sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Twittando

Ser-me-ia grato empregar toda a minha vida em viagens se alguém me pudesse emprestar uma segunda vida para passar em casa.
William Hazlitt

sábado, 8 de agosto de 2009

AGO



– Morro alto, morro grande, me conte o teu padecer.
– Pra baixo de mim, não olho; pra cima não posso ver...
(Contracanção. Peça pseudofolclórica)

O Recado do Morro (Guimarães Rosa)


Quer ver a view? Punha ele no colo e, em silêncio, ficávamos na varanda a apreciar o contorno do horizonte (a pedra da Gávea ao longe, o Cristo, bem perto, o Dona Marta, à meia-distância), a acompanhar o movimento da rua, dos prédios vizinhos, o vôo dos pardais de dia, ou, à noite, morcegos passando raspando. Parecia gostar de aspirar a fria brisa com cheiro de maresia que eriçava seu pelo. Aí então suspirava, estremecendo todo o corpinho, como se, só então, relaxasse. Viu?
Às vezes, rastreava tudo ao redor, esboçando ganidos, olhar curioso, por longo tempo. Depois, virava-se pra mim, carinha e focinho de quem não está entendendo nada. Nem eu, querido, console-se. Não me encare de forma interrogativa. Pergunte aos morros qual o recado, quem sabe algum responde?
Noutras, dava uma geral e já desistia, enterrava a cabeça no meu peito pedindo proteção, recusando-se a ver a cena, parecia ter fobia de altura. Como censurá-lo, diante da atual estatura dos fatos, do nosso fado, dessa maldita sina?
De volta ao chão, as patinhas no vidro, era capaz de ali ficar horas (embora conferindo, de quando em quando, a minha presença), enquanto eu lia paisagens que alguém descrevera, abismos inventados que provocam reais tonteiras, fingidas dores que deveras sentimos, um corpo de baile conhecido apenas na hora do espetáculo.
Pecocinho, baiguinha: mal ouvia esse tatibitate canto soletrado, logo se deitava de costas, desarmado, dengoso, pra ganhar carinho. Ainda bebê, inventamos outra brincadeira: "A pulguinha vinha". Com o dedo médio e o indicador, simulava uma caminhada no chão. Ele corria a mordiscar o que teria ali, escondido. Nada. Nunca se tem nada, breve aprenderíamos. Tudo ilusão.
À medida que crescia, o reflexo e a força da resposta aumentavam. A pulguinha... Ele, rápido, me alcançava. A pulg... Mordia pra valer. Essa pulguinha não pode mais passear em paz, que você ataca, Ago! Seus afiados dentes começavam a machucar, a me ferir. Ai, doeu! Ele diminuía a intensidade da mordida no ato. Lambia, lambia (sua forma de beijar, se desculpando). Eu ria, e ele, em um segundo, reavaliava a situação e, imediatamente, voltava a brincar.
Maltês nascido branco carneirinho, manchas marron-sangue-pisado surgiram e começaram a se alastrar, debaixo dos olhos. O veterinário sentenciou: lágrimas ácidas, o nome do fenômeno. Claro, fosse a vida doce, nossas lágrimas também seriam. Do muito chorar (além do pouco dormir), grandes olheiras escuras me apareceram. Onde andará meu minino-galoto? Que admirável mundo novo estará vendo, agora, da janela?

Ana Guimarães

quinta-feira, 30 de julho de 2009

JUSTINE




JUSTINE

Aquela cadela era o cão
Quem ela pensava que era, uma dama?
Subia na minha cama como se fosse dona. Nunca uma cortesã
Mais parecia uma gata que sabe de seus direitos e a todos encanta, no salão
Olhava-me como se soubesse quem sou: o que será que ela via?
Obedecia-me. Eu era o patrão, ela a manda-chuva
Nos dias de sol: raios e trovoadas, ela só aprontando
Corria sobre o canteiro de rosas: um estrago e tanto
Subia no varal: pegadas por toda a roupa. Deixava a empregada louca
Mas era só eu falar chega, acabou, e ela ficava quietinha
Às vezes saltava sobre mim, latindo feito fera
Tomava meu pulso entre os dentes, pura ameaça, todo mundo olhando
Não era nada, uma palavra minha e acabou a brincadeira
E quando eu saía? Gemia, era patético, porque quase humano. Via-se que sofria
O focinho tremia, pequenos ganidos produzia, quase fonemas
Pode-se dizer que ela tinha a linguagem, ao menos os esforços para expressá-la
Mesmo que só nas horas de intensidade emocional
(sua vantagem sobre certos humanos: não falava o tempo todo, à toa)
Ao lado da mesa ficava, sempre, à espera de migalhas, restos da refeição
Não que estivesse faminta, tinha a sua ração
Para se sentir parte da família, em comunhão
Um dia a perdi. Ganhei um luto que jamais tirei, por dentro
Vista azul, amarelo ou branco
É sempre preto

Ana Guimarães

sábado, 25 de julho de 2009

A QUEDA


De Lúcifer à maçã de Newton
tudo cai
mas também se levanta
a ressurreição é líquida
e certa
(não fosse a vida um riverrum)
circularidade é a regra
morte e despertar
fin
e
wake:
em filhos
árvores
e livros
o que foi um dia
é
real e sonho
real é o sonho
Ana Guimarães

domingo, 12 de julho de 2009

AMOR À LÍNGUA



Eu a amo tanto que
às vezes, me espanto
fico muda, de respeito

como a verdade
ela jamais se desnuda
toda

com agulhas de dor
e fios de ausência
teço seu enxoval

embora não seja parteira (e sim curiosa)
cuido que renasça
sempre

parto a palavra e embarco
sem medo de que alguém (ela ou eu)
seja náufrago, vá à pique

porque partida, ela é mais inteira
escrita, mais próxima da falha do que falada
vazia, plena de possíveis sentidos
solta, prende e apreende melhor
a coisa

nessa alquimia verbal
não procuro nem acho, transmuto
abro caminhos
e invento meu ponto de estofo
gozo inter-dito

Ana Guimarães



segunda-feira, 6 de julho de 2009

CRÔNICAS DE VIAGEM


Tenho a grata satisfação de comunicar que minhas recentes crônicas de viagem intituladas Europa, Primavera 2009, saíram - todas! - publicadas no novo número da Germina revista de literatura e arte, vejam aqui:

http://germinaliteratura.com.br/2009/cronica_jun2009_anaguimaraes.htm

quarta-feira, 1 de julho de 2009

LITERATURA-SERTÃO


É com imenso prazer que comunico minha estréia na Revista Diversos Afins, com o texto LITERATURA-SERTÃO:




domingo, 28 de junho de 2009

BESTIÁRIO - A BESTA



O homem solitário é uma besta (Aristóteles)

Trata-se de um quadrúpede híbrido de jumento com égua ou de cavalo com jumenta. Ao contrário do que se imagina não é estéril, pois o que mais se observa, na atualidade, é que se reproduzem como nunca. Diga-me com que besta andas e dir-te-ei em que besta te tornarás, pois bestas fatalmente bestificam os amigos.
Sua sexualidade é bestial, grosseira, repugnante, degradada e degradante para os pobres dos animais com os quais pratica atos libidinosos. Obesa, aumenta seu perímetro de bestice: vira besta quadrada.
Além de estúpida e grosseira, toda besta que se preza é pretensiosa, soberba, pedante e arrogante, nenhuma rendilha parece subjugá-la. Alguns artistas parecem se encaixar nessa categoria, tamanho o ego.
A lenda da besta fera, muito comum no Brasil rural, diz que ela é a mais terrível das criaturas, um ser fantástico, metade homem, metade cavalo (sagitarianos, como eu, tomem cuidado, mais cedo ou mais tarde nela podem se metamorfosear).
Uma besta de carga só faz besteira: leva malas contendo dinheiro público ilegal, transporta dólares na cueca, saquinhos de droga no estômago ou explosivos amarrados ao corpo. Às vezes troca o nome – e até a categoria gramatical – para laranja. Noutras, transmuta-se em carro – se é que aquilo é um carro – usado como transporte público ilegal, comercializado de uma classe de bestas para outra que não se importa de viajar sem um mínimo de segurança.
Na política, costuma ter a faculdade da bestialogia, ou seja, proferir discursos asneirentos, disparatados, sem pé nem cabeça.
Adoram vestir uniformes: militar e religioso (os dois pilares do mundo, os dois podres poderes) são os campos de atuação, por excelência, das bestas. Sob a égide de qualquer instituição chegam ao paroxismo do radicalismo e da intolerância.
Antigamente, disparavam flechas. Hoje em dia, disparam balas perdidas. Ou pitbuls. Se gladiador, chamava-se bestiário, lutando no circo com as feras, todas, certamente, belas e menos selvagens que ele.
Quando de nacionalidade portuguesa vivem numa parte da Serra do Caramulo, a Serra dos Besteiros (ah, ah, te peguei, leitor! Pensavas, preconceituosamente, que eu ia escrever algo politicamente incorreto? Nem morta, até porque amo, respeito e admiro os portugueses, de quem, aliás, descendo).
No texto Apocalipse, da Bíblia, é um representante do dragão que, por sua vez, seria uma metáfora para satanás. Numa outra leitura é reconhecida como sendo o falso profeta, aquele que convoca todos a adorar aquela primeira besta, a viver a serviço dela.
Seus músculos cardíacos também não são utilizados tanto quanto sua massa cinzenta: nem coração, nem mente. Certas paixões humanizariam esse animal, mas ele não quer saber, foge das emoções como o diabo da cruz, bestificando-se através de drogas estupefacientes. Vira sombra humana deformada, mera caricatura. Zumbi. Morto-vivo.
O número da besta, pra quem deseja jogar, é 666.
Ê vida besta!, como diria o Drummond.


Ana Guimarães




domingo, 21 de junho de 2009

LÁGRIMAS e À DERIVA



LÁGRIMAS

Não me lembro mais de você
de sua figura
de seu rosto
só das suas lágrimas
profusas
banhando-o inteiro
tanto
que o pranto dissolveu
seus traços
seu cheiro
só não lavou minha alma
que
encharcada de ti
permanece
(como roupa molhada
sem sol)
e não esquece
Tentei vestir
outras sombras
outras vestes
mas nada tem o seu caimento
e sigo nua

Ana Guimarães

3º lugar no 1º Concurso de Poesias da Nova Literatura, realizado em abril de 2009
http://www.novaliteratura.com/visualizar.php?idt=1562452

À DERIVA

Nas tardes aveludadas de inverno
(sua estação preferida)
em águas luxuosas
onde a devassidão reina
você é leito que flutua
desancorado, à deriva
em confesso eretismo permanente
o desejo sempre roçando o interdito

Nesse cenário, sem destino
mais trilha, picada, que caminho
o amor é máquina de tortura

Ana Guimarães

2º lugar no 2º Concurso de Poesias da Nova literatura, realizado em maio de 2009

terça-feira, 16 de junho de 2009

BLOOMSDAY IN DUBLIN



O canto das gaivotas é ouvido do meu quarto, no hotel Blooms. Na verdade, por toda a parte. De qualquer ponto da cidade – estou em Dublin, assim nomeada porque a atravessa o Dubbh Linn (Lago Escuro, em irlandês), o rio Liffey, com suas águas escuras – posso vê-las fazendo acrobacias no céu, bem baixinho, num bailado circular cuja coreografia lembra os movimentos do marinheiro que Joyce pareceu ser a Nora, no seu deles primeiro encontro: aquele que vem e vai, que parte (e reparte, e fica com a melhor parte, pois tem arte), mas está sempre voltando. Ou volta, embora sempre partindo. Como a gente, à procura de terra firme, de um porto seguro, de uma calmaria ao menos, mesmo que quando com ela nos deparamos, assusta: prenúncio de tempestade.
Dezesseis de junho de dois mil e cinco. Do primeiro Bloomsday a gente nunca esquece. Existirão outros? Duvido, só mesmo as asas de um simpósio Joyce/Lacan para aqui me transportarem, que maravilha o Dublin Castle onde ele se realiza!
Percorro, passo a passo, os lugares mencionados nas andanças de Bloom naquele distante 1904, retratadas no Ulisses. Começo pelo banho de mar na minúscula praia (uma faixa de areia, na verdade) mais rochosa que do que qualquer outra coisa, de Sandycove Martello Tower, cheia de banhistas que se trocam à vontade, seus brancos bundões e melões de fora.
Adentro o museu JJ aí instalado e, depois de ver documentos, objetos pessoais, fotografias, primeiras edições dos livros, uma réplica de sua máscara mortuária, souvenires de todos os tipos, subo a estreita escada de pedra em caracol. Meus olhos lacrimejam, meu nariz funga, não só pelo pó que em tudo se deposita: deparo-me com o quarto onde Joyce viveu, ainda que por um breve período de tempo: a cama, a estátua de uma black panter, parece que estou vendo a famosa cena descrita no primeiro capítulo. Mais uns degraus e, no topo, uma estonteante vista da baía se abre em 360 graus. Para não sucumbir à emoção, utilizo-me desse artifício de afastamento e proteção contra a realidade: a câmera fotográfica.
A celebração continua como um festival, dizem-me. Toda a cidade é festa. Leituras e performances me esperam em cada esquina.
No JJ Centre mais taquicardia: uma belíssima casa do século XVIII abriga suas obras nas mais diversas línguas, e uma mostra de sua vida em vídeo, para aficionados que enchem a sala de silêncio e reverência. Eu, sempre tagarela, me calo também.
Na National Library uma exibição, com tecnologia multimídia interativa, de desenhos e manuscritos do escritor, ainda desconhecidos e recém-adquiridos (2002).
Uma visita guiada ao Clongowes Wood College, a escola jesuíta na qual ele estudou de 1888 a 1891, revela recantos onde aconteceram os conhecidos episódios do autobiográfico Retrato, com Stephen Dedalus.
Constatar que Joyce nunca será esquecido, ao contrário, para sempre lembrado, discutido, amado, não só por universitários que dele se ocuparão por séculos e séculos como ele próprio queria é um gozo extra: sua estátua quase na esquina de Earl Street North com O’Connell vive rodeada de irreverentes admiradores.
Fecho o dia (só escurece por volta de dez, dez e meia da noite) tomando uma Guiness no Davy Byrnes, o bar freqüentado por Joyce, lotado dentro e fora, mais parecendo o nosso baixo Gávea, aqui do Rio, com faceiras e corajosas moças usando chapéus a la Molly Bloom, em sua homenagem.
Trocando escuridão por luz é o título da exposição do Book of Kells, na Trinity College Library Dublin, um relato dos evangelhos criados pelos monges irlandeses do século IX, fartamente consultado por Joyce quando ainda muito jovem. Pudera. Aí vai um trecho que explica o porque:

Pángur Bán

Solemos yo y Pángur Bán, mi gato,
en lo mismo los dos pasar el rato:
cazar ratones es su diversión,
cazar más bien palabras mi passión.

Es preferible a todo aplauso humano
sentarse con papel y pluma en mano;
y Pángur no me mira con rencor,
siendo él también sencillo cazador.

Frecuentemente, um ratoncillo errante
cruza el camino de mi gato andante;
alguna idea más, frecuentemente,
coge en sus redes mi afilada mente.

Vigila el muro con sus ojos vivos,
redondos, maliciosos, agresivos;
escudriñando el muro del saber,
mi poca comprensión busco extender.

Dia tras dias, a Pángur su ejercicio
lo ha hecho ya perfecto en el oficio;
yo noche y dia alcanzo más verdad,
trocando en clara luz la oscuridad.

(Escrito en el siglo IX por un monje irlandes en St. Gallen, Suiza)

Pángur Ban

I and Pangur Bán my cat
`Tis a like task we are at:
Hunting mice is his delight,
Hunting words I sit all night.

Better far than praise of men
`This to sit with book and pen;
Pangur bears me no ill will
He too plies his simple skill

Oftentimes a mouse will stray
In the hero Pangur`s way;
Oftentimes my keen thought set
Takes a meaning in its net.

`Gainst the wall he sets his eye
Full and fierce and sharp and sly;
`Gainst the wall of knowledge I
All my little wisdom try.

Practice every day has made
Pangur perfect in his trade;
I get wisdom day and night
Turning darkness into light

(Written by a ninth-century Irish monk in St Gallen, Switzerland)

Ana Guimarães

quinta-feira, 11 de junho de 2009

DESCAMINHOS



... O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa... Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...

(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)


Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?

(Drummond, 1967, três dias após a morte de João Guimarães Rosa)

Não os conduziria por caminho algum que não fosse o do desejo e sua relação com a linguagem, é o único peixe que tenho para lhes vender. O saber é mera suposição que não se sustenta, o que não impede que avancemos um pouco em nossas questões. Inicio com uma de nebuloso semblante, já que a ficção – como o sonho – é tecida no inconsciente, esse bastidor da criação: Para quem o escritor escreve? Ele sabe do que se trata, desde o início? No fim, ao menos? Ou tudo o que ele tem em mente é que não pretende corresponder a expectativas, está se lixando para demandas, despreza aquela afirmação segundo a qual a leitura, para despertar interesse, tem que ser lúdica e prazerosa? (Os interesses do escritor e o do leitor jamais são os mesmos e se ocasionalmente chegam a coincidir, trata-se de mero acaso - W. H. Auden). E ainda, que está disposto a encarar a força da dissociação a que está submetido. Não se deve confundir, no entanto, ignorância primária com ausência de conhecimento, o que há é uma paixão de ser, a prevalência do (ainda) não articulado. Suas pegadas (sua “assinatura”) dirão mais dele do que ele próprio é capaz.

São íntimas as relações entre produção e endereçamento. Ambos estão no mesmo lugar; este último, o destinatário, é quem alavanca a primeira, no entanto, só podemos deduzi-lo pelos efeitos que provoca. Imprevisíveis, por sinal, mas bem melhores do que os colaterais de certos remédios que tomamos. Um escrito é o enlace de algo até então desatado, mudo. Representa a admirável ação do ser sobre si mesmo (Cortázar), a salvação de uma experiência perdida (Benjamim), para ser compartilhada, acrescenta Borges: seremos parte de um discurso que nos escreve enquanto pensamos redigi-lo? Associei ao seu O Livro de Areia, no qual o número de folhas é infinito, nenhuma é a primeira, nenhuma a última: apenas janelas que se abrem.

É possível hierarquizar as literaturas? Estabelecer valores sem cometer injustiças? Existem critérios únicos ou determinados? Um selo de garantia pode ser dado por uma minoria abalizada ou seria melhor assumir que não se tem pares, só se tem ímpares quando se é escritor? Fundamentar-se numa alteridade que dê mais consistência porque heterogênea? O que designaria, afinal, uma obra de arte? Tem pregnância visual a excelência de um texto? Já vai longe a época em que sua definição seria “poder sustentar encantamento”? As soluções estéticas teriam se esgotado, substituídas pela est’ética do bem-dizer? (Que, ao contrário do que parece, subsume o enfrentamento do não senso, do paradoxo)

Quando Alice (de Carroll), vendo uma mesa tão grande, posta para tantas pessoas, quer saber se a razão disto é porque é sempre hora do chá, o Chapeleiro responde: Sim, nós não temos tempo para lavar a louça nos intervalos (que, logicamente, não existem). E ela conclui: “Vocês vão mudando de lugar, eu suponho... Mas o que acontece quando vocês começam tudo de novo?” Então a Lebre de Março se intromete e diz: Suppose we change the subject (“suponha que nós trocamos o sujeito” e “mudemos de assunto, estou cheia desse chá maluco!”). Como se vê, atribui-se qualidade artística a um texto se ele se serve da língua para significar algo diferente do que ela habitualmente diz, não nos deixa aprisionados num comunicado qualquer, se ele não só aceita diversas leituras, mas resulta da intenção deliberada do autor que assim seja – isso é sabido e notório, página menos cinco, nunca démodé.

A capacidade de permitir sua releitura, sua reconstrução – parâmetro de peso – envolve, indiretamente, o conceito de morte do autor, entendido como pai, proprietário e guardião do sentido do texto, escondido, sempre a ser decifrado. Acontece que entre os romanos, auctor era aquele que aumentava o território: o general vencedor. A fonte da palavra já desfaz a premissa da originalidade na escrita: não passamos de involuntários “cut-upeiros”, só fazemos anexar escritos que conquistamos. Por isso Foucault nem teria, propriamente, discordado de Barthes: não morre porque nunca existiu, chega desse idealismo da criação individual a partir do nada. Resultando daí a mudança da idéia, referida agora como destruição de toda voz, procedência e identidade, restando a linguagem vista como potência, aquela que fica de pé sozinha.

Essa constatação não exclui o reconhecimento da passagem do autor por um texto, não mais senhor absoluto, ausenta-se de fato, mas s’obra (obrou, se obrou e finalmente sobrou), deixa marcas de um trabalho, institui-se como agente de um discurso. Se não há intenção de comunicar nada, também não há recusa de fazê-lo. Mito do espaço do autor ultrapassado, chegamos à outra ponta: o leitor. Seria ingenuidade e um erro considerá-lo tabula rasa: ninguém lê sem recordar, sem associar, sem transpor sua experiência para a leitura. É preciso que se dê alforria às letras, devolvê-las ao seu devir: de onde vieram, para onde vão: isso é problema delas. Aceitar o riverrun. Um texto, depois que nos abandona (a gente é que pensa que se livra dele) começa a azucrinar os outros, seus leitores. Mas o que milhões de sedentos estariam procurando? ... Aquilo que revela e ao mesmo tempo redime a desolação da vida ordinária (Henry James). Cazuzeando: um veneno antimonotonia.

Ana Guimarães


Texto já publicado no site Cronópios: http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=1198


domingo, 7 de junho de 2009

LIBERDADE, LIBERDADE



De que amanhã se trata? (Victor Hugo)

De três feridas narcísicas padecemos. Primeiro tivemos que reconhecer, graças a Copérnico, que a Terra não é o centro do universo. Depois veio Darwin, com a revelação: descendemos dos macacos. A terceira devemos a Freud e sua descoberta do inconsciente: não somos amos e senhores em nossa própria casa. Agora, um quarto golpe parece ter se abatido sobre a humanidade, especialmente sobre aqueles que fazem arte e literatura, deixando alguns senão desiludidos, perplexos, pois segundo um pensamento já dominante todos somos artistas e escritores se assim nos denominarmos,  autorizamo-nos por nós mesmos, não mais dependemos de critérios canônicos pré-estabelecidos para definir nossas produções. Se as Brillo Boxes de Warhol eram arte, e as caixas normais de palha de aço não, meros objetos utilitários, qualquer coisa poderia ser arte, não haveria nenhum modo especial de ser da obra de arte, concluiu, em entrevista à Folha, Arthur C. Danto, filósofo, crítico de arte. E à pergunta de Giovanna Bartucci (psicanalista, ensaísta) Literatura com ele maiúsculo ou com ele minúsculo? Silviano Santiago, assim respondeu: As duas, ou as três ou as cinco manifestações de literatura, porque há que levar em conta também os produtos artesanais, os da Internet e as mercadorias da grande indústria editorial. Vivemos uma época de inclusão... Finalmente o leque das possibilidades literárias foi aberto.

No princípio era o verbo. Não há nada que não seja linguagem. Não nos servimos dela, só existimos através dela e em seu cárcere somos prisioneiros. Vozes dos outros nos habitam desde sempre. É possível ignorá-las, refutá-las, rebatê-las? Delas desviar, depois de devidamente digeridas, cuspido seu bagaço, com ele construído uma singularidade? Se estamos vivendo um desbloqueio da noção de literatura (como Santiago disse, em A boa literatura incomoda) tanto que se fala mais em produção textual, também é certo que isso levanta um problema, o da qualidade (e enfatizá-la significa dar mais importância ao leitor do que ao consumidor): como reconhecê-la? Precisaríamos de um distanciamento histórico – que já se mostrou tantas vezes falho – para fazê-lo? Quem estaria apto a identificá-la? Os críticos? Os teóricos? Os professores? Tarimbados escritores de outras gerações?

Não há mais limites para o texto literário? Urge uma reflexão sobre o seu estatuto na atualidade? E qual o seu futuro? A herança, é possível desprezá-la? A literatura encontrar-se-ia em estado de crepúsculo? De desconstrução, como postulou Derrrida, desenvolvendo, a partir da célebre frase de Victor Hugo citada no início, o conceito de herança como escolha, filtragem, interpretação? Não como algo que se recebe pronto e acabado e sim com brechas onde se pode batalhar e desfazer os chamados momentos dogmáticos dos escritos anteriores. Tudo o que um verdadeiro mestre quer não é que o discípulo deixe de ser discípulo, o ultrapasse, o renegue, o esqueça? Também não se trata de dizer o que ainda não foi dito, é pouco, talvez uma bobagem que vínhamos repetindo, visto que a verdade não é um fruto que se encontra em algum lugar só esperando para ser colhido, ela é, como o sujeito, um efeito do discurso.

A pergunta “o que é literatura?” pode ser feita para se efetivar, a cada instante, uma resposta diferente. Escrever é não desistir, é insistir, ousar. Encarar, corajosamente, o que os gregos chamavam de borboletas (psyché) e MD Magno (psicanalista, doutor em letras) cunhou como borboletras, aquilo que bate asas, às vezes não tão graciosamente, dentro da cabeça. Mudar fronteiras de lugar pra cima e pra baixo, bordando a terceira margem do rio. Equi-vocar, chamar igualmente os opostos – aí é o espaço, por excelência, da criação, é só lembrar Carlito de Azevedo no seu artigo Dia da Poesia: Num minuto a poesia me devolvia a alegria, e o melhor, sem me roubar a tristeza. Num minuto eu podia ser a mosca e a aranha na teia ao mesmo tempo.

O inevitável mal-estar na civilização, percebido de modo errôneo como um vazio a ser preenchido, leva a adições, drogas literárias de auto-ajuda, essas que grassam nas livrarias, com uma demanda absurda, ao sistema interessa reabilitar o indivíduo para que ele, engrenagem, volte a mover a roda do espetáculo. Difícil competir com a que apazigua, que anestesia. Prefiro a que não impinge nenhuma ortopedia social, como dizia Foucault, nada de persuadir ou se oferecer como imagem ou modelo, nada de se submeter à censura de qualquer espécie, ao contrário, dar voz ao desejo, pois é na impossibilidade de se imaginar e verbalizar a violência, Sade nos mostrou, que corremos o risco de fazê-la se cristalizar no real. Aposto na que preserve a liberdade do leitor e não o deixe esperando do outro, neuroticamente, a “solução”. A palavra é pluralidade, cada um que encontre a sua, a reinvente. É trilhar seus próprios caminhos, eles são tantos quanto os escritores. 

Ana Guimarães


Texto editado a partir do original publicado em: http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=1173
Também está na chamada de capa do site Ver-o-poema, confiram:

quarta-feira, 3 de junho de 2009

SEGUNDO DEGRAU

Não há nada mais a dizer, embora nada tenha sido dito (Beckett)

“Manchando a folha branca com o falo da caneta, com o sêmen da tinta...” Um verso (sua lembrança), lido não sei mais onde, deflagra as primeiras indagações do dia. Existe escrita masculina? (Formulada dessa maneira para inverter a habitual, melhor seria perguntar se existe uma escrita distinta por gênero) Já vai longe o tempo da folha em branco, da tabula rasa? De certa maneira, tudo já foi dito e só nos resta copiar? Contentarmo-nos em criar segundo aquela frase de Pascal: nada de novo, somente “... la disposition des matières est nouvelle”? Tradução: o jeito é fazer uso da tríade permutação, arranjo, combinação. Com sorte, repetir com alguma diferença. Dialogar com a produção literária anterior e, dessa fricção, tentar fabricar alguma pérola, como Haroldo de Campos disse que Guimarães Rosa fazia.

E o produto final é mesmo o que importa? É possível, ao menos, minimizar sua importância? Romper com a noção teleológica? Continuar o pensamento de Valéry (um poema nunca está acabado, fica apenas abandonado) onde fazer seria o principal, e a tal coisa feita mero acessório? Ultrapassar a velha equação: obra de arte igual à finalização sobre uma elaboração? Ela não seria o próprio processo criativo, em movimento? Também não se trata de “compreender” nada através de anotações, esboços e cadernetas dos escritores, e sim da concepção do resultado final apenas como uma das possibilidades, uma das potencialidades da operação em curso. Nenhum trabalho de decifração, repito, nada a ser des-coberto (consultado por um tradutor para dar o exato significado de uma passagem de um texto seu, Rosa negou-se: o autor não dá conta de sua obra). Falo de uma opacidade permanente, e não de um véu que, se retirado, tudo se explicaria (nenhuma charada a ser decifrada: Stephen, no Ulisses, mostra como uma mensagem decodificada pode, ainda assim, permanecer um enigma). De uma prevalência do sugerido, deixando espaço para aquele que lê exercitar sua imaginação. De elementos apresentados sem que se estabeleçam relações fixas e precisas entre eles: o leitor é quem construirá as conexões. De uma suspensão do sentido dado, seu deslizamento no discurso.

Embora isso não seja, propriamente, uma novidade, pois que indefinições, equívocos (de lugar, nome, autoria) já tecem a prosa moderna desde sempre. Só pra lembrar: em épocas distintas Don Quixote faz o elogio da incerteza: “En um lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme...” e Malone morre sepultando com ele objetividade, enredo linear, caracterização de personagens, romance com as pontas amarradinhas. Mas a maior oferta desse tipo de texto, atualmente, poderia significar uma aposta no novo leitor. Aquele sonhado, acometido de uma insônia ideal, nada ingênuo, que encara com jogo de cintura recursos literários tais como ausência de fronteiras entre autor e narrador, confusão entre passado e presente, memória e ficção, e as chamadas bonecas-russas (um livro dentro do outro, do outro, do outro). Que suporta contradições, fissuras e chiaroscuros. Percebe que certos escritos são para serem lidos e não compreendidos. Aceita suas limitações na leitura, admite que sempre se pega o bonde andando, e corre atrás, então, das citações que desconhece, procurando – aí sim – esclarecê-las. Considera a estória uma opção para a história. Uma compensação, o que poderia ter sido. Uma espécie de universo paralelo. A resposta da fantasia diante da indigência do real. Sua salvação.

Leandro Konder sugere que se ofereça, naquilo que escrevemos, um mínimo de incitação à rebeldia, um estímulo às inquietações, o que dificultaria, senão impediria, que se reduzam leitores a meros consumidores, sem nos deixarmos tomar pelo desalento quando constatamos que até os textos mais subversivos são transformados em mercadoria: os versos do poeta engajado, as frases escatológicas ou de palavreado chulo que se julgam transgressoras, logo são estampados em alguma t-shirt ou aproveitados em jingles publicitários.

Tempo, tempo, tempo, tempo. Escuto Caetano e de novo essa questão me assalta. Acabei de rever Capote: o cara levou mais de três anos escrevendo A sangue frio (Joyce teria levado dezesseis em Finnegan’s). Ainda se faria alta costura, como antigamente, ou estamos mais para prêt-à-porter? Havia um esforço de mobilização à procura da mot juste, de imagens, metáforas, e uma espera (leia-se pesquisa) para a construção da trama. Uma linguagem nascida de um efeito de abandono. Isso levou a grandes momentos da literatura. Tirar medidas, fazer o molde, cortar o textu (tecido, em latim), alinhavá-lo, provar, costurar – uma técnica de artesão não mais cabível no presente, quem ainda faz roupas em costureiras e alfaiates? Compramos pronto, aqui e ali; no máximo, customizamos.
Ana Guimarães


sábado, 30 de maio de 2009

SUBINDO



Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária.
(Cortázar - Instruções para subir uma escada, em Histórias de Cronópios e Famas)


Não acredito em literatura de Internet. Internet é veículo. De comunicação. De toda sorte de escritos, uma diversidade também encontrada nos livros. Não me parece, como preconceituosamente se crê, que tenha mais lixo sendo feito num lugar do que no outro. Internet é instrumento, ferramenta (mais uma) que possibilita, inclusive, a democratização do conhecimento. Sabemos, por exemplo, que no Portal Domínio Público – além de uma biblioteca com mais de mil obras que já têm autorização legal para publicação, permitindo a sua impressão e facilitando, com isso, por tabela, a difusão cultural e a inclusão social – qualquer autor pode ter seu texto digitalizado e, portanto, disponibilizado para divulgação, para ser acessado pelos internautas quando assim desejarem, com gratuidade. Única cláusula de restrição: sem fins comerciais. E resguardando-se a autoria, é claro.

Tenho observado, hoje em dia mais do que nunca, que escrever é abrir nova perspectiva de entendimento para algo que, até então, não comportava inteligibilidade, ou ao menos não-toda (sempre, e para nosso alívio, por mais que se revele, algo resiste e insiste). Tentar dar conta de uma experiência difícil de ser dita, tanto aquilo que nos persegue quanto o que nos escapa, o excessivo e a falta. Fazer diferença. Não uma diferençazinha de forma, porém a escrita de uma diferença. Como uma impressão digital: mais pessoal e intransferível impossível, pois a linguagem não expressa o sujeito, ela o constitui. Isso explicaria, em parte, o boom dos blogs, numa época em que a massificação predomina e as subjetividades são ameaçadas.

No entanto, diz-se que a arte (a literatura incluída) não comportaria engajamento moral, político ou religioso, todos sintomáticos de fechamento. Ela os dispensaria. Não se trata de impessoalidade: um texto livre engaja-me sem que eu precise dizê-lo. Mas seria algo que ultrapassa a realidade, evita as malfadadas referências explícitas às questões sociais. Clarice Lispector teria respondido, certa vez, quando questionada sobre sua alienação ante a miséria do povo brasileiro, que isso era muito óbvio e ela não escrevia sobre o óbvio.

Criação é transgressão por definição, não pode ter limite. Xô para essa hipocrisia do politicamente correto que beira o fascismo! Um controle vigilante, uma censura prévia corre o risco de engessá-la. Fraturas no establishment são esperadas e até desejadas. Uma charge, por exemplo, nutre-se do real, do cotidiano para transcendê-lo. Não existe humor a favor, humor é sempre contra: senão, que se proíba logo tudo! (E a ironia?)

Porém, dúvidas me assaltam, e não são poucas. Ainda vigora aquela tese segundo a qual quanto mais ficção, quanto mais opacidade mais literatura com L maiúsculo? (Como se a realidade fosse menos opaca, como se lembrança tivesse selo de fidedignidade...) Um texto ultra-real, cru, de uma naturalidade exacerbada, com um conteúdo confessional em estado bruto, mal trabalhado seria considerado limitado? Fernando Pessoa dizia que imitar a natureza não quer dizer copiá-la, e sim copiar os seus processos. Os porões do desejo (sexual, agressivo) quando visitados sem a lanterna da fantasia podem se revelar indigestos? Ainda Pessoa: “... qualifico de insinceras todas as coisas feitas apenas para pasmar, onde não passe o mistério da vida”: vale chocar por chocar, pura e simplesmente? Porque isso dá ibope, sabemos.

A mão que corrige não é a mesma que escreve. O inconsciente cria, o ego edita. Mas como, se o tempo – ou melhor, sua rápida fruição hoje em dia – parece ser um empecilho para o reencontro da palavra como objeto a ser burilado por um artesão, por um artífice? Num primeiro momento, o que impera é a construção (per via de porre), a seguir vem (precisa vir) talvez o principal: revisar, tirar o excesso, como o escultor (per via de levare). Mas se tudo é consumido com voracidade (os posts se sucedem numa freqüência absurda), há uma dificuldade, senão impossibilidade, disso acontecer.

Depois de muito rodar por aí percebo a inexistência do que possa ser conceituado como literatura contemporânea na rede, ou algo do gênero. A falta de algum elo formal ou temático, um traço que aglutine, por identificação, os autores, seus textos – seria exatamente isso que a caracteriza? Só mesmo uma vã guarda, como li não sei mais onde. Uma lotada: apenas estamos juntos, indo para o mesmo destino: qual mesmo? Individualistas, cada um com o seu cadáver literário próprio. Aliás, não era assim que Mallarmé postulava a literatura: como resto, dejeto?

Minha mão sempre me surpreende (Miró)

Ana Guimarães
Texto editado a partir do original Subindo ao Mezanino, publicado no site Cronópios, em 4/3/06.

domingo, 24 de maio de 2009

Primavera de 2009 na Europa – PRAGA


Carregamos conosco, cada qual a seu modo
uma paisagem harmonizada, uma cidade
que existe e não existe, como a realidade...
Bruno Tolentino
Chegamos a Praga, capital da República Tcheca, a pérola do oriente europeu, o navio dourado que navega majestoso pelo Vltava, como dizia Apollinaire, uma das cidades mais mágicas do mundo, concordo com Thomas Mann. Instalados no centro de Staré Mesto (Cidade Velha), a alguns passos de Staromestké Námesti, a praça, guiados por mãos experientes de viajantes que nos antecederam, resolvemos passar o primeiro dia explorando esse que é considerado um dos mais belos bairros da Europa.

Visitamos a antiga Prefeitura, cujo prédio exibe na fachada o famoso relógio astronômico medieval, o Radnice, um ícone da cidade. Centenas de turistas diante dele para ver e registrar, a cada hora cheia, a procissão das estátuas de Jesus e seus apóstolos, seguidos pela da morte e outras figuras simbólicas.

Depois, paramos para apreciar o monumento erguido em homenagem ao reformista religioso Jean Huss, sacerdote, mártir e precursor da Reforma protestante. Em seguida, almoçamos no Orologio, um dos vários restaurantes com mesas na calçada, onde se pode experimentar a autêntica cozinha tcheca: deliciosas e bem temperadas carnes de porco e pato, com o acompanhamento típico: dumplings. De sobremesa, Palacinky (crepe com sorvete). A pivo (cerveja) local além de saborosa é leve, o que não dificulta a continuação da caminhada.

Percorrer a Celetná, a rua mais antiga, por onde passavam os cortejos reais, é como voltar no tempo, a alma da gente rodopia! Aqui está a deslumbrante Igreja Tyn, fundada em 1365, que abriga a tumba do astrônomo Tycho Brahe, e ainda a Torre de Pólvora, em estilo gótico, uma obra prima de Matej Rejsek, que além de funções militares servia como portão principal para o rei quando retornava do estrangeiro. Bem perto está outro ‘cartão postal’, o prédio mais bonito de Praga, a Casa Municipal.

Amantes do escritor Franz Kafka, fizemos questão de ir ver sua estátua, como não poderia deixar de ser, uma insólita escultura em bronze, ao lado da Sinagoga Espanhola, na fronteira com o Josefov, o bairro judeu. E, ingressos previamente comprados, fomos assistir no Image uma apresentação teatral não verbal, o Black Light Theatre, assim chamado porque nele os artistas vestidos de preto para ficarem invisíveis no também negro plano de fundo do palco contam histórias através de pantomimas, esquetes de vaudeville e ballet, utilizando fabulosos efeitos visuais. Performances toda noite, sempre com espetáculos diferentes.

Last but not least, percorremos a maravilhosa Karluv Most (Ponte Carlos), só para pedestres (uma multidão transita por ali, diariamente), ornada com trinta estátuas ao longo dela, sendo que a de São João Nepomuceno, bem no meio, é uma homenagem a ele que foi jogado ao rio nesse ponto porque se recusou a contar ao rei o que a rainha havia lhe dito em confissão. Jantamos no Klub Arquitektú, ao lado da histórica capela Betlémská.

Nové Mesto é a Cidade Nova, onde fica a imensa praça de São Venceslau com a estátua eqüestre do santo patrono da região, circundada de edifícios antigos e modernos, muitos em estilo art noveau. Museus, galerias, lojas e o conhecido café Europa. Mas preferimos outro de ambiente também luxuoso, atendimento exemplar, cardápio internacional, outrora frequentado por Einstein: o Louvre, assim que saímos do espetacular Laterna Mágika, na mesma rua, uma espécie de show multimídia, com imagens e sons gravados e artistas ao vivo.

Na margem esquerda do rio, no alto de uma colina fica Hradcany, ou o distrito do Castelo. O lugar é amplo, a vista, esplêndida. Entra-se pelo magnífico Portão de Matias (demos sorte de chegar na hora da cerimônia de troca da guarda, um acontecimento) para visitar o Palácio Real (residência dos reis e príncipes da Boêmia até o final do século XVI; depois de 1918 os presidentes passaram a ser aqui empossados), o Tesouro (coleção de jóias, relicários, etc), a basílica de São Jorge e a imponente Catedral de São Vito, com 21 capelas, destaque para a de São Venceslau.

Descendo, chega-se em outro bairro, o Malá Strana, onde está a Igreja de São Nicolau, uma das mais lindas construções barrocas da cidade, seu domo é visto de longe, impressiona. Mais abaixo ainda, a Igreja de Nossa Senhora Vitoriosa que possui a escultura em cera do Menino Jesus de Praga, a quem atribuem curas milagrosas.

Quando Praga me ocupa o coração, tenho que ir embora. Chove pela primeira vez em toda a viagem. Dói a partida, talvez porque se confunda com o final de um longo, sonhado e realizado périplo. Embriagada por seu aroma, sua gente hospitaleira, seus bem cuidados recantos históricos, despeço-me. Sei que amei só pedaços, fragmentos, instantes soltos, flashes, e por pouco tempo – pura epifania – porém tenho dificuldade de partir o fio já tecido. Faço minhas as palavras de Kafka: esta velha tem garras, não deixa a gente ir embora.

Ana Guimarães

sábado, 16 de maio de 2009

Primavera de 2009 na Europa - VIENA




Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra... Tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra. (Sigmund Freud)

É entrar em Viena e logo, como num passe de mágica, sentir o clima dos gloriosos séculos passados, mesmo tendo ela se modernizado a ponto de ser considerada a terceira capital européia em padrão de vida de seus habitantes. Cavalos puxando carruagens lado a lado com modernos automóveis. Tranqüilidade, distinção e elegância. O feriado prolongado (segunda-feira também, além do tradicional domingo de páscoa) talvez tenha contribuído para esvaziar a cidade e dotá-la de mais amplidão e quietude ainda em seus sempre limpos, bem conservados e arborizados espaços públicos. Music (classic) is in the air: aqui e ali se ouve Mozart, Strauss, Beethoven, o que proporciona instantes de alta distensão lírica aos passantes. Testemunhar gestos de educação, honestidade e respeito ao próximo no dia a dia faz ressurgir em nós a crença na humanidade. E bucólicos jardins convidam-nos a contrariar aquela máxima segundo a qual “turismo é agito, só louco descansa em dólar ou euro”.

Ficamos hospedados na Rennweg, num bom hotel bem próximo ao Palácio Belvedere, uma das inúmeras edificações arquitetônicas admiráveis a serem visitadas. Outras são: Schönbrunnn, comparável ao que Versailles é para Paris, com visitas guiadas aos mais de mil e quatrocentos aposentos, inclusive os da famosa Sissi, a imperatriz. Hofburg, complexo de residências imperiais, museu, escola de equitação e capela, a cintilante Burgkapele, onde assistimos a apresentação dos conhecidos Meninos Cantores de Viena. Stephansdom, a catedral da Stephan Platz, no coração do centro histórico, com exuberante telhado composto por azulejos vitrificados formando figuras, datada do século XIII. Quem não se atreve a encarar trezentos e quarenta e três degraus pode pegar o elevador da torre norte e ter uma vista privilegiada do ponto mais alto da cidade, dos mais variados ângulos. Rathaus, a prefeitura. O acender de suas luzes ao anoitecer, jantando defronte a ela, no Landtman foi um momento inesquecível. Karlskirche, a igreja barroca mais bonita de Viena, interior ricamente ornamentado. Suba por dentro até o domo, fotografe e filme bem de perto os deslumbrantes afrescos do teto. Pestsaule, monumento erguido como lembrança do fim da peste negra, em 1663. O relógio Anker, situado numa passarela ligando dois prédios. Programe-se para vê-lo ao meio-dia, quando acontece uma procissão de figuras em madeira reproduzindo nobres e religiosos da história do país.

Para quem aprecia, o Museu de História da Arte exibe um admirável acervo, o mais completo da Europa Central. Para os amantes de ópera, a Staatsoper, um dos melhores teatros do mundo. Fãs ardorosos podem conhecer onde os célebres compositores viveram, o cemitério onde foram enterrados, as estátuas dos notáveis. Quem curte parque de diversões deve ir ao Prate e dar uma volta na roda gigante Riesenrade, um dos símbolos de Viena. Já os discípulos de Freud bailam de emoção em Berggasse, 19, casa onde o psicanalista morou e trabalhou de 1891 até o início do nazismo, 1938. Seja qual for a sua preferência, mergulhe de cabeça (e coração), sem receio: todos os passeios podem ser feitos a pé, com segurança, mesmo à noite. Mas se quiser um táxi, basta chamar que em um minuto aparece um Mercedes novíssimo à sua disposição, com taxistas sempre gentis, prestativos e bem apessoados, falando um inglês fluente.

Dicas gastronômicas: A torta de chocolate Sacher, no restaurante/hotel com o mesmo nome. Não sei o que é melhor: ela ou o creme que a acompanha. O enorme schinitzel (bife de carne de vitela ou porco a milanesa) do disputado Figlmüller. O apfelstrudel do café Melange. Frutos do mar do Nordsee, embora as caudas de lagosta sejam carinhas como quê, mas distraídos, só descobrimos quando pagamos, até guardamos a nota da extravagância como recordação: 47 euros cada!

Ana Guimarães

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Primavera de 2009 na Europa - BUDAPESTE

foto de Ana Guimarães

A PALAVRA FINAL
A palavra final pertence ao editor
ele tem um secretário da cultura
o secretário tem um primeiro ministro
o primeiro ministro tem um governo
o governo tem uma polícia
a polícia tem armas

Eu tenho um poema
o poema é um tirano
recusa assumir compromissos
no sentido estrito da palavra
é a palavra final

a neve é azul como uma laranja

(versão do poeta João Luís Barreto Guimarães a partir da tradução em inglês de Nicholas Kolumban de um poema do húngaro Elémer Horváth
)

Difícil escrever sobre Budapeste sabendo que tantos amigos dizem morrer de amores por ela enquanto eu, conhecendo e respeitando sua história, a luta dos magiares (como são chamados os húngaros) contra o totalitarismo, apenas gostei de conhecê-la, mas não voltaria. (Pareceu-me uma cidade partida, não só entre Buda e Óbuda, no lado esquerdo do Rio Danúbio, e Peste, na margem direita) Seria por que foi a primeira depois da passagem pelas esplendorosas Florença e Veneza? Sei, comparações desse tipo são idiotas, porém inevitáveis já que o coração não pensa... Teria o (mau) começo de nossa estadia influenciado nessa percepção?

Explico: trocamos de hotel, pois o primeiro não correspondeu às expectativas de um mínimo de conforto e funcionalidade. Partimos, então, para o Mercure, na Váci ut, a principal rua de pedestres, pertinho da Confeitaria Gerbeaud, fundada em 1858, e do Mercado Central, enorme estrutura metálica lembrando uma estação ferroviária, dezenas de bancas oferecendo alimentos, especiarias (a páprica é o condimento típico com que se faz o goulash) e todo tipo de souvenir (as matryoshkas, bonecas umas dentro das outras vestidas de camponesas são as mais vendidas, mas nas vésperas da páscoa faziam sucesso ovos dos quais se retira o conteúdo através de um minúsculo furo para serem decorativamente pintados).

Horas distraídas passamos no New York (almoço regado a cerveja Dreher sem rótulo afixado e sim gravado na garrafa), restaurante outrora freqüentado por famosos como Chaplin, Mastroianni e Pavarotti. O luxo, testemunha de um passado de riqueza e opulência, contrasta com a moldura de lixo da rua onde ele se situa, cujas lojas com fachadas sujas e pixadas, ainda parecem desconhecer a profissão de vitrinista. Descobriríamos mais tarde que a degradação do mobiliário urbano se faz notar por quase toda parte. Pedintes, edifícios mal conservados como rosas secas, dura realidade; a exceção é a Andrassy, deve ser por ela que Budapeste é considerada a Paris do Leste Europeu. No final dessa avenida, fica a Praça dos Heróis, e defronte, a Galeria de Artes e o Museu de Belas Artes.

Atravessamos a Ponte das Correntes e fomos conhecer o Palácio Real ou Castelo de Buda, na verdade um conjunto de vários prédios no alto de uma colina, uma construção imponente (todo o bairro era a residência oficial dos nobres, os Habsburgos). A Igreja de São Matias fica ao lado, com telhado colorido, e perto, o moderno Bastião dos Pescadores, de onde se tem uma boa vista, sobretudo à noite, do Parlamento iluminado. No ponto mais alto, no topo do Monte Géllert, encontra-se, além do hotel com o mesmo nome (conhecido por suas fontes termais), a Citadella, outrora uma fortaleza, hoje ponto lotado de ônibus levando turistas para lojinhas de artesanato. Aí, dignos de nota são as mega fotos de Budapeste em diferentes épocas.

Andamos muito a pé, e às vezes de táxi, mesmo sujeitando-nos a ser extorquidos (e fomos, por duas vezes), pois simpáticos bondes podem ser um excelente meio de transporte para seus habitantes, mas que estrangeiro arriscaria se perder? A comunicação é difícil, gerando muito mal entendido, mesmo com quem lida com público. O guia do city tour, por exemplo, falava um inglês tão corrido quanto mal pronunciado, despejando toneladas de informações históricas e arquitetônicas numa velocidade supersônica - todos desistiram de acompanhá-lo. E, por mais que nos esforçássemos, a língua nativa, uma das mais difíceis do mundo, é absolutamente impraticável. Belas tampas de bueiro em bronze tem escrito: Tulajdona Budapesti Elektrumos Muvek. Ficamos curiosos, quem se habilita a traduzir?

Ana Guimarães

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Primavera de 2009 na Europa – Veneza

Se aquela luz, no entanto, emprestasse o pincel
a um poeta qualquer, eu tentaria agora
fazer que retivesse o retrato cruel
daquela intensidade que nunca se demora,
que atinge o auge um belo dia e vai-se embora
(Bruno Tolentino)

foto de Ana Guimarães
Assim que desembarcamos na Stazione Veneza-Santa Lucia tomamos um vaporetto, o meio de transporte mais usado na região, um barco originalmente movido a vapor, daí o nome. Navegando pelo Grande Canal, principal artéria aquática, em forma de um S invertido, revejo a imagem que se recusou a evaporar-se com o tempo ou a própria mente a embalsamou para ressuscitar um dia. As águas dançam à minha frente num baile fulgurante.
Ouço o que me diz o vento, nada estrangeiro (até porque, sendo carioca, o forte cheiro de maresia faz com que me sinta em casa): eis sua outra ‘cidade maravilhosa’! Seu lar agora é aqui, no Bella Venezia, um palácio do século XVI totalmente preservado, a poucos passos da Ponte Rialto e da Piazza de San Marco.
Saímos a caminhar pelo labirinto de ruelas e mini-pontes, essa confusa geografia de Veneza é, em si, uma atração. Deixamo-nos seduzir pelas vitrines, adquirindo lembranças (as máscaras carnavalescas de porcelana pintadas à mão, dos mais variados desenhos e tamanhos cabem em qualquer orçamento), em meio a uma ondulação de pessoas falando outras línguas. Todas de passagem – como, aliás, estamos na vida – invadindo pátios, calçadas, escadarias.
Rialto é uma festa democrática da qual até as gaivotas participam. Diferente da Ponte Vecchio de Florença (onde a ourivesaria impera), além de lojas de artigos populares e barracas de camelô em profusão tem até um mercado ao ar livre. Entrego-me, embriagada, aos mistérios dos perfumes que legumes, frutas e sucos exalam e de imediato se aninham na emoção.
Acertamos um passeio de gôndola, coisa que não havíamos feito em janeiro de 2000, já que pleno inverno, temperatura próxima de zero grau, elas permaneciam ancoradas, lado a lado, e nenhum gondoleiro à vista. Logo constatamos que o salgado preço (100 euros por meia horinha) não inibe os turistas: são dezenas esbarrando com a nossa, enfrentamos um verdadeiro congestionamento de ‘trânsito’, ainda bem que em silêncio, sem buzinas ou motores roncando, não é à toa que a cidade é chamada de ‘A Sereníssima’, aqui só se circula pelo mar ou a pé. Programa imperdível.
Também ninguém se importa de pagar caro apenas para sentar e tomar cappuccino num dos cafés da praça: as cores da música tingem o real da cena, mil vezes mais prazerosa do que a imaginação supunha.
Durante muito tempo Veneza foi a encruzilhada dos mundos bizantino e romano, e o conseqüente legado artístico e arquitetônico desse cruzamento está bem representado pela Basílica de San Marco; seu interior merece uma visita, mesmo para os não-religiosos. Enfrente a fila, vale a pena ver a coleção de peças de ouro, fruto de saques feitos pelos cruzados em Constantinopla.
Tomamos o elevador do Museo Correr (entrada pelo lado oposto da Basílica) até o alto do Campanille de onde se tem uma magnífica vista da laguna inteira. E tome foto! Cada uma mais linda do que a outra! Verdade que o dia, mais ensolarado impossível, ajudava a fotógrafa amadora.
Capítulo à parte é o encantador Palazzo Ducale, antiga residência e sede do governo dos doges, aposentos ricamente decorados com obras de Veronese, Ticiano e Tintoretto. Uma curiosidade: do lado de fora da Sala della Bússola está a Bocca dei Leoni, uma fresta na parede através da qual denúncias secretas contra supostos inimigos do Estado eram depositadas. Mas o ponto alto de todo o Palácio é a Sala Del Maggior Consiglio; dela saindo se atravessa a Ponte dos Suspiros (que leva às Prigioni), assim batizada pelos suspiros de Casanova, não de amor como reza a lenda, mas quando conduzido ao cárcere.
Não se pode ainda deixar de visitar a Galleria dell’Accademia (com pintura veneziana exposta em ordem cronológica) e a Coleção de arte moderna (Picasso, Kandinsky, Pollock, entre outros) de Peggy Guggenhein.
Se à noite, cansados para sair de novo, queríamos lanchar no quarto do hotel tratamos de seguir os ‘nativos’ e compramos maravilhosos pães, queijos, presuntos e vinhos italianos em panetterias, salumerias e que tais. Mas querendo jantar fora, um local aprovado foi o Vino Vino, apesar do negligente atendimento.
O dia mal amanhece e, singrando o Adriático num táxi aquático em direção ao aeroporto Marco Polo, no continente, estendo a mão, toco o instante e logro agarrá-lo, endereçando à vida, ao destino, um agradecimento. Findo o espetáculo. Agora é tudo espuma.

Ana Guimarães
PS Os dois textos estão na página de capa de hoje, 4/5, de Blocos Online, como Crônica de Viagem: http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/cron/cv/cv09/090501.php

domingo, 26 de abril de 2009

Primavera de 2009 na Europa – FLORENÇA



Se a arte é um calabouço, essa visão é uma lição de liberdade
(Bruno Tolentino)


Começamos revendo Florença, um dos principais centros de cultura da história da humanidade, visitada por nós com brevidade no ano de 2000, o suficiente para deixar nossos corações iluminados pela esperança de voltar um dia. A cidade, berço do Renascimento, desculpem o lugar comum, verdadeiro museu ao ar livre, agora rivaliza com Veneza nas minhas preferências; além de arte transpira elegância, estética e design através dos seus habitantes que desfilam como numa passarela em suas espaçosas piazzas sempre cheias de turistas, de manhã à noite.
Devidamente instalados no charmoso hotel Tornabuoni, zarpamos para o afamado Mercado de San Lorenzo. Preços incomparáveis aliados a qualidade dos artigos em couro fizeram com que após alguma hesitação (a oferta é enorme) ali comprássemos nossos casacos.
Partirmos, então, para jantar na aconchegante Trattoria Za-Za, onde experimentamos a típica cozinha toscana e a sobremesa local, biscoitos cantuccini.
No dia seguinte, com reserva (sem isso também é preciso paciência para poder ver a famosa estátua David, não preciso dizer de quem, na Galeria Accademia, a fila é interminável) fomos conhecer as Galerias Uffizi, o museu de arte mais importante da Europa depois do Louvre. Primeiro procuramos e nos detivemos, olhar apaixonado, no que mais nos interessava: O Nascimento de Vênus, de Boticcelli, A Anunciação, de Da Vinci e a Sagrada Família, de Michelangelo. Daí em diante, sob o lema “o paraíso não tem pressa e te espera”, flanamos apreciando o resto (e que resto!), atravessando tons e silhuetas nascidos de privilegiadas paletas, na contramão do fluxo ondulante, seguindo só nossa própria correnteza, buscando captar nas telas a emanação do invisível.
Do alto e de longe fotografamos a Ponte Vechio, a única a escapar da destruição nazista, na Segunda Guerra Mundial, antes de conhecê-la ‘pessoalmente’, dissolvendo-nos na multidão que por ela transita buscando jóias nas joalherias de vista mais privilegiada do planeta, ou apenas souvenires. O Rio Arno corria altivo e sereno, como sempre, emoldurando-a.
Na magnífica Piazza della Signoria, o coração de Firenze (onde fica o Palazzo Vecchio, antiga residência dos Médicis, ainda hoje palco dos eventos mais importantes do lugar), almoçamos uma autêntica bisteca florentina no Orcagna, apreciando de nossa mesa a fonte Neptune e a escultura Perseu, de Celini. Em seguida tomamos um incomparável gelato, numa das inúmeras sorveterias espalhadas por ali.
Na Piazza del Duomo, um ícone da cidade, fica a Catedral de Santa Maria Dei Fiori (em estilo gótico, com a fachada toda em mármore verde e rosa, formando desenhos geométricos), Il Campanile de Giotto e o Batisttero de San Giovanni (onde se batizavam os pagãos impedidos, na época, de entrar em qualquer igreja), obra de Lorenzo Ghiberti, com suas magníficas portas de bronze retratando cenas do Velho Testamento, chamadas Gates of Paradise, assim nomeadas por Michelangelo quando as viu; a luminosidade da hora dourava os reflexos de rara beleza. Um dos mais belos trabalhos de arte do período renascentista, dizem os entendidos.
Imperdível é a Basílica di Santa Croce, com sua beleza e imponência. Em seu interior, jazem os restos mortais de Ghiberti, Dante e Galileo, só para citar alguns nomes conhecidos. Suas capelas foram projetadas por Gioto e Bruneleschi. Mas muitos outros tesouros por mim não citados, de autoria de mestres – não foram poucos os que por aqui passaram – como Tintoretto, Veronese e Rubens merecem ser caçados.
Valeu a pena ainda ter visitado, nos arredores, o vilarejo de Lucca, um campo militar romano na sua origem, cercado de muralhas, bem preservado e tranqüilo, onde nasceu Puccini. E Pisa, com sua torre inclinada (hoje estabilizada) datada do século XII, no Campo dei Miracolo. Aqui, esfomeados pela tarde que avançara sem que percebecessemos, entramos despretensiosamente no primeiro restaurante aberto que encontramos, Il Campano, para logo nos encantarmos com prestimoso atendimento e a melhor massa caseira de todos os tempos, feita na hora, com farinha 00, levíssima.
De trem partimos para Veneza. Meu último olhar para trás, mesmo contido, sem lágrimas, é um gesto que dói pela saudade antecipada. Quando voltarei? Voltarei?

Ana Guimarães