segunda-feira, 13 de maio de 2019

BALAS PERDIDAS

BALAS PERDIDAS

Por que temer o simulacro
se o que se ergue contra o nada
é isso, a literatura?
aquilo que criamos, quando sós, num quarto
apenas nós e um micro, eis a pintura
(não mais um gato e uma máquina de escrever
como queria Cortázar, em 62, àquela altura)
a contar fatos que não aconteceram
esperando que o fato de contá-los
– letra-coágulo-sentido –
estanque o sangue
pare a hemorragia
 
Um peixe grande aí talvez possa ser fisgado
se finjo que essa linha não é minha
acordei tarde, nem fui à pescaria...
e ela pertence mesmo a outro que não eu
mal a reconheço na retina
assim que a imagem aparecer, tentarei analisar
e o racional só faz falsificar
o pensamento é inútil
 
Pode até ser um empurrão na porta
que se abre e me leva a uma esquina
a entrever várias direções, inclusive a contramão
esquecendo que pensar é destruir
grande chance de a verdade ruir
é ficar cada vez mais distante de si
nada a fazer, então, com “laranjas chupadas
debaixo do pé, naquela tarde, na fazenda”
a não ser deixar, do olho, a lágrima escorrer
 
Na rede estou, sou caça das palavras
que me caem em cima, matando, de vez, a coisa
passiva, pasto, passagem
garrafa ao mar, missiva
não fujo, não me escondo, deixo-me atravessar
por essas balas perdidas
 
Ana Guimarães