sábado, 20 de fevereiro de 2010

FRAGMENTOS DE UM ENIGMA

FRAGMENTOS DE UM ENIGMA

Debruço-me sobre poemas de Fabrício Corsaletti (o livro é Esquimó), na esperança de tomar distância do real e tentar manter o equilíbrio. Literalmente, acordei com labirintite.
Mas acontece o contrário, o que leio me remete de volta à questão pessoal. A poesia é como óculos: quando você os coloca, não vê os óculos, vê as coisas com mais clareza. A poesia é essa lente que faz com que se perceba tudo com mais nitidez.
Retorno aos pensamentos sobre a minha identidade. Ana Emilia Rebelo é meu nome de batismo, não esse com o qual todos passaram a me conhecer. Mas Ana Guimarães é meu verdadeiro nome, construído por mim, letra por letra. As duas afirmações guardam parte da verdade, assim é a realidade.
Mesmo acometida de desconfortáveis vertigens, continuo a ler. “Não quero voltar para casa/no seu abraço/não busco o que perdi.../...Você é vento quente/que me acompanha/o enigma que não precisa ser decifrado.../...De você eu quero apenas/um filhote de lobo/um filhote de lobo/para morder minha mão direita”.
Enigmas mordem a gente, despertam, trituram. E fazem sangrar. Na mão direita, a da razão, quando não se consegue entender. A esquerda, a da emoção, continua intacta porque partida desde sempre, como a castração na mulher.
Leio uma mensagem recém-chegada. "Grato pelo seu novo texto, Ana. Você me instiga, motiva". Só Ana, talvez essa seja mais eu.
Se transparente, veriam que além de escudo para a família, de escuta para as pessoas, tenho um lado sensível que aflora quando me deparo com mentiras e dissimulações. Ando tonta pelo vento que, para simplificar, chamamos vida, e suas incongruências.
Everything is broken, diz o poeta e assino embaixo, com qualquer um dos meus nomes. Novamente ele me retrata. “Minha voz/está quebrada/meu pensamento/está quebrado/(...)/tudo está quebrado/... Há uma pessoa no mundo/que não está quebrada/e eu estou ao seu lado/como se não estivesse quebrado”. Só o outro cola, fornece a ilusão de completude. Mas mesmo isso não estanca a sangria, sabemos.
Existem coisas a respeito das quais devemos nos calar, não procurar esclarecer, é inútil.“Nunca falei/nunca vou falar”. Falar afeta o frágil equilíbrio do mundo. Não falar afeta o meu.
Mais um verso que me traduz: “Não vou/me perdoar/pelo que fiz/Não vou/me arrepender/do que fiz”.
Das palavras não conseguimos escapar. Elas expõem a cisão que nos constitui. Escrever (poesia ou prosa, tanto faz) só roça o enigma, não pretende solucioná-lo. Não é inútil, embora também não sirva para nada (seria um sintoma do indizível?). Melhor não tocar no assunto. É mais prudente ficar em silêncio.

Ana Guimarães

10 comentários:

  1. então, ana emília - escreve - é isso que te dá identidade - e assina conforme o vento, uma vez pelo leste, outra pelo sul!
    besos

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  2. e se eu disser que, para mim, acima de tudo és ANUXA, amiga, franca, forte ou fraca, como todo o ser humano, mas que sabe, como poucos, expôr seus sentimentos(e ainda tens de lidar-e muito- com os dos outros) que te cercam por todos os lados? O que me dirias disso, vovó formosa, mãe admirável, esposa e companheira, amiga inesquecível, profissional de primeira... Tens mais do que direito de ESTARES COM LABIRINTITE.
    TE AMO E ESTOU COM SAUDADES.
    bjos,
    Tania

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  3. Ana minha querida!
    Olha, não sei qual dos personagens está escrevendo, mas sei dizer que é um encanto ler esses magníficos textos.
    Te admiro muito.
    Beijos!

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  4. Somos muitas e não somamos...
    Nos multiplicamos numa infinita capacidade de nos doarmos...
    Doamos nossos pensamentos, nossos sentimentos através da nossa voz na boca escancarada ou nas letras oudadas!
    Já não penso em quem sou, não pensemos...
    Na essência somos, apenas somos e quem somos? Sabe-se lá!!!
    Linda palavras as suas!!!!!!!!!!!!!

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  5. Ana Guimarães, te encontrei no mundo virtual e nos conhecemos através de palavras expressas de forma escrita.Com certeza elas me revelaram muito da Ana Emília. Sei que te admiro , que adoro te ler, palavras que sempre ficam gravadas e com as quais me beneficio e muitas vezes me divido.Mas são elas que a tornam viva para mim.
    UM beijão

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  6. Liria (escrever nos dá identidade!), Tania (sua amizade é ouro!), Mariano (quem está escrevendo é a autora), Dulceny (lindas palavras as SUAS!), Rosemari (idem, idem): muito obrigada a todos!
    Beijos

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  7. "Porque Eu é um outro." .."O poeta se faz vidente por meio de um longo imenso e racional desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de loucura;buscar a si, esgotar em si mesmo todos os venenos, a fim de só reter a quintessência."

    Escolhi uma palavra amiga, de outro poeta. Radical ao extremo. Buscou a língua da alma para alma. Não conseguiu, ninguém conseguirá.
    Entre enterrar ou não o cadáver, o tempo ajudará a aquietar as divisões; não, não encontrará respostas, mas encontrará o êxtase da dúvida, e uma forma de conviver com elas, nós que somos pós de estrelas, nada além disso. Surdos e cegos, com a vaidade de falar. Sem saber bem o quê. Beijos.

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  8. Ah, mas falar é muuuuito bom, Djabal! Acho que é a melhor coisa da vida, com todo o respeito pelas demais que eu tanto amo! :)
    beijo, amigo! Obrigadão pela presença e comentário.

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  9. Tenho visto uma significativa movimentação dos meios poéticos em relação ao Corsaletti.
    Sinceramente, seu texto me remete a Reinaldo Morais, de Tanto Faz, que, embora tenha surpreendido em sua época pelo prosaico e a linguagem algo fragmentária, não produz grande ressonância em mim.
    Embora seja uma opinião meio solitária, prefiro palavras mais robustas & consistentes. Há algo de efêmero nos versos de Corsaletti...

    Beijão.

    Ricardo Mainieri

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  10. Pode ser, meu amigo Ricardo: mas a vida também não é efêmera?
    A verdade é que nâo sei se esses versos do Corsaletti teriam produzido grande ressonância em mim se os tivesse lido fora do contexto, isto é, fora do texto do Castello.
    De qualquer forma, agrada-me sua presença e comentário aqui no meu blog.
    Beijo

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