segunda-feira, 26 de abril de 2021

TALiSMÃ

 Geme a centenária mangueira, abatida por seus algozes após querelas com a vizinhança, serra elétrica a cortar galhos e esperanças, melindrando até os mais insensíveis. Foge a passarada e seu primoroso canto, assim que se descobre sem teto. O terreno, silencioso, após uma breve estadia como estacionamento é transformado num burburinho de peões e bate-estacas, desde o alvorecer. Um prédio nascia, mas muito antes que arranhasse o céu uma cena insólita podia ser presenciada. Bem-te-vis, sabiás, pardais e cambaxirras voavam em volta e pousavam, novamente alçavam voo e voltavam, num frenético vai e vem. Sempre aos gritos, batendo asas, em protesto. A mãe frondosa e aconchegante havia sido substituída pela frieza dos tijolos, cimento e vigas aparentes.

Como os pássaros, retorna a anciã ao lugar onde morou um dia e o encontra choroso. A casa luminosa de outrora não mais existe. Só fechando os olhos para melhor visualizá-la. A fachada,  descaracterizada, pudesse, se esconderia, de tão envergonhada. Um portão novo, mudo, que não canta mais rangido algum ao se abrir, descortina tristes mudanças. As antigas janelas de madeira, maltratadas por chuva e sol, é verdade, foram trocadas por horrendas esquadrias metálicas. Maçanetas de porcelana pintadas à mão, já trincadas, naquela época, aqui e ali, substituídas por coloridas bolas laqueadas. Antes em ruínas, deteriorando-se com dignidade, do que ordinariamente reformada assim, curvada aos modismos que teimam em impor a estreiteza do igual, do prático, do funcional, numa errônea compreensão de progresso.
Preferível a terra ressequida e as folhas amareladas em um ou outro dos inúmeros vasos de antigamente do que as plantas artificiais que aí estão agora. As formigas obreiras decerto foram passear em outro piso. Lagartixas equilibristas devem ter errado o passo e despencado das paredes. Expulso o cupim que fazia chover aquele pozinho no meio da noite, fazendo-a espirrar até dizer chega. E os cogumelos brotando das vigas de madeira da varanda, para aonde foram? Os piados dos ninhos no telhado? Os pelos de gato no estofado do sofá puído e arranhado? As marcas das patas do pastor alemão no chão da cozinha, sempre precisando de um pano molhado? 
Desce ao porão e escuta o seu lamento. Veja, nenhum pó, nem mofo. Nada de teias de aranha, onde já se viu? Até cheirando à limpeza, um desatino. Tão bom aquele reboco que caía aqui e ali. Quando menina você gostava de futucar com o dedinho, lembra? Até ficar um rombo na parede. Até que a mãe, já com a vassoura e a pá, pronta pra lhe dar um pescoção, vinha varrer, resmungando o trabalho extra. Ah, velha amiga, seria preciso raspar, cavoucar, qual um palimpsesto, para que a minha beleza oculta aparecesse, meu verdadeiro texto original. Como se o passado nem mais existisse, como se o contemplasse por outra lente, a da memória, que tanto distorce. Ao menos você, companheira, testemunhou o que fui. 
Todos os outros se foram, levados pelo redemoinho que é o tempo. Ninguém com quem partilhar lembranças. Ninguém mais para me abraçar e me proteger da fria aragem que o anoitecer carreia. Resta-me sentar no enferrujado balanço que jaz na varanda, corpo no necrotério, e contemplar o céu, esse sim, o mesmo de sempre. Estrelas mortas há trilhões de anos, ainda piscam, iludindo. No canto de um degrau da escada, amassado talvez porque mil vezes pisado e chutado, o velho talismã da sorte. Perdido para sempre.
Ana Guimarães
 
 
 
 

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