domingo, 16 de agosto de 2020

SONETO DA DEVOÇÃO

SONETO DA DEVOÇÃO

Solteira, jornalista, única sobrevivente de um acidente de carro com a família quando ainda criança. Tendo herdado vasta biblioteca, lê, com voracidade, desde então. O que não a impede de cultuar o corpo numa academia, cinco vezes por semana. Dona de uma beleza rara, caminha com desenvoltura, com um olhar de promessas que sempre se cumprem. Distribui prazer com generosidade, mas se alguém esboça querer um envolvimento maior, desconversa. Jamais experimentou um orgasmosegredo não confidenciado nem mesmo para melhor amiga, que inveja suas numerosas conquistas amorosas. 

Divorciado, sem filhos. Tão fortemente apegado às origens que embora residindo no Rio desde o término da infância não consegue perder o irresistível sotaque mineiro. Atraente, entre outras coisas, devido à união de fortes traços masculinos a um discurso pacífico, doce, delicado, quase feminino, moldado em anos passados num seminário. O que não o impede de ser fascinado por armas de fogo, tal como seu paique teve morte trágica num acidente de caça. Toca piano numa casa noturnagarrafa de uísque ao lado, para relaxar e se desligar do trabalho como corretor da Bolsa, onde também faz uso de cocaínaAtribui a essa ciranda químico-emocional a embaraçosa impotência que o visita. 

Há muito ele não se sentia assim. Desde o primeiro encontro, ao serem apresentados, sentiu como se uma aura os envolvesse, um espaço mítico de onde todos os demais no recinto pareciam estar excluídos. Logo, como de costume, ela emite sinais para que ele avance. Sem sucesso. Romântico, mal percebe, acha que é cedo, teme assustá-la. Prefere apenas lhe fazer a corte. Ela se recolhe e espera.

Uma noite o grupo de amigos estica num bar. Altas horas, todos se vão. Ele se encaminha para o carro, ela o segue em silêncio, qualquer palavra seria supérflua ou excessivaÉ  véspera de Natal e a excitação que toma conta da cidade ínfima comparada a deles.

Em casa, diligente como expedicionário guiado por um mapa, ele percorre o novo território passo a passopreliminares das quais ela só se lembra de ter desfrutado nos tempos da adolescência. Ao tentar retribuir descobre uma pistola escondida sob suas roupas. A cidade anda perigosa, mas isso não, questiona, recuando amedrontada, como numa premonição. Ser interpelado dessa maneira o desconcerta, e logo ele se vê duplamente desarmado, a paixão o abandona naquela posição embaraçosa, quase ridícula, o corpo não reage ao que mente deseja. Enquanto se veste e se recompõe, decepcionada e confusa, já ouve o som do piano invadindo todos os cômodos da casa, todos os seus sentidos.

O que quer que tenha havido não vai se repetir, diz ela chamando-me para a cama de novo. Hesito. Rindo de meus pálidos receios ela me convence e não me arrependo. Envolvente e sedutora, sabe como cativar, entremeando versos e palavrões, na mesma medida, às nossas carícias, parece mais acostumada a realizar fantasias e nada falar das suas.

Meu coração queima e a ela dou carinhos que nunca a outra dei antes. Essa exaltação de sentidos se confunde com felicidade. Mais tarde, sozinho, não posso deixar de observar que ela beija muito bem. Bem demais. Beijo técnico (o que quer que isso signifique), nada a ver com beijo de quem está envolvido. E transa do mesmo modo, preocupada com seu desempenhoexcelente, por sinal, com um certo distanciamento crítico, como se estivesse olhando a coisa funcionar, com ou sem espelho. Parece uma puta, ou minha idéia do que isso seja, afinal tinha estado com muitas mulheres sem nunca ter precisado pagar por uma, nem quando garoto.

Com o tempo e a convivência me dou conta de que para me relacionar com ela só me despindo de expectativas, e isso não estou disposto a fazer, embora também não ouse pensar em perdê-la de vista. Ela própria se incumbe de desfazer minha ilusão de ser correspondido. Não parece querer compromisso algum, só praticar jogos sexuais sem entrega, num eterno deslocamento de parceiros. Já demonstrou desprezar qualquer tipo de sentimentalismo e a cobrança dele resultante. Confessa, sem pudor algum, estabelecer tênues vínculos com seus amantes como uma defesa, para quando quiser levantar âncora e partir. O amor é um privilégio que acarreta responsabilidades com as quais ela não parece querer/poder arcar.

Depois de certo tempo os homens tornam-se previsíveis, repetitivos, diz ela. Assim, sem mais. Com aquele sorriso encantador que termina com uma mordida no lábio inferior, como se estivesse mentindo. Adriana estava mesmo pensando: assim não corro o risco de descobrirem que sou uma fraude.

No lugar da intimidade, agora o esgarçar da confiança, o ciúme. Temo por essa fenda que se abre na caso idealizado por mim, que por aí escorra Adriana, levando junto minha auto-estima, meu equilíbrio, minha virilidade reconquistada.

Vamos para a noite, agitar? Viver freneticamente a afastava do perigo de viver, Adriana adorava inferninhos. Para azarar na minha cara. Cadela, ainda perco a cabeça e lhe dou um tiro. Luís torce o nariz. Não quer sair, está mais a procura do paraíso. A dois, de preferência.

Não complica, Luís, não precipita as coisaslá vem você querendo discutir relação, isso é coisa de mulher, é seu traço mais chato. Fica na sua.

Como ficar na minha e deixá-la ir embora? Sabia que não seria para sempre, mas tão rápido assim? Curou escuridão da insônia, o eterno afogar no poço da depressão alcoólicaagitação maníaca de droga-adictominha impotência generalizada para a vida, mas criou nova dependência, mais grave: a ela. Meu único vício desde então. Meu bemmeu zen, meu maltoco e canto a velha canção. De dentro da gaveta entreaberta, a arma me fita.

Ana Guimarães

 


domingo, 9 de agosto de 2020

PAI

 Que falta, meu pai! Da sua mão sempre quente, pronta para acalmar a minha. Da segurança que transmitia. Meu guarda-costas. Com você por perto, tinha certeza, nada aconteceria.

 Sempre pronto para me defender, incentivar e elogiar as medalhas penduradas no bolso do meu uniforme da escola. Ficava orgulhoso, franqueava sua biblioteca, sem censura. Liberava seus cigarros, vários maços abertos espalhados em lugares estratégicos da casa. Mesmo assim, passado o vestibular, não mais fumei, embora o aroma, que para tantos ex-fumantes seja repulsivo, para mim é como um túnel do tempo, transporta-me à sua doce presença, sempre com um entre os dedos, até nas poucas fotos que ficaram. 

Oferecia-me seus vinhos, sob o olhar de desaprovação da minha mãe. Como vc só bebia uma taça por refeição, eles ficavam lá, esperando minha provadinha. E enquanto ela gritava quando sabia de um novo namorado meu, vc sorria, perguntava o nome do “sortudo” e eu ganhava um abraço de confiança nas minhas escolhas.

Nossos parentes, amigos, vizinhos, conhecidos eram brancos. Mas um dia eu trouxe minha colega, uma das melhores alunas da turma, para almoçar e fazer um trabalho comigo, depois das aulas. Negra. E vc pai, foi receptivo, caloroso, conversador, quase divertindo-se com a ousadia que chocou meio mundo.

É isso, pai. Eu nem gostava de passar férias todo ano em Brasópolis, Sul de Minas, me ausentar do Rio por tanto tempo, perder praias e saídas com o meu grupo. Nem curtia frio, cansar de subir e descer ladeira, chupar frutas quentes no pé (acostumada que era com geladeira), não ter cinema nem teatro para ir. Mas era a sua família, por isso eu ia. E tb pelo feijão no fogão a lenha da sua irmã, tia Quinha.

Obrigada, pai, por tudo. 

Ana Guimarães  

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

MONA LISA

Acabei de assistir à gravação do programa Globo Repórter de ontem, que celebrou os 500 anos da morte do gênio do Renascimento, Leonardo da Vinci. Foi uma emoção só rever Florença, a cidade que conheci rapidamente em 2000, o suficiente para me apaixonar e jurar voltar com mais calma, o que pude fazer em 2009. 
Aqui minha homenagem, um Cut-up do texto de Freud “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância”. 

MONA LISA

Sorriso enigmático. Olhar de esguelha. O que quer uma mulher? Não sei, nunca quis me aventurar, temo não compreendê-la. Desconfio que nem ela sabe falar do que deseja. Cansei de perguntas, desloquei minha libido para a pesquisa. Os por quês da infância se arrastando pela vida afora, derramando-se sobre todos os assuntos, infinitamente. E você fica aí rindo. Para mim. De mim. 

Ah, Caterina, desde que aquele abutre – símbolo da maternidade, conheço bem a fábula sobre o único sexo dessa ave e sua autofecundação – desceu sobre mim em meu berço, abriu-me a boca com a longa e doce cauda, fustigando-me várias vezes os lábios, nunca mais fui o mesmo. É só uma recordação, bem sei, na verdade um resto de lembrança que talvez preencha a lacuna jamais explicada. Aquela coda invadindo minha boca, fantasia de fellatio, alusão à amamentação, primeira fonte de prazer. Uma cena de rara beleza. Eu, filho de abutre, nada mais. Como os primitivos, sem saber o que tem a ver o pai com a origem dos bebês, com o nascimento. Pensei, muitas vezes, na ausência dele, que você era tudo, a MUT egípcia, dotada de falo, completa, embora quando trocávamos de roupa no mesmo aposento isso não se revelava. Queria você me beijando apaixonada e repetidamente. 

Por que sorri assim? Sorriso notável, fascinante e misterioso, reencontrado no belo rosto da florentina Mona Lisa Del Giocondo. Monolítico retrato. Sorriso leonardiano, assim conhecido para sempre. Por sua causa passei, em meu ateliê, a admitir só alunos bonitos, não me importava talento, nenhum se tornou pintor de importância. E como chorei sua morte! Com tristeza, mesmo sem derramar uma lágrima. Sorrindo, como você na tela. A perda do meu primeiro e único amor. Esfinge-sorriso, contraste entre reserva e sedução, ternura e sensualidade, destruindo quem não a decifra, eu. 

Longos anos pintando, e ao final, você ainda estava inacabada. Não fui capaz de entregá-la a quem a encomendou, levei-a comigo numa viagem à França, onde meu patrono a adquiriu para o Louvre. Que poderoso fascínio exerce sobre mim! Reproduzido em todas as minhas criações, não consegui me libertar desse sorriso distante. Mulher idealizada e nunca possuída. Que me cumulou de carícias só para se consolar da ausência de um amor. Não me canso de olhar esse quadro, mesmo distante de mim, da pobre camponesa que deu à luz o filho cujo destino seria pintar e sofrer. 

E tudo o que eu queria era ser/ter l’ucello (um pássaro, e também o órgão masculino). Na impossibilidade, construí vários brinquedos mecânicos, modelei animais em cera, todos voavam. Dotei de asas um lagarto de verdade, com ele me divertia em assustar os amigos e exorcizar fantasmas. Difícil me desligar da infância, quando me entreguei à sedução de seus beijos, que cedo  despertaram minha sexualidade. E para quê? Preso para sempre à zona erógena da qual nunca mais me libertei, a boca. A esse sorriso.

Ana Guimarães