quinta-feira, 6 de agosto de 2020

MONA LISA

Acabei de assistir à gravação do programa Globo Repórter de ontem, que celebrou os 500 anos da morte do gênio do Renascimento, Leonardo da Vinci. Foi uma emoção só rever Florença, a cidade que conheci rapidamente em 2000, o suficiente para me apaixonar e jurar voltar com mais calma, o que pude fazer em 2009. 
Aqui minha homenagem, um Cut-up do texto de Freud “Leonardo da Vinci e uma lembrança da sua infância”. 

MONA LISA

Sorriso enigmático. Olhar de esguelha. O que quer uma mulher? Não sei, nunca quis me aventurar, temo não compreendê-la. Desconfio que nem ela sabe falar do que deseja. Cansei de perguntas, desloquei minha libido para a pesquisa. Os por quês da infância se arrastando pela vida afora, derramando-se sobre todos os assuntos, infinitamente. E você fica aí rindo. Para mim. De mim. 

Ah, Caterina, desde que aquele abutre – símbolo da maternidade, conheço bem a fábula sobre o único sexo dessa ave e sua autofecundação – desceu sobre mim em meu berço, abriu-me a boca com a longa e doce cauda, fustigando-me várias vezes os lábios, nunca mais fui o mesmo. É só uma recordação, bem sei, na verdade um resto de lembrança que talvez preencha a lacuna jamais explicada. Aquela coda invadindo minha boca, fantasia de fellatio, alusão à amamentação, primeira fonte de prazer. Uma cena de rara beleza. Eu, filho de abutre, nada mais. Como os primitivos, sem saber o que tem a ver o pai com a origem dos bebês, com o nascimento. Pensei, muitas vezes, na ausência dele, que você era tudo, a MUT egípcia, dotada de falo, completa, embora quando trocávamos de roupa no mesmo aposento isso não se revelava. Queria você me beijando apaixonada e repetidamente. 

Por que sorri assim? Sorriso notável, fascinante e misterioso, reencontrado no belo rosto da florentina Mona Lisa Del Giocondo. Monolítico retrato. Sorriso leonardiano, assim conhecido para sempre. Por sua causa passei, em meu ateliê, a admitir só alunos bonitos, não me importava talento, nenhum se tornou pintor de importância. E como chorei sua morte! Com tristeza, mesmo sem derramar uma lágrima. Sorrindo, como você na tela. A perda do meu primeiro e único amor. Esfinge-sorriso, contraste entre reserva e sedução, ternura e sensualidade, destruindo quem não a decifra, eu. 

Longos anos pintando, e ao final, você ainda estava inacabada. Não fui capaz de entregá-la a quem a encomendou, levei-a comigo numa viagem à França, onde meu patrono a adquiriu para o Louvre. Que poderoso fascínio exerce sobre mim! Reproduzido em todas as minhas criações, não consegui me libertar desse sorriso distante. Mulher idealizada e nunca possuída. Que me cumulou de carícias só para se consolar da ausência de um amor. Não me canso de olhar esse quadro, mesmo distante de mim, da pobre camponesa que deu à luz o filho cujo destino seria pintar e sofrer. 

E tudo o que eu queria era ser/ter l’ucello (um pássaro, e também o órgão masculino). Na impossibilidade, construí vários brinquedos mecânicos, modelei animais em cera, todos voavam. Dotei de asas um lagarto de verdade, com ele me divertia em assustar os amigos e exorcizar fantasmas. Difícil me desligar da infância, quando me entreguei à sedução de seus beijos, que cedo  despertaram minha sexualidade. E para quê? Preso para sempre à zona erógena da qual nunca mais me libertei, a boca. A esse sorriso.

Ana Guimarães

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