segunda-feira, 27 de abril de 2020

O NOVO MANTRA: #vaipassar

O NOVO MANTRA: #vaipassar

Será que tudo passa mesmo? Ou tudo ficará? Na memória também nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. Por mais otimistas que sejamos, a maioria já sofre as inevitáveis dificuldades geradas pela pandemia. Isolamento social, fechamento de escolas, empresas e da maioria do comércio são apenas um pálido prelúdio do que está por vir. Lembranças que não vão poder jamais “passar”, serem apagadas. É com tristeza que me dou conta disso e sou tomada por um sombrio pressentimento de graves problemas.
Homens públicos, cheios de certezas, portam-se de maneira contrária no enfrentamento da situação. Nesse ambiente carregado de perigos e ameaças, tensos e inquietos, a tudo assistimos, impotentes. Resta-nos fazer humor, e não amor ou guerra. Só memes nos consolam, e compulsivamente os criamos, curtimos e compartilhamos nas redes sociais.
Não seria difícil concluir que se não fossem, com urgência, assistidos pelo governo, os mais necessitados, destituídos de recursos, privados de ganhar o pão de cada dia, poderiam perder o parco equilíbrio emocional, desatar laços afetivos, agredir e/ou se auto agredir. Alguns, desesperados, poderiam partir para pilhagens, e forças policiais teriam de ser chamadas para evitar que a violência e o caos imperassem, garantir a lei e a ordem.
É lícito salvaguardar a própria liberdade de pensamento e conduta diante da ameaça do coronavírus, transgredir normas ditadas pela OMS?  Não se pode ignorar que o direito de ir e vir de uns pode significar o adoecimento e morte de outros. Quem não acredita na virulência do covid19 pode cair doente daí a quatorze dias (tempo de incubação), levando junto um rastro de infectados por onde andou, já que estava, ainda, assintomático. Os “corajosos” de hoje, participando, despudoradamente, de aglomerações poderão ser os mortos de amanhã. Se eu acredito em tudo que escrevi nesse último parágrafo? Não sei.
Habituamo-nos a engolir notícias ruins na hora das refeições, o horror instalado em todos os lugares do mundo, impossível escapar do seu alcance. Tantos mortos, tantos infectados, num macabro cômputo diário, verdadeira obsessão. A vida parou. Quem sabe os ETs dominaram a Terra, tomaram supermercados e farmácias (faturando como nunca) e estão engabelando a gente com “Fique em casa” ou “Vai passar”? Presos para sempre, nunca mais sairemos. Delivery virou moda, até para ovos de Páscoa!
Deixo aqui, para reflexão, o depoimento de uma jovem amiga. “Fui valente na primeira semana, achando graça de quem dizia estar entediado ou muito ansioso. Não obtive qualquer redução no valor que pago, com pontualidade, pelo apartamento onde moro, há 8 anos, mesmo a proprietária sabendo que sou profissional liberal e trabalho como autônoma. Consegui apenas um irrisório desconto no aluguel do consultório onde atendo como fisioterapeuta (portanto impossibilitada de trabalhar on-line) e continuei com a despesa do condomínio, é claro. No começo, encarei com galhardia a tal operação desinfecção das compras que chegavam, mas logo me deu vontade de gritar: socorro, alguém pode ao menos lavar esses legumes todos para mim? Cheia de bandaids nos dedos cortados, comecei a pedir comida pelo iFood. A rinite me atacou de tanto lidar com material de limpeza. E passar a roupa já me rendeu três queimaduras nas mãos, agora estou tendo que chamar a lavanderia. Adquiri coisas que jamais pensei ter em casa, não teria tempo nem saberia usá-las: amolecedor de cutículas, alicate, base para unhas, esmalte, acetona, cera depilatória, tinta, água oxigenada e luvas para pintar os cabelos. E as experiências, após alguns ensaios e erros, deram mais ou menos certo, cheguei a me sentir vitoriosa. Mas de repente, tomei não um, mas vários sustos. Foi quando começaram a me pedir por WhatsApp o pagamento por serviços que eu estava prestando a mim mesma. Como assim? A diarista, a cabeleireira dona do salão, a tinturista, a manicure, a pedicure, a depiladora e a professora de Pilates, todas me enviando seus dados bancários, exigindo que eu depositasse em suas contas o equivalente ao que ganhariam se estivessem me atendendo. Oi?”

Ana Guimarães

sexta-feira, 10 de abril de 2020

DIAS DE RECLUSÃO

Como suportar a asfixiante atmosfera desses tempos de reclusão social? Invejo quem diz estar sofrendo de tédio. Nos últimos dias (vinte e sete!) não tive um minuto sequer de descanso, quando penso que a onda de horror terminou, levanto a cabeça e lá vem outra, maior ainda, ameaçando me afogar. 
Somos informados, com toda pedagogia, que o tal isolamento horizontal é o mais adequado no combate ao novo coronavírus, para minutos depois, sem precisar trocar de canal, só de infectologista, que o vertical seria o melhor, antes que a recessão nos mate de fome. As autoridades se estapeiam como moleques de rua, defendendo seus contrários pontos de vista, ambos aparentemente bem fundamentados, pelo menos para nós leigos e que não temos bandidos preferidos. 
Percebo que, com alguma frequência, comecei a ultrapassar a barreira da saúde mental, por sorte tenho conseguido voltar. A mesma vida real que nos fixa à sanidade, as atividades domésticas repetitivas que não podem ser adiadas, por vezes nos enlouquecem, lembrando aquela antiga pesquisa que mostrava que indivíduos com um mínimo de inteligência não conseguem se adaptar a tarefas rotineiras. Já me cortei, me queimei, queimei comidas e roupas, já quebrei louças e copos num número maior do que em toda a minha vida. 
Saber que “tudo passa, tudo passará” não é consolo, e enquanto dura? Todo dia me preparo para esse meteoro que pode sair da sua rota e me atingir ou a um ente querido.
Saudade de ficar em casa por livre e espontânea vontade. Saudade da minha liberdade de ir e vir. De abraçar e beijar netos, filhas, genros, amigos, vizinhos e conhecidos, com eles trocar carinhos e farpas, o normal. De encontrar comerciantes do bairro, que me conhecem há décadas, ouvir queixas e confissões como se no divã ou confessionário estivessem. Flanar pelas ruas, sob árvores frondosas, avistando famílias de micos saltitando nos fios. Assistir o vôo rasante de um beija-flor na piscina, e, da janela, apreciar bem-te-vis, sabiás e gaviões voando baixo. Curioso que, diferente dos registros de outras partes do mundo, aqui eles se recolheram. Não ouço nem mesmo a gritaria das maritacas em bando. Todos em silêncio, será que aguardam o alardeado achatamento da tal curva, a legalização do protocolo da cloroquina ou a descoberta de uma vacina?
Em sucessivas e fracassadas tentativas busco refúgio nos livros começados e sempre interrompidos. 
Durmo e sonho que desço a escadaria de uma imaginária estação de metrô que me levará embora daqui para um lugar seguro, fora do planeta. Depois da viagem, ao chegar à superfície, guardas se aproximam, não mais para obrigar ninguém a ficar em casa, só para aplaudir os sobreviventes. Cansada, não consigo mais cantar, dançar ou sorrir. E então acordo. Se ainda não posso sair da prisão, preciso de mais vinho, como a senhora da foto.
Ana Guimarães