Escrever é uma maluquice. Quem – senão um louco – pegaria numa pena (ou num teclado) e criaria outro mundo ao invés de se adaptar a esse já criado? Criado desse imundo, não! Subalterno de imposições, nunca! Quando se é exilado de si mesmo parte-se logo para outras praias, as do desterro da ficção. Ou não. De todo modo, não se trata de qualquer tipo de escrita, evidentemente, mas daquela que tem valor de escritura do traço que marcou primordialmente o sujeito. De uma autoria. E, conseqüentemente, do gozo obtido com isso. Escrevo para me estabilizar. Meus personagens são vis para que eu não precise sê-lo.
A literatura é uma tampa de ralo de banheira que se coloca, rapidamente, para que a água não escoe toda e deixe a gente a seco, nu, tremendo de frio, com a sensação de que o líquido amniótico se foi, escorreu (não se diz que o tampão se rompeu?) e o parto começou: vamos ter que respirar por conta própria, pagar essa conta, o ar entrando, queimando os pulmões. Sangue, suor e (ainda por cima) sem cerveja. Sem ser, veja. Dor. Separação.
É uma rolha que tampona o buraco que é sempre mais embaixo – ou acima, não importa. O que há é que não se consegue determinar o lugar, seu espaço, seu diâmetro, o que se sente é a espessura de sua borda. É um risco que se borda (e se corre), que se segue, de um bordado, uma abordagem, no máximo. Um recorte num mapa, litoral. Literalmente. Sempre mente, só aí se chega (próximo, e olhe lá) à verdade: pela mentira. Literariamente também. E principalmente. É quando mais se mente: pela letra, essa inscrição de nossa mentira primeira, a fantasia. Literatura não é isso? Ilusão. Elisão da verdade. Qual? Essa. Todas. Que a vida não tem sentido, não tem objeto, não tem closura, boa forma, gestalt. A relação sexual não há, nada de metade da maçã, nem nirvana. Só uma banda, de cada lado: você pra lá eu pra cá, até quarta-feira.
E se não há nada que tampone esse furo, essa falta, nada que sossegue o leão, o facho, acho, então deveria servir literalmente (de novo) tudo. Mas nem com isso me satisfaço, com esse desfilar metonímico de objetos na cadeia significante. Que situação, que prisão, eu não! Prefiro a liberdade do criar. Do pensar. Do re-significar. Do inventar. Uma outra vida, mesmo que seja só no papel.
Domingo era dia de pescaria. Hoje em dia, é dia de virtual. Todo dia era dia de índio, agora, de aldeia global. Sem pajé. Falo de Internet. O falo da Internet. A Internet como falo. (Como falo, putz, pareço uma matraca!) Cair na rede (como peixe) pra não se sentir muito solto. Algo que dê lastro a essa insuportável leveza do ser. Domingo é dia nacional, internacional, cósmico de angústia, como se sabe. Se como – mastigando ou só engolindo – o ‘se sabe’ fico com o saber que angustia, esse despertar para a possibilidade de liberdade. Sem a prisão do trabalho, do estudo, de (alguns dos) relacionamentos obrigatórios. Com a soltura do tempo escorrido. Da alforria. E, tal qual um escravo, não sei o que fazer com isso. Ainda. Sempre. Nunca. Dá um vazio...
Igual a Adão e Eva depois da expulsão do paraíso. Por isso a gente vive dizendo: Para iso. Digo, para isso que eu quero descer, tá muito estressante, me arranja um calmante, porque sem a cachaça ninguém segura esse rojão. Isso é livre-arbítrio. Não quis provar do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal? Decidir? Optar? Quem mandou? Agora agüente. Melhor quando se era criança, tutelado. Ou pra quem acredita em horóscopo, tarot, búzios, vidente: tudo determinado. Previamente. Viu? O prévia também mente, mas me engana que eu gosto. E preciso. De controle. De conclusão. De limite. De fim, da história.
Ana Guimarães
*Texto publicado em Germina Literatura: http://www.germinaliteratura.com.br/ana_guimaraes.htm
sábado, 26 de fevereiro de 2011
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
O CORPO É A ALMA
Cabana de um curandeiro Zulu em estilo colméia no horto de plantas medicinais (muthi) do Jardim Botânico Nacional da Cidade de Natal.
Conta-se que, entre os zulus, os entes queridos de um enfermo compreendem e aceitam que não podem pedir ao curandeiro da tribo que expulse o espírito portador da doença, pois ele traz uma mensagem e recusar-se a recebê-la pode fazer com que a pessoa permaneça doente pelo resto da vida. Do mesmo modo, entre os psicanalistas há um consenso segundo o qual um sintoma jamais deve ser abolido, calado através de medicação (seja ela ansiolítica, antidepressiva, pró-libido, indutora do sono, etc), porque se considera que ele não se reduz a um mero processo fisiológico, não é algo indesejável a ser combatido e sim o primeiro passo na direção da cura. É preciso que se reconheça o seu significado, o que sinaliza. Falar dele claramente, sem reservas, com ele dialogar. Eu com-ele e não contra-ele. A questão é: quais são seus dizeres e silêncios? O que representam?
Um sintoma assinala o enquistamento de uma crise. Se se der atenção a ele e não tentar erradicá-lo de imediato, uma mudança – que já está em curso – pode ser facilitada. Nada de se retornar a um estado anterior, ao que se era antes, tampouco de se adequar a algum parâmetro de normalidade. Falo de autoconhecimento. De estrucura: assumir o que realmente se é, a estrutura da qual se estava distanciado, a única cura, aliás, possível de ser alcançada. Temos que refutar a mentalidade da medicina ocidental vigente que quer o indivíduo logo “consertado” para poder voltar a funcionar na engrenagem. Rechaçar essa idéia de mal estar como um vazio que precisa ser “resolvido” com uma adição qualquer (drogas legais ou ilegais, consumismo desenfreado, conquistas amorosas em série) quando o importante é fazê-lo restabelecer suas linhas de comunicação interna. O ponto congestionado interrompe a circulação da energia, indica que nós precisam ser desatados, laços refeitos.
Se, em priscas eras, esforços foram concentrados na descoberta, com êxito, de causas orgânicas para certos distúrbios mentais, nas últimas décadas uma novidade possibilitou o controle da sintomatologia de pacientes psicóticos, ocasionando uma modificação na assistência a eles: a “cadeia-hospital” foi substituída pela prisão farmacológica, sem que se admita que esses medicamentos psicoativos – além dos efeitos colaterais que provocam – estão longe de exercerem alguma conseqüência efetiva sobre o desequilíbrio propriamente dito. Mas, o pior: afastam o sujeito dele mesmo. Parece que a principal queixa atual (senão denúncia) é a de que não se trata mais o doente, pouco importando se sua subjetividade é exterminada junto com os sintomas combatidos, tamanha a virulência do tratamento imposto. Enquanto o modelo biomédico predominar (o pensamento cartesiano, a separação entre corpo e mente) o quadro persistirá.
Por que o fluxo parou de fluir? Por que a estagnação? Quando nossa história nos é negada, outra nos é imposta, adoecemos. É preciso redescobrir-se. Reinventar-se. E a palavra é a grande aliada. Como bem observou Dostoievski: o sofrimento é a origem da consciência. Se ele impede ou dificulta, por um tempo, sua livre movimentação no mundo, respeite-o. Não fuja da dor a qualquer preço, não se esconda, ouça o que ela tem a lhe dizer. Lembre-se do círculo aberto do zen-budismo, a brecha que é, ao mesmo tempo, entrada e saída. Costuma-se ficar acomodado ao sintoma, a essa forma de gozo, até o senso comum diz que quem gosta de troca é bebê com fralda molhada, mesmo assim só depois que ela esfria... Ao contrário, podemos descobrir que é possível capitular, com prazer, diante da seqüência infindável de transformações em que a existência se constitui. Acabar com a fixação no circuito pulsional. Entregar-se à liberdade do imprevisível.
Chega de culpar apenas um agente externo, objetivo, a falta ou o excesso de uma substância! E a nossa parte nisso? Também somos responsáveis pelo que nos acontece. Impulsos sexuais e/ou agressivos inadequados, talentos desperdiçados são determinantes (Guimarães Rosa disse: tive que escrever Grande Sertão: Veredas, senão um trombo me entupiria a veia). Sabemos que o timo é a glândula central que regula o sistema imunológico, e se uma das origens possíveis do vocábulo é o grego thumós = espírito/coração, feri-lo é desestabilizar esse sistema. A desesperança, a perda do sentido da vida (particular, único), a tristeza contida, a percepção de falta de solução para um conflito vivenciado abrem as portas para a enfermidade entrar. O problema não é a emoção (toda ela é válida), mas a incapacidade de externá-la, de simbolizá-la de maneira criativa.
Consta da sabedoria popular o conhecimento de que uma cegueira pode ter sido causada pela recusa de se ver tal ou qual coisa, uma dor de garganta, pela dificuldade de engoli-la. Onde está o sintoma, aí está você. Ele é letra tatuada no corpo e como tal deve ser lida, embora nem sempre tão simples e linear assim, às vezes está mais para hieróglifo a ser decifrado. Deixe-se guiar e encontrará sua autodireção. O corpo não nos diz só o que é a alma, o corpo é a alma. O sujeito é encorpado, as histéricas, as doenças psicossomáticas evidenciam isso, de maneira aguda.
A condição psíquica é crucial tanto no adoecer quanto no processo da cura. Em oposição aos antigos curandeiros que tratavam os males físicos por meios psicológicos, os mudernos psiquiatras, cansados de serem considerados médicos de segunda em sua própria classe reagiram a essa discriminação tentando explicar a doença mental em termos orgânicos, como uma perturbação dos mecanismos cerebrais. Isto é, inverteram as coisas. E mais: só fazem debelar a fumaça, nunca indo até o fogo e ainda agravando o incêndio, uma vez que acabar com o sintoma é acabar com o único jeito que o organismo tinha, até então, para expressar o seu desconforto. Posso curar quem deseja a cura, mas não quem a rejeita (Freud). Se você tivesse febre alta todo dia contentar-se-ia em tomar um antitermico ou iria pesquisar a causa?
Ana Guimarães
Conta-se que, entre os zulus, os entes queridos de um enfermo compreendem e aceitam que não podem pedir ao curandeiro da tribo que expulse o espírito portador da doença, pois ele traz uma mensagem e recusar-se a recebê-la pode fazer com que a pessoa permaneça doente pelo resto da vida. Do mesmo modo, entre os psicanalistas há um consenso segundo o qual um sintoma jamais deve ser abolido, calado através de medicação (seja ela ansiolítica, antidepressiva, pró-libido, indutora do sono, etc), porque se considera que ele não se reduz a um mero processo fisiológico, não é algo indesejável a ser combatido e sim o primeiro passo na direção da cura. É preciso que se reconheça o seu significado, o que sinaliza. Falar dele claramente, sem reservas, com ele dialogar. Eu com-ele e não contra-ele. A questão é: quais são seus dizeres e silêncios? O que representam?
Um sintoma assinala o enquistamento de uma crise. Se se der atenção a ele e não tentar erradicá-lo de imediato, uma mudança – que já está em curso – pode ser facilitada. Nada de se retornar a um estado anterior, ao que se era antes, tampouco de se adequar a algum parâmetro de normalidade. Falo de autoconhecimento. De estrucura: assumir o que realmente se é, a estrutura da qual se estava distanciado, a única cura, aliás, possível de ser alcançada. Temos que refutar a mentalidade da medicina ocidental vigente que quer o indivíduo logo “consertado” para poder voltar a funcionar na engrenagem. Rechaçar essa idéia de mal estar como um vazio que precisa ser “resolvido” com uma adição qualquer (drogas legais ou ilegais, consumismo desenfreado, conquistas amorosas em série) quando o importante é fazê-lo restabelecer suas linhas de comunicação interna. O ponto congestionado interrompe a circulação da energia, indica que nós precisam ser desatados, laços refeitos.
Se, em priscas eras, esforços foram concentrados na descoberta, com êxito, de causas orgânicas para certos distúrbios mentais, nas últimas décadas uma novidade possibilitou o controle da sintomatologia de pacientes psicóticos, ocasionando uma modificação na assistência a eles: a “cadeia-hospital” foi substituída pela prisão farmacológica, sem que se admita que esses medicamentos psicoativos – além dos efeitos colaterais que provocam – estão longe de exercerem alguma conseqüência efetiva sobre o desequilíbrio propriamente dito. Mas, o pior: afastam o sujeito dele mesmo. Parece que a principal queixa atual (senão denúncia) é a de que não se trata mais o doente, pouco importando se sua subjetividade é exterminada junto com os sintomas combatidos, tamanha a virulência do tratamento imposto. Enquanto o modelo biomédico predominar (o pensamento cartesiano, a separação entre corpo e mente) o quadro persistirá.
Por que o fluxo parou de fluir? Por que a estagnação? Quando nossa história nos é negada, outra nos é imposta, adoecemos. É preciso redescobrir-se. Reinventar-se. E a palavra é a grande aliada. Como bem observou Dostoievski: o sofrimento é a origem da consciência. Se ele impede ou dificulta, por um tempo, sua livre movimentação no mundo, respeite-o. Não fuja da dor a qualquer preço, não se esconda, ouça o que ela tem a lhe dizer. Lembre-se do círculo aberto do zen-budismo, a brecha que é, ao mesmo tempo, entrada e saída. Costuma-se ficar acomodado ao sintoma, a essa forma de gozo, até o senso comum diz que quem gosta de troca é bebê com fralda molhada, mesmo assim só depois que ela esfria... Ao contrário, podemos descobrir que é possível capitular, com prazer, diante da seqüência infindável de transformações em que a existência se constitui. Acabar com a fixação no circuito pulsional. Entregar-se à liberdade do imprevisível.
Chega de culpar apenas um agente externo, objetivo, a falta ou o excesso de uma substância! E a nossa parte nisso? Também somos responsáveis pelo que nos acontece. Impulsos sexuais e/ou agressivos inadequados, talentos desperdiçados são determinantes (Guimarães Rosa disse: tive que escrever Grande Sertão: Veredas, senão um trombo me entupiria a veia). Sabemos que o timo é a glândula central que regula o sistema imunológico, e se uma das origens possíveis do vocábulo é o grego thumós = espírito/coração, feri-lo é desestabilizar esse sistema. A desesperança, a perda do sentido da vida (particular, único), a tristeza contida, a percepção de falta de solução para um conflito vivenciado abrem as portas para a enfermidade entrar. O problema não é a emoção (toda ela é válida), mas a incapacidade de externá-la, de simbolizá-la de maneira criativa.
Consta da sabedoria popular o conhecimento de que uma cegueira pode ter sido causada pela recusa de se ver tal ou qual coisa, uma dor de garganta, pela dificuldade de engoli-la. Onde está o sintoma, aí está você. Ele é letra tatuada no corpo e como tal deve ser lida, embora nem sempre tão simples e linear assim, às vezes está mais para hieróglifo a ser decifrado. Deixe-se guiar e encontrará sua autodireção. O corpo não nos diz só o que é a alma, o corpo é a alma. O sujeito é encorpado, as histéricas, as doenças psicossomáticas evidenciam isso, de maneira aguda.
A condição psíquica é crucial tanto no adoecer quanto no processo da cura. Em oposição aos antigos curandeiros que tratavam os males físicos por meios psicológicos, os mudernos psiquiatras, cansados de serem considerados médicos de segunda em sua própria classe reagiram a essa discriminação tentando explicar a doença mental em termos orgânicos, como uma perturbação dos mecanismos cerebrais. Isto é, inverteram as coisas. E mais: só fazem debelar a fumaça, nunca indo até o fogo e ainda agravando o incêndio, uma vez que acabar com o sintoma é acabar com o único jeito que o organismo tinha, até então, para expressar o seu desconforto. Posso curar quem deseja a cura, mas não quem a rejeita (Freud). Se você tivesse febre alta todo dia contentar-se-ia em tomar um antitermico ou iria pesquisar a causa?
Ana Guimarães
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
SEMI-CONTRAFAÇÃO*
O tempo se gasta. Rumino o que digo e penso como baba de boi: cai e não cai. Quem-quem remexendo no esterco, pra lá e pra cá. Ando caçando errado, quanto mais procuro, menos acho. Canso de vigiar, de perseverar, e nada. Corre o coração a ajudar o pensamento, a confundi-lo, para melhor conhecer: a gente só sabe bem aquilo que não entende. Deus (o inconsciente) é que me sabe. Deixo-me penetrar por esse conhecimento maior. Vem, me ensina o que eu já sei.
Amanheço toda e cada manhã num pouso diferente. Virgem, tabula rasa, página em branco. Nenhum juízo pré-concebido, pura interrogação. Ensolarado dia, chuva, tanto faz. O rio só parece ser o mesmo, acaso ele parou de correr? Espia a terceira margem. No entanto, tréguas são necessárias. Que se revezem com as tormentas – uma calmaria, vez em quando, é bem-vinda.
A hora em que o meu ser tão veredas mais se revela a mim (e, quando consigo, transcrevo-o, deixando-me cavalgar pelo diabo da inspiração, afinal a vida também é para ser lida) é no lusco-fusco entre o sono e a vigília, na frente do acordar. No nada. Quando os olhos ainda nem se abriram para o exterior é que eles mais vêem o de dentro. Não temo ter medo, aprendi, porque não adianta dar as costas, ele volta. Receio apenas cansaço de esperança.
Há que frear a excitação. Fazer silêncio e reverência, igual ao momento em que o peixe vai fisgar a isca, na pescaria. Cuidar de anotar de imediato, todavia com delicadeza (é todo um equilíbrio instável), senão a clareza se esvai feito nuvens desmanchadas pelo vento, a visagem se desfaz como um sonho que escapa nas asas do instante. Depois, só acionando hábeis sentinelas da memória, com sorte, de prontidão.
Estendo tapete vermelho, ladrilhos, seixos, pedrinhas de brilhante para o meu amor (a palavra) passar. Ah se essa rua já fosse minha, mas não, autorizo-me ao longo do caminho (e existe outra maneira de?), uma viagem intima, narcisicamente falando. Elíptica, sinuosa, não em linha reta. Viator ao centro do meu mundo (no meio do redemunho), ou ao mais próximo que dele possa chegar. Desejo fáustico porque impossível de ser realizado, tem sempre um resto que resiste.
O fenômeno é espontâneo, porém precipitá-lo é possível. Começo por espera ativa, embora sem contornos definidos. Não me deixo enganar, toda quietude é aparente – águas paradas escondem correntezas no fundo. É só ficar de ranger rede, a ver ou fazer coisa nenhuma, a aguardar, como dia de véspera, que acontece: o sertão vem. Aí é aproveitar. Escrever é duro, penoso, mas inevitável: põe grades entre mim e as feras, amortece o contato com o Real.
Cerzidor, aquele que costura estórias, era um dos apelidos de Riobaldo. Cerze-dor, quem tapa com a linguagem os buracos abertos pelo sofrimento. Talvez o leitor distinga, mais do que o escritor, a verdade: são muitas, são meias. Meu monólogo é diálogo, tantas sou, tantas vozes me habitam. Fora visitantes mariposas e borboletas voando de passagem, além das que batem temporárias asas para, em seguida, retornar ao solo de onde saíram, feito tanajuras.
Dou de comer à fantasia, sem pressa. Associação-livre a meio-galope. Permite o reconhecimento do terreno e seu registro, com o paroxismo que só a liberdade carreia: sensação de proteção debaixo de árvore galhuda a conviver com a inquietude da vastidão de sítio aberto, quase agorafobia. Viver não é caminhar alegre, inda que descalço sobre espinhos? É isso ou ter a consciência pesando que nem saco cheio de pedras, por nada ter feito, arrependido.
Curvo-me à equivocação das nuances do sentir: nem amor nem ódio (também não indiferença), nem bem nem mal (e não se trata de neutralidade), nem grito nem sussurro: falo, e não é tão simples como parece encontrar o tom. Em todo caso, é preferível procurar do que achar – esse último verbo cheira à morte.
*Guimarães Rosa justificava assim nomear seus textos por considerá-los plágios dos escritos que os antecederam e influenciaram.
Ana Guimarães
domingo, 23 de janeiro de 2011
A ETERNA CONFUSÃO
“Queira ou não queira, o autor é um personagem de sua obra” (Lêdo Ivo)
Às vezes me pergunto pra que se dar ao trabalho de separar o autor do narrador, dos personagens, o eu lírico da pessoa do poeta, descaracterizar o autobiográfico, tentar um mergulho o mais fundo possível na opacidade da ficção (como se a realidade fosse menos opaca, como se lembrança fosse fidedigna e não seletiva e assaz distorcida, como se quem escreve soubesse onde está o scriptor (falo de fronteiras, limites) - espero, somente, da memória que possibilite uma recomposição fecunda e criativa do que aconteceu) para no fim, leitores e críticos especularem feroz e talvez, equivocadamente, sobre a relação entre vida e obra. Será que todo o processo (incluindo aí poética, metáforas e tudo o mais, os recursos disponíveis de praxe) seria apenas (?!) como disse Barthes, para se sofrer menos? Seria esse, afinal, o poder (para não falar função, porque isso seria reduzi-la) disso que se denomina uma 'linguagem inútil'? (Aliás, costuma-se atribuir tal adjetivação a Manoel de Barros, que muito bem a utilizou, diga-se de passagem, embora tenha sido Leminski quem primeiro cunhou o termo).
Que necessidade será essa de se esmiuçar um texto, de se especular sobre a possível relação entre ele e fatos concretos (chega-se ao cúmulo de se entrevistar um escritor com o objetivo de “esclarecimento”!), cotejá-lo com a realidade? Vã tentativa de aprisionamento. Pode até servir para aumentar nossa compreensão sobre o universo objetivo do sujeito, mas não necessariamente atestar alguma correspondência, mais provável que revele uma descontinuidade: não só não há reciprocidade, como escrever costuma ser a resposta da fantasia diante da indigência do real. Pior, em alguns casos, pode sim correr o risco de acabar com a mágica, revelar o truque, e, ainda por cima, dar um atestado de baixa potência das letras em questão, de sua incapacidade de cantar novos mundos, enfim, da dificuldade delas falarem por si só.
Por outro lado, será mesmo que quanto mais ficção mais literatura com L maiúsculo? O artista, como o Deus da criação, permanece dentro, junto, atrás ou acima da sua obra, invisível, clarificado fora da existência, indiferente, raspando as unhas dos seus dedos (Joyce, em Retrato de um artista). Estaria ele falando de uma meta a ser atingida, de um ideal? Pois é sabido que, não se considerando um deus da criação ex-nihilo (era mais adepto do nada se cria, tudo se transforma), usava e abusava em seus livros de nomes de pessoas com quem convivia, seus perfis de personalidade, de situações vivenciadas, claramente reproduzidas. Chega ao extremo de numa determinada passagem do Ulisses, num funeral, quando um tal de senhor Dodd é avistado, por na boca de Stephen, a seguinte afirmativa: “O diabo quebre suas costas”, agressividade injustificada e ininteligível dentro do contexto, até que Richard Ellman, seu biógrafo, explicasse que Dodd cobrava, com insistência, um dinheiro emprestado ao pai de Joyce, na chamada vida real. Diz ele: A verossimilhança é tão forte que Joyce tem sido ridicularizado como mais um mímico do que um criador, acusação que, sendo falsa, é o maior de todos os elogios.
Ilusão. Quando penso que falo/escrevo disso, na verdade, falo daquilo, de Outra coisa. Impossível distinguí-las: verdade e ficção encontram-se amalgamadas, fundidas. O escritor é mentiroso por vocação. E acredita em mentira, mesmo sabendo que mentira é. A literatura é um discurso que se alimenta da dúvida, da interrogação, pleno de uma ambigüidade que permite a confusão entre a invenção e a verdade. Tratamos o verídico como se da ordem do ficcional fosse, e damos voz de veracidade à fantasia. Como conseqüência, a certa altura, ficamos sem saber distinguí-los. Além do mais, é bom lembrar, assim como um lapso, a palavra-sentimento que desejamos reter, não externar é exatamente aquela que irrompe de forma abrupta e involuntária, contra a nossa vontade, e passa ao leitor (não a qualquer um, é claro, mas ao atento, ao privilegiado).
Escrevo para tecer e destecer a mesma e enigmática trama: minha história. Não o que vivi, no sentido de experiência, mas o que senti, os fantasma que me perpassam, identificações parentais. Ponho, conscientemente ou não, uma nova roupagem (tradução: fantasia, máscara, disfarce) a cada tentativa, para camuflá-la e, ao mesmo tempo, por mais paradoxal que seja, para desvelar seu sentido – para mim, inclusive. Enquanto viver permanecerei escrevendo, montando esse interminável quebra-cabeça, cujo número de peças é infinito. Não conhecerei sossego algum da idéia, nada me aquietará o espírito, eterna escrava da inspiração. Patrão risca, a gente corta e cose (Guimarães, em Cara de bronze). O produto final será, sempre, um verdadeiro rizoma, na concepção deleuzeana: pontos aparentemente soltos que se inter-relacionam. Se quiser estar certa do caminho a percorrer tenho que fechar os olhos e tatear no escuro, tendo como bússola a intuição. Desprezar o racional, seguir os sinais que a percepção captar. Parodiando Sócrates, ao contrário: só sei que tudo sei, embora seja um saber que não se sabe. Ainda.
Ana Guimarães
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
domingo, 21 de novembro de 2010
LA DOLCE ROMA
A lenda da fundação da cidade edificada às margens do rio Tibre é que ela se deu no Monte Palatino, em 21 de abril de 753 AC, por Rômulo, o irmão gêmeo de Remo, ambos salvos por uma loba que os amamentou.
Um coração peregrino – e não sonhos, como no caso de Freud – levou-me à cidade eterna. Reinventava a luz do amanhecer com o poder das miragens*, para logo descobrir que ela existe tal qual imaginei-a. Tanto havia lido, plantado dados, retido informações vindas das mais diversas fontes, afinal chegara a época da colheita, tempo de unir a realidade ao mito. Bem que tentei fazer poesia do instante, mas Roma não coube nos meus versos. Então, na volta, porque toda festa um dia termina, abrindo uma clareira na memória mapeei o périplo percorrido, ora dando relevância aos lugares visitados, ora aos afetos despertados. A relação entre uns e outros serviu-me de bússola e transbordou no texto que segue.
Sombrias expectativas que aludiam a traços de nossa maldita herança latina corporificaram-se antes mesmo do tumultuado desembarque no Aeroporto Leonardo da Vinci, mais conhecido como Fiumicino. A viagem no airbus lotado de cidadãos regressando à pátria revelara uma noite carente de bom atendimento, silêncio e do conseqüente descanso de que se necessita para encarar a nova jornada que se avizinhava. Porém, mal pego o táxi para o hotel, os inúteis laços que me uniam àquela experiência negativa desfazem-se por completo: por trás de um trânsito caótico pontilhado de motos, lambretas e scooters, a beleza de um passado narrado através de um bailado de ruínas e relíquias atravessa-me as pupilas. Malas no quarto, corro para a conquista dessa que foi durante séculos a grande civilização dominante do Ocidente.
Vislumbro, de surpresa em surpresa, a poeira alada que resiste a escorrer da ampulheta. Ah, a infinitude que brilha no COLISEU (patrimônio da humanidade, o estádio em cuja arena cristãos eram jogados aos leões), no ARCO DE CONSTANTINO (erguido com a finalidade de celebrar vitórias), no FÓRUM ROMANO (permanente sítio arqueológico), no MONTE PALATINO (uma das sete colinas sobre as quais Roma foi edificada), no CIRCO MAXIMUS (onde aconteciam as corridas de bigas), no CAPITOLINO (sede da prefeitura durante séculos, com a escadaria projetada por Michelangelo), na DOMUS AUREA (a casa que o imperador Nero mandou construir depois do incêndio de Roma, sinônimo de riqueza, opulência e luxo, com fachadas inteiras de ouro), e no PANTHEON, a mais antiga obra, quase intacta, projetada para ser um templo dedicado aos doze deuses do Olimpo. Ali cheguei ao cair da tarde. Avançando no piso de mármore decorado, gotas de chuva que entravam pelo óculo da abóbada (um orifício no topo) misturaram-se às lágrimas em meu rosto, fazendo com que me afogasse numa alegria atroz.
Outros tesouros foram encontrados. A GALLERIA BORGHESE, no parque Villa Borghese, abriga uma excelente coleção de trabalhos de Raphael, Ticiano, Botticelli, Rubens e Caravaggio. FONTANA DI TREVI, por mais que já tenha sido vista em fotos e filmagens, é arrebatadora! PALLAZO DORIA PAMPHILI, na Piazza Navona, um dos mais imponentes edifícios, propriedade e sede da Embaixada do Brasil. BASÍLICA DE SANTA MARIA MAGGIORE: mosaicos que datam do séc V impressionam. CAMPO DEI FIORI. Na praça há uma estátua em homenagem ao filósofo Giordano Bruno, queimado vivo em 1600 por ter desafiado a Inquisição ao dizer, como Galileu, que a Terra é que girava em torno do sol, e não o contrário. TERMAS DE CARACALLA (os banhos públicos eram populares, na antiguidade). Nos verões, palco de espetáculos de ópera e balé ao ar livre - quem não se lembra do primeiro concerto dos três tenores (Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti), em 1990, transmitido pela tv? Até o monumento kitsch, O VITORIANO, na piazza Venezia, em cujo centro há uma enorme estátua eqüestre do rei, compensou pela bela vista que se tem lá de cima. E para quem, como eu, não é indiferente à estética de objetos contemporâneos, Via Nationale, Del Corso e Condotti, cheias de lojas de grife, eventualmente com vendettas promotionales (liquidações).
Reservei um dia para a ida ao VATICANO. A PIAZZA DE SÃO PEDRO (vigiada por exóticos guardas com trajes suíços) e a imensa BASÍLICA DE SÃO PEDRO (com destaque para a Pietà, de Michelangelo, logo na entrada, à direita) são atrações à parte. Sete quilômetros de corredores com tapeçarias, afrescos e pinturas compõem o complexo de museus, tendo seu ápice na CAPELA SISTINA. Cada uma das cenas do teto (Michelangelo again, pintado entre 1508 e 1512) mostra um dia da criação, segundo o Gênesis. A que retrata o Juízo Final inspira reverência. Apenas aqui os romanos (e demais turistas) se calam: é terminantemente proibido conversar. Tonta entre tons e silhuetas, gostaria de tomar um pouco de ar nos magníficos jardins que vejo das janelas, contudo o acesso ao público é vetado, só em excursão com guia e marcação prévia. Por fim, a audiência com o papa (João Paulo II): fiéis de todas as partes do mundo, saudados em suas línguas de origem, um acontecimento!
Com a alma sendo sempre abastecida, não descuidei também, nem um dia sequer, do corpo, sem o qual aquela dá adeus à vida, ao menos terrena. A culinária italiana é uma das mais saborosas do mundo. Aproveitei paninis, pizzas, insalatas, pastas, risotos, sem esquecer dos gelatos, expressos e capuccinos em seus ristorantes, tavernas e trattorias. Uma refeição típica constitui-se de primo piatto (em geral, massa (oriunda da China, trazida por Marco Pólo, no final da Idade Média)), secondo piatto (carne, peixe ou frango), contorno (acompanhamento) e dolce, embora um menu del giorno, menos farto, mais econômico, esteja presente em quase todos os lugares. Há uma diferença sensível entre comer em pé, no bar (alla banca) e na mesa (alla tavolla): pelo menos o dobro do preço. Considerando-se a demora no atendimento do serviço feito por garçom, na hora do almoço pode ser importante lembrar-se do ditado Roma não foi feita num dia, portanto não há tempo a perder para quem quer conhecê-la. But (para tudo há uma exceção), em Roma, como os romanos: ao menos uma vez, compre seus comes e bebes e vá degustá-los com calma na escadaria da PIAZZA DE SPAGNE (um projeto francês assim batizado por sua proximidade com a Embaixada da Espanha), mas antes se prepare para uma verdadeira maratona, já que são poucos os supermercados é preciso passar na panetteria, na salumeria, lateria, pasticeria, gelatteria... A experiência cultural gastronômica vale a pena, garanto.
*Bruno Tolentino, em A Imitação do Amanhecer.
Ana Guimarães
segunda-feira, 15 de novembro de 2010
NOVA PUBLICAÇÃO NO CRONÓPIOS
O portal Cronópios http://www.cronopios.com.br/site/default.asp acaba de publicar SONHO MEU e JUSTINE http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=4808, ambos de minha autoria.
Confiram.
Beijos
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