terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

CARNAVAL

Silêncio percorrendo a madrugada. Um galo canta no morro ao lado, e ao longe, no outro extremo do bairro, um bloco passa. O toque do telefone – puro real – rompe com o imaginário que a consome. E aí, nada ainda? Quer que a gente volte? Bobagem, sinto-me só quando ele está aqui, nenhuma companhia, já me acostumei. Morro do que vivo, de solidão. Abraçada aos livros, quando posso, apenas eles me confortam, além dos filhos. Tenho sonhado que sou um pássaro, não sei o plano de vôo, mas mal estendo as asas começo a voar. Acho que preciso acordar. Ilusão. Há quem se sinta livre porque lhe falta a própria linguagem que possibilite formular a ausência de liberdade. Como naquela piada sobre a extinta República Democrática Alemã, lembra? Aquela das cartas recebidas escritas em azul dizerem a verdade, e as em vermelho, mentira: “Tudo aqui é maravilhoso: tem emprego, moradia, atendimento médico, só falta tinta vermelha”. Ninguém está bem, não se iluda, o mal estar é inevitável. Eu, por exemplo, escrevo a noite toda, em pleno carnaval, ou você me acha com cara de quem vê desfile de escola de samba na tv, copo de cerveja na mão? Escrever é uma forma de me sentir livre. Bem que gostaria de fazer igual, mas não posso. Primeiro porque tenho minhas obrigações de mãe e dona de casa de manhã cedo, a babá e a empregada folgaram. Além disso, não sou mais criança, não agüento uma noite em claro, amanhã estaria feia, com olheiras. Você ainda é jovem, e está muito bem. Imediatamente ela se transforma. Ergue os ombros caídos até então, tira do olho uma mecha de cabelo, bonito mesmo em desalinho, prende atrás da orelha. Olha-se no espelho. Seu rosto se ilumina. O roupão entreaberto deixa ver a boa forma com que a genética lhe sorrira, ainda bem, pois odeia exercícios. Ouvindo-se, recorda: uma doçura de voz, ele dissera um dia. Desanda a falar, num tom mais alto do que o habitual. Logo a filha mais velha, sono leve, vem reclamar, pedir silêncio. Sussurrando, daí em diante, conta dos carnavais do passado, das idas a Petrópolis, das fantasias, dos bailes, do lança-perfume. No início apenas os outros cheiravam, depois por que não? Dava uma euforia que só seus partos lhe proporcionaram, nunca mais! Agora sinto-me exilada do mundo, como se uma velha aliança comigo mesma tivesse se rompido, algo sido queimado, porque condenado. Foi ele dizer que tomaria conta de mim para sempre, e eu começar a morrer. Na minha singularidade, na minha sadia estranheza. Sem mais possibilidade de mudança, de movimento... O tempo a escorrer, feito naquele quadro de Dali. O amigo escutando suas associações, reflexões, confidências. Súbito, se cala. Cansada, escorrega o corpo sentado, as pernas esticadas, os delicados pés de unhas tratadas quase saindo das chinelas de dormir, a cabeça recostada no espaldar da cadeira, pálpebras semicerradas, distante. Ele espera. Ela recomeça, até que as pausas vão ficando cada vez mais longas. O bebê chora. Tenho que desligar, o dia está amanhecendo, preciso atendê-lo. Ciao, menina, sua vida parece um conto de Tchekhov!


Ana Guimarães