domingo, 11 de agosto de 2019

PAI


Hoje é a terceira vez que venho ao apartamento depois da sua morte. Nas duas primeiras não puder olhar nada direito,  apressada que estava em pegar documentos para o processo burocrático da ocasião. Agora estou atrás de mais alguns, mas não afogada na pressa de encontrá-los.
À luz do abajur (a de cima, do lustre da sala de estar, queimou), tomo fôlego para embarcar nesse túnel do tempo, suportar as vertigens que me esperam ao me deparar com lembranças que povoam o espaço, hora solitária que não posso nem quero dividir com ninguém.
Um inebriante cheiro de comida sendo refogada na vizinhança quase me faz perguntar: o que vai ter pro jantar? Na cozinha, o silêncio. Tampa de fogão arriada. O insistente e delicioso aroma transporta-me às delícias culinárias de minha mãe, nosso único ponto de identificação, mesmo assim com atritos, ela nunca se conformou com a invasão  de seus domínios pela filha sempre mais afeita aos livros do que a qualquer outra coisa.
Perco-me em memórias olfativas e gustativas que logo carreiam as visuais. O peixe frito da feira de quarta-feira, até hoje no mesmo dia e lugar. Os incomparáveis bifes acebolados. O bobó de camarão. Era uma cozinheira de mão cheia, daquelas que só sabem cozinhar com fartura e com ingredientes de qualidade. Ficava doente quando alguém lhe pedia uma receita e a modificava inteiramente, visando um menor gasto.
Volto pelo corredor, com todo o barulho interno contrastando com o silêncio exterior, e no meu antigo quarto de solteira abro a escrivaninha com a fechadura emperrada, detendo-me em papéis que há muito não são mexidos. A poeira me faz espirrar sem parar. Um gaiato, de algum lugar, grita saúde. Respondo amém, rindo. De uma caixa de papelão saem reclames diversos, os números de telefone ainda com sete algarismos. Meu convite de formatura, um santinho da primeira (e última) comunhão, telas desbotadas, pintadas por mim na aula de arte, tapeçarias não terminadas, retratos em preto e branco.
Depois empurro a porta apenas encostada do quarto do casal e me sinto como uma criança espionando-o na sua ausência, violando sua intimidade. Posso me ver menina brincando de mulher adulta, sapatos de salto alto, colares, batom vermelho borrado na boca infantil, no pescoço uma echarpe de plumas, ainda não ecologicamente incorreta. Tudo isso está aqui na minha frente, quieto, mudo, mas falando tanto.
No armário de mamãe, entre cabides de soutache, velhos óculos de grau e uma bola de marfim para cerzir meias, descubro um baú com cartas de um para o outro. Jamais soube de sua existência, e minhas mãos se revestem de um respeito inimaginável ao tocá-lo. Tamanho, que o recoloco de volta, com reverência, como se fosse uma urna mortuária com cinzas, no mesmo lugar onde estava, tesouro escondido.
Na cômoda de papai, apetrechos masculinos largados, com displicência, como se o dono fosse ali e já voltasse. Um barbeador em seu estojo original, com nota fiscal, garantia e instruções de uso. Um pente de osso. Uma velha câmera kodac em bom estado. Moedas as mais diversas, num saquinho de feltro. Uma calçadeira e uma piteira. Dessa me lembro bem, o compadre a presenteara, “para reduzir a assimilação das substâncias nocivas contidas no cigarro”. E junto com elas o gosto, o prazer de fumar, brincava papai. E o que ele fazia? Era só a pessoa chegar e ele aparecia, como quem não quer nada, fumando seu cigarrinho devidamente encamisado, quer dizer, protegido. Impostura? Não. Mentira que dizia a verdade. Um agrado, um mimo ao amigo, que ficava feliz e agradecido, crente que fizera uma boa ação. Que o presente emplacara, que fora de muita utilidade. Sim, só que de outro jeito, para diverti-lo.
Não, ele não queria ser poupado dos estragos do fumo. Da pulsão de morte, desse gozo. Que acabara, inclusive, conduzindo-o a um enfisema pulmonar progressivo que o fez passar os últimos anos de vida dependente de uma bala de oxigênio na cabeceira da cama. E quando ficava minutos sem era horrível, a boca aberta como peixe fora d’água, tentando respirar, com a gente impotente à sua volta.
No gavetão inferior, no meio  de tantos postais por ele recebidos, fico tonta, precisando me sentar, ao ler um amarelado cartão, datado de priscas eras. Na frente, o desenho de uma criança com um bebê de proveta nas mãos. Dentro, os seguintes dizeres, com minha letra miúda: Pai, já sei como se faz um filho. É só criá-lo com o mesmo amor com que você me criou. Feliz Dia dos Pais, sua filha querida.
Ana Guimarães


ROTAS ALTERADAS

ROTAS ALTERADAS

Os anos mudam
as cidades
pessoas
apenas corações perdidos não veem
em sua melancolia
só ouvem barulho no nevoeiro
não pescam nem limpam o peixe
depois reclamam que não comem
que não dormem
que não amam
mas como?, se pactários do ódio
não têm é fome
é preciso tecer a manhã
amanhã, e sempre, é preciso tecer
de grito em grito
e, se preciso for, sozinho

Ana Guimarães