lixo, alçados a categoria de instrumentos.


Diz-se que toda obra de arte guarda um nonsense, costura em suas bordas, margens, litorais o tecido da verdade pela eclosão do ente desvelado, o que transcende e aponta para o indizível, para o impossível, para o limite. “Como é que eu devo fazer um muro no fundo da minha casa” estava escrito ao lado de sua expressiva produção, um monte de cacos de vidro. Mas o 'the meaning of the meaning" tão procurado nos escapa quando se fala de arte, ela já é o decodificar, mesmo cifrado, do saber inconsciente que a constitui. O trabalho como resto de um despertar, mesmo que incipiente, tentativa de elaboração de um novo enunciado, um percurso em torno desse lugar cavado fora da simbolização. 


Talvez ele tenha falhado, embora com brilhantismo tentado, em dar sentido (senso), já que ficou no censo, no cálculo, contando, “fazendo o inventário do mundo antes de se apresentar a Deus”, como evidenciam as peças seriadas de algumas de suas composições. Sua obra, de reconhecimento internacional (acabou sendo consagrado pintor, escultor e artista visual, homenageado por uma escola de samba, em 2018, com o enredo O rei que bordou o mundo, teve exposições no Museu Victoria & Albert, em Londres e numa Bienal de Veneza) aponta para uma travessia, porém não completada. Cabe a quem a vê senti-la, escutá-la, ouvir o silêncio, e, paradoxalmente, o grito que promove.


E Dom Quixote com isso? Cervantes instaura ali o poder revolucionário da literatura. Da litura, a rasura feita nas palavras para descaracterizá-las, deformá-las, deixá-las livres para que o sentido dê quem as lê. Fracassa a leitura enquanto compreensão, fica só a ranhura sem sentido, como Joyce, que Lacan dizia para ser lido e não, necessariamente, entendido. Enigmático, mas revelador. Revela-a-dor. The viewers are those who make the painting (Duchamp, vanguardista com quem Bispo chegou a ser comparado). O artista desfaz o sentido ou finge desfazê-lo para que o público o reconstrua a seu modo, particular, único, diferenciado, daí se dizer que a autêntica obra de arte “funciona" como analista ou como teste projetivo. 


O protagonista, o fidalgo Quixote, leitor inveterado e identificado com os heróis dos romances que tanto leu até perder o juízo, resolve, já em idade avançada, tornar-se cavaleiro andante e partir, despreparado, da ficção para a realidade, para viver seu próprio romance de cavalaria. Quando se dá mal, a sobrinha, Fahrenheit bem intencionada, queima-os todos, culpando-os por seu excesso de imaginação, para tentar assim devolver sanidade ao tio. Em vão, ele já havia sido inoculado por esse vírus. Como se o homem precisasse disso ou daquilo para fantasiar, voar, navegar, guerrear. Aliás, Navios de Guerra é o nome de outro projeto de Bispo, feito de madeira, plástico, tecido e linha. Quixote encarna o herói que crê nas pessoas a despeito de zombarias, decepções, golpes sofridos. Estaria aí sua loucura?                                                                                      

Ana Guimarães  

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Crônica sobre crônica


Crônica sobre crônica
Folheava, para me desfazer de uma pilha deles porque não tenho mais lugar para livros novos na minha estante, Dias de cachorro louco, de Edney Silvestre. Encontro, logo no início, uma expressão deliciosa da qual não me lembrava ter lido: “... dois candelabros de prata inglesa, estilo maria-alguma coisa”. Identifico-me (de novo, provavelmente) de cara, com o autor, e recomeço a saborear uma encantadora crônica. 
Ele fala de maravilhas encontradas sem garimpo ou sequer descuidada busca. Cá pra nós, Edney, quanto mais vivo mais me convenço de que os verdadeiros tesouros são assim, achados. Nada que se vasculhe muito, que se tenha de batalhar. Nada que se tente. Esse verbo, então, está definitivamente riscado da minha vida. Não quero tentar mais nada, ou faço ou não faço. Ou acontece, ou não. Chega de tentativas. Como disse Picasso: eu não procuro, acho. Ele, e toda a torcida do Flamengo. Só acha quando não procura. Pode até procurar, mas saiba que vai encontrar é outra coisa que não estava no programa. Aí ok, siga em frente. 
O mundo, e não só as ruas de Manhattan, como ele dizia, é uma imensa loja de departamentos a céu aberto, com produtos grátis (ou nem tanto, às vezes você vai pagar um preço, mesmo que não seja em espécie, e talvez esse seja o mais caro, fique sabendo) que vão passando pelo seu nariz. É só pegar o que lhe interessa, o que lhe serve, do que você precisa. O que não presta mais para alguém, ou nunca prestou, pode lhe cair sob medida, quem entende o desejo?Continuando a crônica, ele diz que lá, com os preços de serviços e transportes altíssimos, fica mais barato para alguém que se muda, de bairro, de cidade, de estado (e se muda muitíssimo) comprar tudo novo e largar o usado no meio da rua. Não deixa de ser uma forma de distribuição de renda. Se emocionalmente fôssemos assim, tão desprendidos, talvez as coisas fluíssem melhor. Abandonar algo velho para trás, dar oportunidade ao desconhecido. Perder para ganhar. Fazer circular o desejo. A gente circular. Deixar de orbitar em torno de alguém ou alguma coisa. Mudar de paradigma.

Ana Guimarães