
Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária.
(Cortázar - Instruções para subir uma escada, em Histórias de Cronópios e Famas)
(Cortázar - Instruções para subir uma escada, em Histórias de Cronópios e Famas)
Não acredito em literatura de Internet. Internet é veículo. De comunicação. De toda sorte de escritos, uma diversidade também encontrada nos livros. Não me parece, como preconceituosamente se crê, que tenha mais lixo sendo feito num lugar do que no outro. Internet é instrumento, ferramenta (mais uma) que possibilita, inclusive, a democratização do conhecimento. Sabemos, por exemplo, que no Portal Domínio Público – além de uma biblioteca com mais de mil obras que já têm autorização legal para publicação, permitindo a sua impressão e facilitando, com isso, por tabela, a difusão cultural e a inclusão social – qualquer autor pode ter seu texto digitalizado e, portanto, disponibilizado para divulgação, para ser acessado pelos internautas quando assim desejarem, com gratuidade. Única cláusula de restrição: sem fins comerciais. E resguardando-se a autoria, é claro.
Tenho observado, hoje em dia mais do que nunca, que escrever é abrir nova perspectiva de entendimento para algo que, até então, não comportava inteligibilidade, ou ao menos não-toda (sempre, e para nosso alívio, por mais que se revele, algo resiste e insiste). Tentar dar conta de uma experiência difícil de ser dita, tanto aquilo que nos persegue quanto o que nos escapa, o excessivo e a falta. Fazer diferença. Não uma diferençazinha de forma, porém a escrita de uma diferença. Como uma impressão digital: mais pessoal e intransferível impossível, pois a linguagem não expressa o sujeito, ela o constitui. Isso explicaria, em parte, o boom dos blogs, numa época em que a massificação predomina e as subjetividades são ameaçadas.
No entanto, diz-se que a arte (a literatura incluída) não comportaria engajamento moral, político ou religioso, todos sintomáticos de fechamento. Ela os dispensaria. Não se trata de impessoalidade: um texto livre engaja-me sem que eu precise dizê-lo. Mas seria algo que ultrapassa a realidade, evita as malfadadas referências explícitas às questões sociais. Clarice Lispector teria respondido, certa vez, quando questionada sobre sua alienação ante a miséria do povo brasileiro, que isso era muito óbvio e ela não escrevia sobre o óbvio.
Criação é transgressão por definição, não pode ter limite. Xô para essa hipocrisia do politicamente correto que beira o fascismo! Um controle vigilante, uma censura prévia corre o risco de engessá-la. Fraturas no establishment são esperadas e até desejadas. Uma charge, por exemplo, nutre-se do real, do cotidiano para transcendê-lo. Não existe humor a favor, humor é sempre contra: senão, que se proíba logo tudo! (E a ironia?)
Porém, dúvidas me assaltam, e não são poucas. Ainda vigora aquela tese segundo a qual quanto mais ficção, quanto mais opacidade mais literatura com L maiúsculo? (Como se a realidade fosse menos opaca, como se lembrança tivesse selo de fidedignidade...) Um texto ultra-real, cru, de uma naturalidade exacerbada, com um conteúdo confessional em estado bruto, mal trabalhado seria considerado limitado? Fernando Pessoa dizia que imitar a natureza não quer dizer copiá-la, e sim copiar os seus processos. Os porões do desejo (sexual, agressivo) quando visitados sem a lanterna da fantasia podem se revelar indigestos? Ainda Pessoa: “... qualifico de insinceras todas as coisas feitas apenas para pasmar, onde não passe o mistério da vida”: vale chocar por chocar, pura e simplesmente? Porque isso dá ibope, sabemos.
A mão que corrige não é a mesma que escreve. O inconsciente cria, o ego edita. Mas como, se o tempo – ou melhor, sua rápida fruição hoje em dia – parece ser um empecilho para o reencontro da palavra como objeto a ser burilado por um artesão, por um artífice? Num primeiro momento, o que impera é a construção (per via de porre), a seguir vem (precisa vir) talvez o principal: revisar, tirar o excesso, como o escultor (per via de levare). Mas se tudo é consumido com voracidade (os posts se sucedem numa freqüência absurda), há uma dificuldade, senão impossibilidade, disso acontecer.
Depois de muito rodar por aí percebo a inexistência do que possa ser conceituado como literatura contemporânea na rede, ou algo do gênero. A falta de algum elo formal ou temático, um traço que aglutine, por identificação, os autores, seus textos – seria exatamente isso que a caracteriza? Só mesmo uma vã guarda, como li não sei mais onde. Uma lotada: apenas estamos juntos, indo para o mesmo destino: qual mesmo? Individualistas, cada um com o seu cadáver literário próprio. Aliás, não era assim que Mallarmé postulava a literatura: como resto, dejeto?
Minha mão sempre me surpreende (Miró)
Ana Guimarães
Tenho observado, hoje em dia mais do que nunca, que escrever é abrir nova perspectiva de entendimento para algo que, até então, não comportava inteligibilidade, ou ao menos não-toda (sempre, e para nosso alívio, por mais que se revele, algo resiste e insiste). Tentar dar conta de uma experiência difícil de ser dita, tanto aquilo que nos persegue quanto o que nos escapa, o excessivo e a falta. Fazer diferença. Não uma diferençazinha de forma, porém a escrita de uma diferença. Como uma impressão digital: mais pessoal e intransferível impossível, pois a linguagem não expressa o sujeito, ela o constitui. Isso explicaria, em parte, o boom dos blogs, numa época em que a massificação predomina e as subjetividades são ameaçadas.
No entanto, diz-se que a arte (a literatura incluída) não comportaria engajamento moral, político ou religioso, todos sintomáticos de fechamento. Ela os dispensaria. Não se trata de impessoalidade: um texto livre engaja-me sem que eu precise dizê-lo. Mas seria algo que ultrapassa a realidade, evita as malfadadas referências explícitas às questões sociais. Clarice Lispector teria respondido, certa vez, quando questionada sobre sua alienação ante a miséria do povo brasileiro, que isso era muito óbvio e ela não escrevia sobre o óbvio.
Criação é transgressão por definição, não pode ter limite. Xô para essa hipocrisia do politicamente correto que beira o fascismo! Um controle vigilante, uma censura prévia corre o risco de engessá-la. Fraturas no establishment são esperadas e até desejadas. Uma charge, por exemplo, nutre-se do real, do cotidiano para transcendê-lo. Não existe humor a favor, humor é sempre contra: senão, que se proíba logo tudo! (E a ironia?)
Porém, dúvidas me assaltam, e não são poucas. Ainda vigora aquela tese segundo a qual quanto mais ficção, quanto mais opacidade mais literatura com L maiúsculo? (Como se a realidade fosse menos opaca, como se lembrança tivesse selo de fidedignidade...) Um texto ultra-real, cru, de uma naturalidade exacerbada, com um conteúdo confessional em estado bruto, mal trabalhado seria considerado limitado? Fernando Pessoa dizia que imitar a natureza não quer dizer copiá-la, e sim copiar os seus processos. Os porões do desejo (sexual, agressivo) quando visitados sem a lanterna da fantasia podem se revelar indigestos? Ainda Pessoa: “... qualifico de insinceras todas as coisas feitas apenas para pasmar, onde não passe o mistério da vida”: vale chocar por chocar, pura e simplesmente? Porque isso dá ibope, sabemos.
A mão que corrige não é a mesma que escreve. O inconsciente cria, o ego edita. Mas como, se o tempo – ou melhor, sua rápida fruição hoje em dia – parece ser um empecilho para o reencontro da palavra como objeto a ser burilado por um artesão, por um artífice? Num primeiro momento, o que impera é a construção (per via de porre), a seguir vem (precisa vir) talvez o principal: revisar, tirar o excesso, como o escultor (per via de levare). Mas se tudo é consumido com voracidade (os posts se sucedem numa freqüência absurda), há uma dificuldade, senão impossibilidade, disso acontecer.
Depois de muito rodar por aí percebo a inexistência do que possa ser conceituado como literatura contemporânea na rede, ou algo do gênero. A falta de algum elo formal ou temático, um traço que aglutine, por identificação, os autores, seus textos – seria exatamente isso que a caracteriza? Só mesmo uma vã guarda, como li não sei mais onde. Uma lotada: apenas estamos juntos, indo para o mesmo destino: qual mesmo? Individualistas, cada um com o seu cadáver literário próprio. Aliás, não era assim que Mallarmé postulava a literatura: como resto, dejeto?
Minha mão sempre me surpreende (Miró)
Ana Guimarães
Texto editado a partir do original Subindo ao Mezanino, publicado no site Cronópios, em 4/3/06.