domingo, 11 de outubro de 2020

APRENDER A BRINCAR

O artista dá forma bela ao desejo proibido, para que cada um comprando dele seu pequeno produto de arterecompense e sancione sua audácia. (Lacan)

 

Ao brincar, a criança cria um mundo próprio, só seu, onde os elementos são reajustados dmaneira que lhe agrade. Leva a sério a brincadeira e nela dispende grande quantidade de energia. Se for examinada por um médico ou sofrer alguma intervenção cirúrgica, de certo o fato será tema para novos divertimentostransferindo a experiência desagradável ameaçadora sentida para o amiguinho companheiro de folguedos (que passa a ser a vítima), resgatando assim sua posição de sujeito no mundo. No entanto, ela distingue, com clareza, o brincar da realidade. Estabelece relações entre seus objetos e situações criadas e as coisas visíveis que a cercam. O mesmo faz o escritor, e Freud observa essa relação preservada pela linguagem: em alemão, spiel (peça)uma forma literária que pode ser representada, e lutspiel (comédia) e trauerspiel (tragédia) significam, respectivamente, brincadeira prazerosa e lutuosa

 

Ao crescer, a pessoa para de brincar (tanto) a fim de enfrentar os embates da vida. Na verdade, ela não renuncia a um prazer que experimentou antes, apenas o troca por um substituto: agora ela cria castelos no ar e devaneiosPequena, não ocultava seus jogos que também expressavam o desejo de ser grande. Adulta, envergonha-se de suas fantasias por serem infantis e/ou proibidas. Ninguém fala delas por pudor, só em análise, e mesmo assim, com dificuldade, porém a criação imaginária do escritor permite que isso aconteça sem que a exposição seja diretainclusive porque o trabalho pode não ser conscienteAtravés de alterações e disfarces ele as descaracteriza de tal forma que elas perdem o caráter pessoal e são oferecidas como preliminares estéticos aos leitores, a fim de proceder a uma oferta posterior de um prazer ainda maior, qual seja, a liberação de tensões e até a comparação com fantasia de cada um, a partir daí percebida sem culpa ou constrangimento, numa verdadeira suspensão da inibição.

 

Quando adulto, o sujeito pode considerar que do mesmo modo que brincava com seriedade pode ocupar-se de suas atividades sérias ludicamente. O humor atua como substituo de afetos dolorosos, várias piadas confirmam isso. Um condenado sendo levado à execução numa segunda feira: “estou começando mal a semana”. Outro, sendo levado à forca: “por favor, um lenço para eu cobrir a garganta, senão vou pegar um resfriado. A compaixão que teríamos pelos condenados é refreada, pois percebemos que eles mesmos não se preocupam com a sua sorte. Muitas vezes o humor é produzido à custa da raiva, a gente ri em vez de se zangar, como nessoutra: um homem estava escondido num abrigo subterrâneo, onde todas as noites uma vaca lhe caía em cima, apagando-lhe a chama da vela. Na 46ª noite ele diz: "A coisa está começando a ficar monótona." É possível fazer graça de qualquer emoção, até do repulsivo, vide alguns filmes de terror

 

O homem não pode subsistir com a escassa satisfação que obtém da realidade. Sencontro com o outro é incompleto, ambíguo, traumático, esse furo ele obtura com a fantasia. Porém o fator quantitativo deve ser levado em conta, sua capacidade de sublimação respeitada: que cota de libido não utilizada, que quantum de pulsões sexuais e agressivas uma pessoa é capaz de desviar de sua finalidade? O escritor, esse dependente da pena, espera que sua ficção fale por si, daí tantos considerarem dispensável serem chamados para explicar suas letras, que o leitor tire o que quer e o que pode de um texto, que se vire sozinho. Até porque o autor não detém conhecimento sobre o inconsciente, esse bastidor da criação, é a própria obra que veicula o saber pelos efeitos que provoca em quem a aprecia. Também não se leia aqui uma apologia da ignorância ao escrever, apenas destaco, como muitos já o fizeram, que um excesso de controle, de seriedade pode engessar a criatividade. Aprender a brincar é preciso. Como gozar, é deixar ir.

 

Ana Guimarães

 

Baseado no texto Escritores criativos e devaneios, de Sigmund Freud.

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