terça-feira, 29 de outubro de 2019

O MEDO DA LUZ

O MEDO DA LUZ

O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê. (Platão)

Em um romance de Ítalo Calvino, Il Cavaliere inesistente, Agilulfo, uma espécie de Don Quixote, para se acalmar e não se dissolver na incerteza e no absurdo daquela época das Cruzadas dedica-se, compulsivamente, a contar objetos e a resolver problemas aritméticos, ao alvorecer. Cada um se arranja como pode. Os sintomas cumprem um papel metafórico, resta a interpretação, ou seja, a aproximação da verdade.

O passado influencia o futuro, a ponto de sobredeterminá-lo? Interessaria a alguém conseguir exterminar lembranças que permanecem intactas, com vívidas impressões sempre assombrando? Repetindo um auto-exílio, Eva parte para uma nova cidade em busca de recomeço, deixando para trás a família dividida e poucos vínculos que a distância ou a morte ainda não devastaram. Diz querer escapar de ultrajantes abandono e solidão, zerar sua vida que terá início ali e agora. Reconstruir a história, apagar da memória traições, ingratidões, a dor e a doença delas derivadas. Jogar fora o retrato e a moldura (o geográfico) que parecem aprisionar trágicas recordações.

Tal postura aliada ao hábito de idealizar relacionamentos a seqüestrará, de novo, do presente? Pois já fora assim há uma década atrás, terá esquecido? Na ocasião, fugiu de urubus que rondavam a carniça na qual se tornara logo após a separação pedida pelo marido depois de décadas de lutas, crises, mas também de cumplicidade, conquistas e filhos. Voltou da capital (local em que só fizera conhecidos, todos atrelados a circunstâncias profissionais, ligados pelo luto de seus lugares de origem) para o Rio, berço natal onde continuavam a residir parentes e velhas amigas de infância que de certo a apoiariam.

Todos esperaram que o centro espírita que resolveu freqüentar e o psiquiatra ali indicado – não os remédios com os quais passou a se encharcar – iluminassem a ponta do sentimento que a perturba. Que conseguisse, além de enxugar o vazamento, descobrir a fenda por onde a coisa passa. Escavando, fizesse o caminho contrário, criativa travessia que sempre abre janelas para outros espaços, contraditórios, contudo arejados porque construídos por palavras. Que aceitasse, enfim, como falava Cioran, sofrer as conseqüências de ser ferida pela existência. Mas ela preferiu, outra vez, a saída de emergência, a única vislumbrada no desespero: o aeroporto.

Não nos livraremos de nossos destinos e da visão de mundo congelada, pétrea, intocável que (se a) carregamos nem se mudarmos de identidade, quanto mais de endereço. E porque a vida é movimento, a inútil censura promoverá, em algum momento, o retorno do recalcado. O que parece se desconhecer é que o obstáculo para suportar o inevitável mal estar na civilização não está no quadro que cada um mostra, mas no que subtrai. Muito fica de fora, talvez o principal. A parte ignorada é infinitamente maior do que a sabida, uma zona de sombra, fronteira com o indizível.

Não são os outros que a magoaram, que a decepcionaram os responsáveis pela depressão que a consome. O que contamos de nós imputando a terceiros nosso estado, mesmo revelação fiel dos fatos, subverte a realidade. Ao invés de capturar o real, o deforma, e quase ninguém tem consciência da fraude. Repetimos ad nausean: “sou/estou assim porque minha mãe... porque meu marido... meu filho... meu chefe... o governo do meu país...”, sem conseguir focar sobre o que fizemos com o que nos fizeram. Só a partir dessa pergunta poderemos desenhar, escrever, esculpir, pintar um renascimento. Seja lá onde for.

Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz. (Platão)

Ana Guimarães

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