sexta-feira, 19 de julho de 2019

Sete Vidas

SETE VIDAS

Quando a velhice nela se hospedou de vez com face de doença terminal, subjugando-a, anunciando a morte, Joana retornou à casa abandonada. Retirou a placa de vende-se. Tratou que se capinasse e replantasse o outrora vicejante jardim, que fosse logo iniciado o conserto e a pintura  da cerca de madeira e o tratamento das vigas de sustentação da varanda, cheias de cupim ou broca. Ah, quem dera pudéssemos fazer o mesmo com a gente, suspira, enquanto vê o técnico trabalhando, tomara tantas injeções quanto, sem resultado. Acabara desistindo, apesar das súplicas de seus familiares e médicos.

Sozinha, administrou a  troca  das lajotas do piso da sala, que o alto tráfego arranhara. Mandou raspar, emassar e pintar as bases das paredes perto do chão, cobertas de mofo por causa  da umidade do solo próximo à lagoa. Faxinar todos os cômodos. Abrir os armários para arejar. Expor colchões e travesseiros ao sol. A roupa a secar no varal, cheirando a limpeza. Ligou geladeira, freezer e os abasteceu. O forno e as quatro bocas do fogão acesas, muita comida, parecia que receberia convidados além dos que já trouxera: a saudade e as boas lembranças.

Mirando no espelho do fundo do corredor viu-se décadas atrás, jovem, feliz, saudável e rodeada de pessoas queridas. No silêncio da noite que avança, entre um grilo e outro, quase pode ouvir o passado feito ouvirá daqui a pouco sua oitava Bachiana, posando de maestrina como gostava, desde menina. Insana evocação, real como uma alucinação, praticamente podia vê-la, tocá-la. A casa sempre tão cheia, acabava faltando algo. Uma almofada do sofá  passava por travesseiro, uma colcha usada como cobertor, toalhas de rosto substituíam a de banho para um hóspede extra, bem-vindo em qualquer ocasião. 

E as noites dormidas lá fora, enrolada na rede, protegendo-se daquele ar frio que aparecia na madrugada e se despedia assim que o dia clareava para dar lugar ao soberano calor? Trilhas de formiga, que, com displicência acompanhara, nas raras tardes silenciosas. Flores que as crianças semearam (e vira ambas crescidas). Árvores frutificadas. Acordar com piados de filhotes de passarinho no ninho no telhado, logo acima do seu quarto. Muitas vezes deitada na grama, o livro deixado de lado, a observar o vôo baixo do gavião, o saltitar do bem-te-vi na beirada do muro, os rasantes do nervoso beija-flor.

Se um gênio da lâmpada aparecesse agora, seu único pedido seria viver tudo de novo, igual a um filme que se rebobina. Até os episódios dramáticos, como o susto da filha mais velha com o pé sangrando, levada às pressas para o hospital para dar pontos (o médico que a atendeu era vizinho, e, de churrasco em churrasco, ganharam novos amigos). Ou quando a caçula se perdeu andando de bicicleta nas imediações e foi trazida sã e salva pelo filho do vigia do condomínio da rua ao lado, daí em diante seu inseparável companheiro de brincadeiras. Apenas dispensaria, se possível, o assalto à mão armada que sofreu num fim de tarde de domingo, o único na antes e depois calma região, praticado por rapazes de fora que ali vieram para um amistoso jogo de futebol. Roubaram o carro lotado com as malas cheias. Escapou ilesa, nenhum arranhão a não ser na alma, por muitos meses tivera pesadelos de repetição com os bandidos, tentando elaborar o trauma. 

Sua última viagem, sem volta. Sua última morada antes da derradeira. Aproveitaria, para recordar, se o tempo, generoso, permitisse, a vida plena que ali levara, a aceitar as atuais mazelas e o fim que breve viria. Fizera por ela o que não mais podia fazer por si mesma. Reformada, consertada, bem cuidada assim, outras sete vidas viveria. Seus alicerces eram bons, sólidos, sobrevivera às intempéries, à violência. Joana não, encaminhava-se para a demolição interna espontânea. 


Mas foram dias suntuosos de linguagem. A divina, musical, e a dos homens, falando pelos cotovelos, pelos quatro cantos, da calçada ao quintal dos fundos, do nascer ao por do sol. A casa escutando, acolhendo. Herdeira de sons, de energia, e finalmente de seu corpo, servindo de pré-epitáfio. Encontraram-na caída, serena, um leve sorriso esboçado. Ao seu lado, olhar triste e zeloso de quem entendia e sentia mais do que ninguém, seu velho gato, rouco de tanto miar.

Ana Guimarães


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