quinta-feira, 18 de junho de 2020

James Joyce - uma homenagem

JAMES JOYCE - uma homenagem.

Minha descoberta de Joyce foi sem interlocutor algum para dividir o impacto que seu texto me causava, quem estaria lendo Ulisses aos dezessete? Paixão à primeira vista. Totalmente rendida aos encantos, à mágica, à amplitude de suas letras, à proliferação de sentidos que o aparente caos de imagens e idéias provocava. Joyce me comprou, logo comecei a reler todos os seus livros, sempre traduzidos, mesmo advertida de que tradutore, traditore. Não posso me queixar, o que encontrei foi sempre mais criação, transliteração. Sou grata aos irmãos Campos, a Antonio Houaiss e a Bernardina da Silveira Pinheiro tão dignas empreitadas. 

Mais tarde dei início à nova rodada, sob a batuta de Lacan, apoiada na partitura de seu seminário O Sintoma. Balizas que poderiam restringir, na verdade ampliaram minha escuta, como se um novo Joyce se descortinasse aos meus até então ingênuos olhos e ouvidos. Conhecê-lo por isso? Não. Entendê-lo? Menos ainda. Lendo-o sempre sim, no gerúndio, genuíno work in progress. Sua leitura, tanto quanto um processo analítico, é interminável. 

Ao mesmo tempo em que pretendeu limpar o vocabulário do senso comum, da sujeira da funcionalidade, o autor também quis capturar o incapturável, numa ânsia pelo fonema que tudo abarcasse, o maior significado possível, uma utopia lingüística de nomear quase que termo a termo, totalmente, o mundo. Uma obsessão: a busca da homologia entre a palavra e a coisa. Quanto mais à vontade ficava em sua produção literária (o auge disso foi Finnegans Wake) mais demonstrava pretender a ampliação da língua, trabalhá-la, distendê-la, enriquecê-la, reescrevê-la, apropriando-se de territórios antes exclusivamente do Real, nomeando-os, trazendo expressões novas, engavetadas, inventando-as acima de tudo quando não tinha qual designasse o que pretendia. Penetra com vigor em sua tessitura e aí brinca, sem pudor, com maestria e gozo. Lembra Guimarães Rosa, meu escritor brasileiro favorito.

Escrevo apesar de mim, parece dizer. Não escolho, sou escolhido. Embora deixando-se perfurar por epifanias, ao invés de sujeitar-se às palavras impostas (mesmo atormentado por elas) teve a sabedoria de artífice para trocar de lugar, inverter as posições e quebrá-las, desmontá-las. Liberdade essa, de ir e vir, que representa um enfrentamento do paradoxo que roça a loucura. Joyce soube, como ninguém, suportar a dor do parto: dos escritos e de si mesmo, enquanto sujeito. Criando, ele se constituiu. O que lhe parecia estanque, disjunto é suturado via autoria, via escritura.

Tudo quanto é reto mente, a verdade é sinuosa, sabemos. Quanto mais confuso, quanto mais turvo, mais chance de verdadeiro. Quanto mais incerto, mais significativo. Nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Assim ele nos dá uma demonstração  exemplar da estrutura do sujeito, sua divisão: sou e não sou, sou os contrários, os diferentes ao mesmo tempo, numa fala nem sempre coerente, nem sempre unívoca, mas autêntica. Ambígua, como a própria vida. Fracassa a compreensão, é para ser lido e não, necessariamente, entendido. Rasura as palavras, desfaz o sentido (ou finge desfazê-lo) para que cada leitor o reconstrua a seu modo, particular, único, diferente, daí se dizer que a obra de arte funciona como analista, provoca um estranhamento em quem dela desfruta, um descentramento, uma equivocação.

“Lost in translation” ficamos, mas não mais do que quem o lê no original, sei. Não mais do que o próprio Joyce estava. A literatura, como a psicanálise, é um viés no qual a gente se perde para se encontrar. Não serve para explicar, edificar, moralizar, muito menos para acomodar, tranqüilizar, adormecer tal como uma igreja ou partido político. Ao contrário, desperta da anestesia de um viver amortecido e da inconsciência do sono cotidiano. Esse foi o bê-á-bá que Joyce nos ensinou. Silabação que até hoje estudamos, como ele queria. 

Ana Guimarães