quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Como os cronópios passam o Natal

COMO OS CRONÓPIOS PASSAM O NATAL

Arrasto a bolsa por cima dos cartões de Natal, espalhando-os no tapete. Lipe e Carolina riem. Acabo de derrubar a caixa de enfeites da árvore, bolas quebradas por todo canto. Corre um fama a corrigir o estrago, catando-os um a um. Cronópio? É, mas não sou verde. Úmida? Já fui mais, o tempo inteiro. Adoro cantar e recitar versos. Nada pragmática, embora não chegue ao extremo de dar um nó num fio de cabelo arrancado, jogá-lo no buraco da pia, abrir a torneira e depois tentar recuperá-lo a qualquer preço, apenas para lutar contra o utilitarismo que rege a sociedade. Creio que do que mais gosto é de exercer a liberdade que volta e meia recupero, a de sonhar. De manhã quando levanto e lavo o rosto acredito que um urso, vivendo em semi-exclusão social, sai do cano para me acariciar e me lamber o nariz, para me dar bom dia. Eu vivo sempre no mundo da lua. Perco chavesdinheiro trocado, guarda-chuva, papéis. Cadê aquele conto que estava escrevendo com tanta dificuldade(Gosto mais de contar do que de escrever). Quase acabado, e agora... nada. Só textos em romeno, que confusão. Começar de novo. Nenhuma esperança deslizando no ar. O jeito é banhar e perfumar as lembranças que andam soltas pela casa nessa época do ano, batendo portas e janelas. Nem preciso de instruções para chorar, molho com lágrimas o sanduíche entregue. O meu preferidode queijotrocado por um de presunto. relógio atrasa, atrasa. Eu junto. Se fosse um fama, já teria feito a lista de presentes. Deixo tudo para a última hora, ou nem isso. Teria que trabalhar no governo ou numa casa de câmbio para pagar por todos eles. Os shoppings estão cheios apesar da crise, filas nos supermercados, não há estacionamento nas ruas, os táxis exorbitam com a bandeira dois. Papai Noel, pinheiro, boneco de neve, renas. Que mau gosto. Peça desculpas, ou saia imediatamenteresponde um fama.  Permaneço em silêncio. Chantageia: ajude aqui e perdoarei a grosseria. Mas não tenho paciência para trinchar carnes, com ou sem faca elétrica. Desajeitada, corto o dedo. O sangue escorre na ave. Só penso em como o peru morreu. Quero a sobremesa antes da ceia, um coro de famas diz não. Lambo o dedo passado na baba de moça, amarelo agora rajado de vermelho. Não. Começo a abrir meu presente antes da hora. NÃO. Ponho Bono Vox bem alto, em vez de Jingle Bell. NÃO! Se pudesse os faria sentar naquele sofá para morreraquele com a estrelinha prateada no meio do encosto. Olho a parede e esqueço. Quase meia-noite, formigas banqueteiam na cozinha. Encaminho-me para a área de serviço, abro a tábua e passo o Natal

Ana Guimarães
Uma homenagem a História de cronópios e de famas. (Cortázar)