segunda-feira, 29 de abril de 2019

RIO DE PAIXÃO



RIO DE PAIXÃO

O Rio é meu escafandro. Tanto quanto você. Se me ausento por muito tempo, por melhor que seja a viagem, sinto-me mal, o ar me falta como se me afogasse. Se tivesse que morar em outra cidade – e longe de você – creio que não resistiria.
Lembro-me de quando criança mal acordar, as névoas do último sonho ainda se dissipando, e já sentir o doce cheiro salgado da maresia me dando bom diaconvidando-me para um mergulho, o que eu fazia antes de qualquer coisa, antes mesmo do meu café saborear.
Papai recitava seu mantra diáriocalma, meninao mar não vai virar sertão! Mamãe argumentava que eu devia me alimentar antes de nadar. Minha a resmungava: sua carioca da bunda-choca! Assim eu era carinhosamente chamada. Primeiro só por ela, depois, o apelido pegou, por todtradicional família mineira. Não entendia o significado, mas lia nas entrelinhas sua discreta censura, ou inveja, por ser a única a ter nascido aqui, a única a pronunciar deiz, faiz, meis
Desde cedo percebia essa condição que marcava diferença entre mim e os primos que me copiavam em tudo, não só o sotaquefamoso jeitinho brasileiro aqui exacerbado. displicência, que se reflete na informalidade no vestir: a dobradinha jeans&camiseta, pau pra toda obra: faculdade, trabalho, restaurante ou missa de sétimo dia. A alegria contagiante de quem é morador dessa academia a céu aberto, onde se pratica footing diariamente, nas quatro estações. A disponibilidade para dar informações até quando não se sabe, pedindo a alguém para fornecê-las. 
E se cresci num tranquilo Rio dos bondes, lotaçõesônibus elétricos e pouco trânsito, hoje feérico dos engarrafamentos a qualquer hora, meninos de rua não só no sinal, camelôs em demasia não me é estranho. Nem roubou essa simpatia que nos caracteriza e que já nos rendeu, numa disputa com outras vinte e três cidades, o título do povo mais gentil e prestativo do mundo.
Só sei que deixava todos falando e num piscar de olhos fugiadescalça mesmo, em jejum. Corria para a praia. Ia enfiando com satisfação meus pés naquela areia fofa, como se a cada manhã me enraizasse um pouco mais. Primeiro ainda morna do calor armazenado do dia anteriordiferente daquela fervente que me fazia correr para não queimar as solas dos pés, quando às vezes voltava ao meio-diaDepois, fria e úmida bem próxima ao mar. E finalmente gelada, já debaixo d’água.
Observava, com cuidado, o estranho balé das águas-vivas. Pegava com as mãos em concha peixinhos coloridos dos muitos cardumes que por ali passavam. Pisava com cuidado para não me cortar, cavando delicadamente com o dedão os furinhos que os tatuís deixavam, revelando seus esconderijos. Sonhava algum tesouro encontrar, além de jóias de banhistas descuidadosAí então, junto com os mergulhões que, diariamente, sobrevoando a superfície, me faziam companhia, afundavafosse qual fosse a temperatura. Brincava de treinar o fôlego, permanecendo cada vez mais tempo submersa. Umas furadas de ondas que arrebentavam ainda mansinhas a essa hora  da manhã, umas braçadas, e pronto, batizada para começar o dia. RenascidaPurificada de toda e qualquer culpa ou pecado. Pronta para o que desse e viesse. Tanques cheios. Revigorada. Assim é também quando estou com você. Inalo suas palavras e beijos como se oxigênio fossem. Porque me renovam, alimentam minhas células, promovem trocas vitais. E rio, meu Deus, como rio. 
Foi numa dessas alvoradas que o conheci, décadas mais tardeBanhava-me com tranquilidade, num ritual estabelecido e cumprido religiosamente por anos a fio, perdida em meus pensamentos, em silêncio, verdadeira comunhão com a natureza, quando você, disparado feito uma bala, mergulhou ao meu lado, respingando água pra todo canto.  Logo se desculpou, gracejando alguma coisa, assumindo-se como novo no pedaço, ainda não tendo aprendido como se comportar ou controlar as emoções diante desse marzão besta. Achei graça na sua espontaneidade, respondi no mesmo tom, e você se encantou com o meu bom humor matutino e minha receptividade. 
Ao contrário do estereótipo segundo o qual mineiros são reservados, quebrou o gelo e me fez um verdadeiro interrogatório. Falamos, falamos e falamos, como se amigos de longa data fôssemos. Apontou o hotel defronte, onde estava hospedado, e perguntou, em meio a um largo sorriso, se eu não queria ser sua guia turística no Rio. Minha resposta foi outro, bem prolongado, enquanto me enrolava na canga e dava ciao sob seus olhares também risonhos. O papo estava ótimo, mas outro prazer me aguardava: meu micro e muito trabalho.
Muito trabalho também, de sua parte, impediu que nos reencontrássemos durante vários dias, atrasando assim o início de um duplo desabrochar de amor: por você e por minha cidade que sabia maravilhosa, mas não tanto assim, só fui conhecê-la realmente quando a apresentei a você. Quando começamos nossos tours meu entusiasmo era tamanho, tamanha a vibração, que parecia que a turista era eu.
Amo de paixão, há séculos, o Rio e você. E não os trocaria por nada nesse mundo, até porque, sei, não resistiria.

Ana Guimarães

quarta-feira, 24 de abril de 2019

Vertigens



VERTIGENS

Ontem, puxaram-me o tapete
– ainda que mágico, voador –
e o chão me faltou
vertigens
Corri para um piso/pouso seguro
a poesia
meu inutensílio favorito
depois da psicanálise
Só elas me aprumam
me rumam
me fumam
até que só fique a guimba
o bagaço
até que só reste um traço
como na tela, o eletro de um morto
um porto
onde a alma ancora
e o corpo é que vai embora

Ana Guimarães 

domingo, 14 de abril de 2019

A fé na ficçâo

A FÉ NA FICÇÃO

Para sonhar não é preciso fechar os olhos e sim ler. (Foucault)

À parte as qualidades intrínsecas de cada um, a despeito de méritos literários, qualquer texto me seduz. Como Cervantes, lia até nos papéis rasgados das ruas. Desde cedo, um livro sempre foi o meu melhor companheiro, alguém em quem podia confiar, um porto seguro ou sólido navio na tempestade. Tormentas grassavam ao redor e, no entanto, quando começava a folheá-lo, tudo cessava, tudo se calava, tudo fazia sentido. Estimulantes desafios surgiam. Ora adentrava romances de cavalaria, lutava contra moinhos de vento, ora enfrentava poderosos jagunços. Temer algum mistério, terror ou sobrenatural nevermore, pelo menos não a ponto da paralisia.

O mínimo grau de dispersão ao ler era motivo de riso. Pequena ainda, nem percebi que o cachorro de uma vizinha, procurado à exaustão, tinha se instalado sob a minha poltrona, enquanto eu devorava Reinações de Narizinho. E quando, já mais velha,  um incêndio se alastrou numa Casa de Saúde próxima ao nosso prédio? Todo mundo passou a tarde assistindo de perto, enquanto eu só fui ser informada do ocorrido à noite, pelo noticiário, lendo que estava, numa sentada, Dublinenses. Paixão não compreendida pela minha mãe. Larga esse livro, menina, vá brincar lá fora, tomar sol, fazer um esporte! Vem ajudar aqui, já que você está à toa! Rogava que respeitassem meu jeito de ser, sempre com um exemplar à mão e outros tantos, novinhos em folha, na estante.

Apreciava habitar as entranhas da fantasia. Tanto, que via mais verdade aí do que nos fatos, pessoas, relacionamentos. Crianças (suas brincadeiras), adolescentes (seus jogos), adultos (suas conversas), muito interessantes, mas sempre menos do que essas viagens, onde podia dar asas a imaginação, um exercício libertário por excelência. Comecei a observar que o oposto da vida não seria a morte, mas o medo. Poucos querem correr o risco de soltar as amarras, velas ao vento. Por que não reagir às tragédias? Deveriam elas nos paralisar, bloquear nossa sensibilidade? Teríamos que nos curvar aos traumas que nos acometem? Rendermo-nos à afirmação de Adorno, segundo a qual escrever poesia após Auschwitz é obsceno?

Fui aprendendo a relativizar, a me rebelar contra o habitual e dominante pensamento maniqueísta, a conviver com características complexas e organicamente opostas. A escutar e aceitar a polifonia do mundo, vozes, à primeira vista, irreconciliáveis. A trocar toscas certezas por infinitas dúvidas, porém vivificantes. A interpretar n personagens, como se reencarnasse n vezes. Ousava perguntar: preciso seguir a rota que me foi imposta? Satisfeita ao ver, sobretudo, como eu, viajante, me modificava durante a travessia. Partia sendo uma e voltava sendo outra.

Como seria de se esperar, era ambivalente em relação a hóspedes. Aqui damos de comer e beber, sábio lema de alguns albergues que abrigam os peregrinos em Santiago de Compostela, ao longo do caminho. Apesar de curtir o ambiente aquecido pela conseqüente troca de afeto, pelas novidades, pelos ‘causos’ contados, ficava indócil, escrava de polidas sociabilidades, ansiando pela alforria do tempo que escorria. Tal qual uma bailarina se exercitando, necessito de muitas horas diárias para me dedicar ao mal de Montano do qual padeço, meu vicio, desde o o início. Mas afinal, pra que serve tanta literatura? Nenhuma finalidade ou intenção, puro ludismo. Embora não deixe de ser um ato de esperança, pois a fantasia é a sustentação do desejo, é ver a mais graciosa das mocinhas  onde há apenas um atleta peludobrincou Lacan. Nem divertimento nem evasão, só uma outra forma de examinar a condição humana.

Sempre me deixo afetar pelo que leio. Assim como ao despertar de um sonho tenho necessidade de associar a partir dele, ao ler dialogo com o autor, em intensa e constante interlocução. Grifo palavras, sublinho expressões, trechos, faço anotações em suas margens. Gostava de contar para alguém depois, compartilhar meu Eldoradomas nem sempre era bem-vinda. Descobri que o ouvinte se liga se quiser, para de acompanhar, pensa em outra coisa (pelo olhar ele se trai), se fixa mais em você, no seu jeito de ser, do que no que está sendo dito.

Uma ilusão pensar poder passar aquilo que sentira lendo, a emoção, através da leitura em voz alta. Como naquele ditado, eu apontava a lua e eles só viam o meu dedo. Se tanto. Recordo-me de um ensaio de Montaigne, onde ele fala que devemos morar num lugar com vista para um cemitério porque mantém as prioridades da vida em perspectiva. Pois bem, meu lar voltado para a ficção me fez prestar mais atenção à realidade, a ouvir mais e melhor o outro. E, muito cedo ainda, permitiu descobrir-me além de sujeito, mulher, esse conceito impermeável a todo saber que se produza a respeito.

Ana Guimarães

quarta-feira, 10 de abril de 2019

NADA

Hoje é aniversário do meu amor, meu Riobaldo, aquele que tem feito a travessia da vida comigo.
Uma homenagem:

NADA

Amar
assim feito eu e você
é um verbo
mais que perfeito
seja pretérito
presente
ou futuro
é imperfeito
nada que dê jeito
que acalme
que resolva os contrários
nossas diferenças
(tem que ‘ter peito’ pra se amar assim)

rusgas a toda hora
rugas
o tempo passa
a pele vira uva-passa
muda a estação: neve até nos cabelos
mas no coração, verão
mesmo depois de ‘um dia de cão’
eu ainda a choraminguar
vem uma noite nova
minha mão na sua
cheia, a lua
você crescente
e é sempre bom, como pão quente

nenhum complemento
não importa o elemento:
metade da maçã
alma gêmea
yin & yang
completude?
só no espelho, sabemos
não somos mais dois fedelhos
o amor é guerra, ainda que do bem
nada de zen
a palavra é sem, é falta
escrevo à lauta
e não preencho o vazio

apenas arrulho
sou rola
não rolha, já disse
nada tampono
esperança disso
seria criancice
loucura
coisa de poeta
quando entra em alfa, em beta
e canta na sua gaiola (o papel)
caminho inverso ao trilhado por Zola:
voltar as costas ao Real
e se inscrever na elegia romântica

Ana Guimarães

sábado, 6 de abril de 2019

Justine

JUSTINE*

Aquela cadela ‘era o cão’
Quem ela pensava que era, uma dama?
Subia na minha cama como se fosse dona
Mais parecia uma gata que sabe de seus direitos
e a todos encanta, no salão

Olhava-me como se soubesse quem sou
O que será que ela via?
Obedecia-me. Eu era o patrão, ela a manda-chuva
Em dias de sol: ‘raios e trovoadas’, ela só aprontava
Corria sobre o canteiro de rosas,
um estrago e tanto
Subia no varal, pegadas por toda a roupa,
deixava a empregada louca
Mas era só eu falar chega, acabou
e ela ficava quietinha

Às vezes saltava sobre mim, latindo feito fera
Tomava meu pulso entre os dentes, pura ameaça, todo mundo olhando
Não era nada, uma palavra minha 
e acabou a brincadeira

E quando eu saía? Gemia, era patético porque quase humano, via-se que sofria
O focinho tremia, pequenos ganidos produzia, quase fonemas
Pode-se dizer que ela tinha a linguagem, ao menos os esforços para expressá-la
mesmo que só nas horas de intensidade emocional
(sua vantagem sobre certos humanos: não falava o tempo todo, à toa)

Ao lado da mesa ficava, sempre, 
à espera de migalhas, restos da refeição
Não que estivesse faminta, tinha a sua ração
Para se sentir parte da família, em comunhão

Um dia a perdi 
Ganhei um luto que jamais tirei, por dentro
Vista azul, amarelo ou branco
É sempre preto

Ana Guimarães 
* Foto de minha autoria.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Sonho meu

SONHO MEU

Adivinhara sua presença, mas quando a vi não acreditei, estaria sonhando? Não me belisco, toco em seu pelo de leve, no temor de que o toque possa dissolvê-la, sua imagem, minha alucinação? Por um breve minuto cruzamos o limiar entre o mundo-como-tal o mundo-como-idéia. De repente ela se afasta, busca espaço para se alongar, como um gato. Estica primeiro as patas dianteiras, depois as traseiras, empinando o rabo, o focinho quase beijando o chão. Parece bocejar. Caminha para longe, porém dentro da minha vista (e eu da dela, evidente, todo amor é recíproco). Lá repousa o corpo com graça, cabeça erguida, olhar altivo, a desprezar a continuação do carinho, independente alma felina, teria assim ressuscitado? Ou seria um caso de vida paralela?

Se ela não me assustava nem quando, repreendida, ameaçava me morder, não seria agora, não importa em que dimensão esteja. Seus olhos brilham na escuridão do quarto. A pequena poça junto à janela obriga-me a levantar para pegar um pano de chão real que enxugue o xixi imaginário, ralhando com ela, que foge, se escondendo. Lavo as mãos na esperança de que a porta do banheiro seja empurrada, a qualquer momento, como outrora fazia, pedindo desculpa, oferecendo companhia.

Volto ao silêncio da noite, ainda esbravejando, para encontrá-la na cama, enovelada nas cobertas. Enche-me de lambidas, que eu termine com a zanga. A comoção é simultânea à coragem do tira-teima: um toque no interruptor do abajur e nada. Apago a luz decidido a dormir, a barrar essa obsessão que persiste e insiste, contudo logo a ouço divertindo-se sozinha com brinquedos de borracha, especialmente os que fazem barulho. De volta à ilusão. Melhor assim, de que serve o canteiro de rosas intacto, sem as suas investidas? A roupa estendida no varal, a salvo, secando? Comer sem ela ao lado, implorando migalhas? Sair (ou chegar) sem ganidos e latidos? E Justine, onde está, chorará por mim? Seu choro é tão justo e comovente quanto o de um homem? E se fosse um bicho inventado, feito apenas de papel e tinta, vocês se interessariam menos?

Sofro há um ano, desde que a levaram. Não é que o luto seja necessário, ele é compulsório. Não quero mais ser medicado, para que? Suas aparições, oníricas ou em vigília, continuam. Chega de pintura, desenho, escultura. Destas malditas colagens, quadrado ou triângulo, vermelho ou azul, tanto faz, para fugir do negro círculo da dor! Prefiro o nada do retângulo branco da página vazia, como já disse mais de uma vez, ninguém me ouviu. Roubei bloco e caneta, e aqui estou. Precisava contar o que (não) se passa. Relatar por escrito, prazer solitário onde se prescinde do objeto amado. Se ele não existe mais, pelo menos para mim, a fé se impõe. Fé na ficção, para torná-la realidade. A verdade não é uma flor num canteiro, esperando ser colhida – ela é efeito de palavra.

Escrever é captar o que não existe. Uma outra modalidade de organização de sentido. Vontade criando possibilidade. Mágica, ilusionismo. Finjo a dor que deveras sinto. Um texto vive per se, e tem vida eterna. Aqui estou sem mim, sem ti, mas feliz com esse fantasma. Puro instante. Sem passado (lembrança de presença), sem futuro (expectativa de ausência), só assim não dói. Se crio poemas, crônicas, contos posso recriar meu animal de estimação. Transfiro os cuidados que tinha com ele para os cuidados com as letras, um enlace substitutivo, onde salvo memórias da experiência. Minha cadela morta, ou distante, em mãos alheias, quase dá no mesmo, é como uma sombra que tento trazer de volta, torná-la apreensível. Chego na fronteira, chamo, e ela atende, vem. Um sonho louco, mas qual não é? 

Ana Guimarães