terça-feira, 22 de junho de 2010

ADIÇÃO




Todos os excessos são condenáveis, até mesmo os da abstinência (Voltaire)

Seus companheiros
de ilusão
quem são?

Com o que combate
o horror à solidão
e tenta esquecer
que não tem mais sonhos?

Como lidar com o real
cada vez mais
avassalador?

Ao mal estar
você soma
a dependência
a algum paraíso artificial?

Crê precisar
de subterfúgios
para criar?

Só assim
as portas da percepção vão se abrir
céu e inferno
se intercambiar?

O que a literatura pode
(meio ou fim)
significar?

De que modo atravessa
o crespo do seu sertão
esse deserto da alma:
o liso do Sussuarão?

Se embriaga
se entorpece
quando não consegue
dizer não?

Que veredas percorre
em busca da fantasia
de completude?

Diga-me onde te abasteces
e dir-te-ei
quem não és

Na boca de fumo?
Num Mc da vida? (a droga do junkie food)
Na farmácia?
No botequim?

O que o ajuda a encarar
a falta, o excesso
o lusco-fusco da alma
seu Diadorim?

Tal linha de fuga
que prazeres
proporciona?

Estados alterados lhe dão (ou tiram)
vontade de que?
Que tonalidades o mundo perde
ou adquire?

E depois, o que suas sábias vísceras
denunciam?
Espasmos de culpa ou remorso
revém?


Ana Guimarães

sábado, 17 de abril de 2010

LOST (NOT ONLY) IN TRANSLATION


Minha descoberta de Joyce – o primeiro approach – foi sem interlocutor algum para dividir o impacto que seu texto me causava: quem estaria lendo Ulisses aos dezessete? Paixão à primeira vista. Totalmente rendida aos encantos, à mágica, à amplitude de suas letras, à proliferação de sentidos que o aparente caos de imagens e idéias provocava. Aos efeitos de atos internos, como Paul Valéry preconizava em A jovem Parca, para designar o que uma obra de arte é capaz de promover. Não parei mais. Joyce me comprou: mais de uma década depois começava a reler todos os seus livros, sempre traduzidos, mesmo advertida de que tradutore, traditore. Não posso me queixar, o que encontrei foi sempre mais criação, transliteração. Sou grata aos irmãos Campos e a Antonio Houaiss tão dignas empreitadas. E recentemente, a Bernardina da Silveira Pinheiro.
Há mais ou menos cinco anos dei início à nova rodada, sob a batuta de Lacan, apoiada na partitura de seu seminário O Sintoma. Balizas que poderiam restringir, na verdade ampliaram minha escuta, como se um novo Joyce se descortinasse aos meus – até então – ingênuos olhos e ouvidos. Conhecê-lo por isso? Não. Entendê-lo? Menos ainda. Como bem disse Derrida: Quem pode se vangloriar de já ter “lido” Joyce? ... Porque há muitos livros que acabamos de lê-los desde a primeira página: programa conhecido. Lendo-o sempre sim, no gerúndio, como tempo de verbo: genuíno work in progress. Sua leitura, tanto quanto um processo analítico, é interminável.
Ao mesmo tempo em que pretendeu limpar o vocabulário do senso comum, da sujeira da funcionalidade, Joyce também quis capturar o incapturável, numa ânsia pelo fonema que tudo abarcasse, o maior significado possível, uma utopia lingüística de nomear quase que termo a termo, totalmente, o mundo. Sua obsessão: a busca da homologia entre a palavra e a coisa. Quanto mais à vontade ficava em sua produção literária (o auge disso foi Finnegans) mais demonstrava pretender uma ampliação da língua: trabalhá-la, distendê-la, enriquecê-la, reescrevê-la, apropriando-se de territórios antes exclusivamente do Real, nomeando-os, trazendo expressões novas, engavetadas, inventando-as acima de tudo quando não tinha qual designasse o que pretendia. Penetra com vigor em sua tessitura e aí brinca, sem pudor, com maestria e gozo.
Escrevo malgré moi, parece dizer o escritor. Não escolho, sou escolhido. Embora deixando-se perfurar por epifanias, ao invés de sujeitar-se às palavras impostas (mesmo atormentado por elas) teve savoir-faire de artífice para trocar de lugar, inverter as posições e quebrá-las, desmontá-las. Liberdade essa, de ir e vir, um enfrentamento do paradoxo que roça a loucura. Joyce soube, como ninguém, suportar a dor do parto: dos escritos e de si mesmo, enquanto sujeito. Criando, ele se constituiu. O que lhe parecia estanque, separado, disjunto é suturado via autoria, via escritura.
Tudo quanto é reto mente, a verdade é sinuosa, sabemos. Quanto mais confuso, quanto mais turvo, mais chance de verdadeiro. Quanto mais incerto, mais significativo. Nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Assim ele nos dá uma mostração exemplar da estrutura do parlêtre, a divisão do sujeito: sou e não sou, sou os contrários, os diferentes ao mesmo tempo, numa fala nem sempre coerente, nem sempre unívoca, mas autêntica, et pour cause. Ambígua, como a própria vida. Fracassa a compreensão: é pra ser lido e não, necessariamente, entendido. Rasura as palavras, desfaz o sentido (ou finge desfazê-lo) para que cada leitor o reconstrua a seu modo, particular, único, diferente, daí se dizer que a obra de arte funciona como analista: provoca um estranhamento em quem dela desfruta, um descentramento, uma equivocação.
Lost in translation ficamos, mas não mais do que quem o lê no original, sei. Não mais do que o próprio Joyce estava. Não foi Sabato quem disse que a literatura – como a psicanálise – é um viés no qual a gente se perde pra se encontrar? Não serve para explicar, edificar, moralizar, muito menos para acomodar, tranqüilizar, adormecer tal como uma igreja ou partido político. Ao contrário, para despertar, sacudir da anestesia de um viver amortecido e da inconsciência do sono do cotidiano. Esse foi o bê-á-bá que Joyce nos ensinou. Silabação que estudamos até hoje, como ele queria. Minha homenagem em forma de poema:

O BÊ-A-BÁ DE JOYCE

Todos os idiomas da dúvida são meus
mesmo com tradução
mistério e enigma fazem parte
do meu dicionário

o verbo oceânico persigo
conjugar o inefável, o intangível,
o paradoxal: não elidir os contrários

se minha dicção é múltipla
almejo uma sintaxe própria
enquanto isso, soletro a ponte
entre o efêmero e o estável

coar a nata do sentido para seu deleite
o poema – o leite no copo –
esperando pela interpretação
os buracos no texto, como borra de café,
o seu deciframento
a arquitetura da ficção,
sua desconstrução

antes que se queixe ou interrogue, explico
não é a forma nem o conteúdo do que lemos
o que está em cogitação:
é só a coisa em si, nada mais, nada menos

Ana Guimarães

Esse texto acaba de ser publicado no Portal Cronópios:
http://www.cronopios.com.br/site/default.asp


domingo, 21 de março de 2010

BISPO COM QUIXOTE



A derrota do ser-no-mundo aos olhos de uns pode ser a vitória interior, ainda que travestida de desespero e dor. Liberdade que roça a loucura. Claro e escuro coabitando na mesma dimensão. A perseguição do enigma no lugar primeiro. O real arrancado todo dia a fórceps. O avesso do avesso do avesso. A confiança no paradoxo da duração do efêmero: quanto mais escapa, mais dele se tem certeza. É justo na escuridão que surge a luz. Quanto mais turvo, mais chance de verdadeiro.

Assim foi com Arthur Bispo do Rosário, alguém que mais do que na psicose jogado foi no abismo do espaço asilar, só restando a expressão pré-verbal através da linguagem das formas, das cores, das texturas. Sem mediação da letra, ou melhor dizendo, inscrevendo-se ele próprio como (música e) letra de seu auto-processo criativo. Fez arte com o tremor do pensamento. Criando, ele se produziu. De fantasmas que habitavam os porões da mente, como imagens que surgem de sombras na parede. Aí restava a possibilidade de sua ressurreição como sujeito, imprimindo seu traço, sua marca, através de bordados feitos com linhas esfiapadas do uniforme da instituição e de objetos de uso cotidiano alçados a categoria de instrumentos.

Diz-se que toda obra de arte resguarda um nonsense, bordando em suas bordas, margens, litorais a instauração da verdade pela eclosão do ente desvelado, o além do saber, o que transcende e aponta para o indizível, para o impossível, para o limite. Nesse caso, literalmente. “Como é que eu devo fazer um muro nos fundos da minha casa?” estava escrito ao lado de expressivo monte de cacos de vidro em cima de um muro. Seria suplência à falta da barreira primordial, a castração? É a óbvia associação, mas só uma hipótese, nada de analisá-lo via seus trabalhos. The meaning of the meaning tão procurado nos escapa quando se fala de arte. Ela já é o decodificar – mesmo cifrado – do saber inconsciente que a constitui. Resto de um despertar (mesmo que incipiente aqui). Tentativa de elaboração de novo enunciado. Percurso em torno de um lugar cavado para fora da simbolização.

Talvez ele tenha falhado – embora com brilhantismo tentado – em dar sentido (senso), já que ficou no censo, no cálculo, contando, “fazendo o inventário do mundo antes de se apresentar a Deus”, como evidenciam muitos dos objetos seriados manufaturados . Sua obra, de reconhecimento internacional, aponta para uma travessia, porém não completada. Cabe a quem a vê escutá-la, ouvir esse silêncio e o grito que ela promove.



E Quixote com isso? A obra de Cervantes se funda sobre o poder revolucionário do livro, da leitura, da literatura. Da litura, essa rasura feita nas palavras para descaracterizá-las, deformá-las, deixá-las livres para que o sentido dê quem as lê. Fracassa a leitura enquanto compreensão, só fica a ranhura sem sentido, como Joyce, que Lacan dizia para ser lido e não entendido. Menos consenso, menos verdades, logo, mais verdade. Enigmático, mas revelador. Revela-a-dor. The viewers are those who make the painting (Duchamp). O artista desfaz o sentido ou finge desfazê-lo para que o público o reconstrua a seu modo particular, único, diferenciado – daí se dizer que a obra de arte “funciona como analista”.

O fidalgo Quixote, leitor inveterado e identificado com os heróis dos romances que lia, parte despreparado para a batalha, da ficção para a realidade. Quando se dá mal, amigos Fahrenheit bem intencionados queimam seus livros para poupá-lo de adversidades (e aventuras!) futuras, culpando-os por seu excesso de imaginação. No entanto, em vão: ele já tinha sido inoculado por esse vírus (como se o homem precisasse disso ou daquilo para voar, para guerrear! Aliás, Navios de Guerra é o nome de outra produção de Bispo, feita de madeira, plástico, tecido e linha. E pulsões).

Quixote encarna o herói que crê nas pessoas a despeito de zombarias, traições, decepções, golpes sofridos. Estaria aí sua loucura?





Ana Guimarães

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

BUENOS AIRES



“La ciudad está en mí como un poema/ que aún no he logrado detener en palabras” (Borges 1923)

A mais européia das cidades da América Latina, a Paris sul-americana sempre me instigou pelo que ouvi falar da elegância discreta não só de suas meninas como de todos os seus cidadãos. Já a conhecia através de fatos políticos (a ascensão de Perón, a chegada ao poder, após a sua morte, da vice, Isabelita (sua segunda mulher), o sangrento golpe militar de 76 e a eleição de Menen, por voto direto do povo, em 89), através das letras de expoentes como Borges (escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta, habitual frequentador da legendária Livraria Ateneo), Cortazar (natural de Bruxelas, mas desde os quatro anos morador e amante da cidade, autor de Jogo da Amarelinha, Bestiário, Final de Jogo) e Sabato (de O Escritor e seus fantasmas, meu livro de cabeceira, ativo combatente da ditadura no país), e através também, inútil negar, embora não aprecie o gênero, do tango de Carlos Gardel, repaginado por Astor Piazzolla (ainda assim considero imperdível uma ida ao Viejo Almacén para assistir a um show do ritmo cadenciado que eletriza multidões).
Estive em B.A. por duas vezes. Na primeira, de passagem para Bariloche, cumpri à risca os roteiros dos guias turísticos. Na segunda, fui a mais perfeita tradução do flanêur: por quinze dias, sozinha, refém do acaso, zanzei de lá pra cá, de manhã à noite, aproveitando cada instante imortal posto que só chama. Perdi-me para me reencontrar, mas nunca me achava como antes, sempre diferente, reinventada. Descobri na metrópole (e em mim) tesouros que não constam de nenhum circuito-padrão. Fartei-me de uma interessante e desconhecida sensação de eternidade. Conheci curvas, arestas, dobras e brilhos do lugar. Tanto que quase me tornei porteña (o que significa portuária ou a que vive junto ao porto). O tempo, que tudo apaga e faz cinza do mais rubro, aqui não foi bem sucedido: passados vários anos do fim desses volteios desisto de pintar a plenitude das cenas porque sei da fenda que existe entre a linguagem e o ser, contudo tento desdobrar em palavras alguns dos principais reflexos e imagens que retive, o que a emoção mais murmurou - ainda hoje ouço aquele grito.
Revi com vagar a Plaza de Mayo (palco de acontecimentos cívicos significativos da história da Argentina, a exemplo do famoso encontro das madres de Mayo, mães de desaparecidos durante os anos de chumbo), a Casa Rosada (sede do Governo Federal), a Catedral Metropolitana (onde está o túmulo do General San Martin, herói nacional), o Teatro Colon (muitas celebridades ali se apresentaram: Caruso, Strauss, Stravinsky, Maria Calas, Nureyev), a 9 de Julho (uma das avenidas mais largas do mundo), o Obelisco (que – ao contrário do nosso de Ipanema, no Rio, erguido pelo ex-prefeito César Maia e já derrubado – após intensa polêmica, acabou se integrando à paisagem de B.A.), Manzana de las Luzes (belo conjunto arquitetônico tombado pelo patrimônio), Calle Florida (exclusiva para pedestres, farta em comércio de artigos de couro e lã, com o moderno shopping center Galerias Pacífico instalado num prédio onde funcionavam os escritórios da Ferrocarriles Argentinas. Uma coleção de afrescos e os vitrais da abóbada do teto executados por brilhantes artistas plásticos fazem com que, por incrível que pareça, comprar seja o que menos importa, com uma exceção: a loja Bonnie Life, de artesanato, voltada para a defesa da natureza: todos os produtos são ecológicos. Confira).
Voltei a La Boca, na margem esquerda da desembocadura do Canal do Riachuelo, colorido recanto que abrigou os imigrantes genoveses. De novo sorri diante de Caminito. A curiosidade são as casas (construídas sobre estacas, como proteção contra a maré alta) feitas com folhas de zinco porque essa era a matéria-prima utilizada nas embarcações que aí aportavam, pintadas de cores fortes com sobras de tintas que os moradores conseguiam junto aos navios.
Chegando à sofisticada Recoleta, curti a sombra do Gran Gomeiro, a seringueira árvore-símbolo do bairro. Depois visitei o Cementério, rico em frondosas araucárias, cheio de estátuas, monumentos, mausoléus, verdadeiras obras de arte, como o sepulcro de Evita Perón, a ex-primeira dama. Saí para conhecer a Basílica de Nuestra Senõra Del Pilar, de 1732, destinada às orações dos padres franciscanos recolhidos (recolletos), cujo Altar Mayor é o destaque: um trabalho em prata realizado por indígenas do Peru. Almocei em um dos notáveis restaurantes do Paseo Del Pilar, a galeria ao lado do Centro Cultural. Para quem se interessa pelo assunto, o B.A. Design Recoleta vale uma visita seguida de comprinha, nem que seja uma lembrança original. But, se quiser e puder gastar muito, vá ao Pátio Bulrich, templo do alto consumo, em uma antiga construção onde aconteciam leilões de gado, fortemente marcada pelo desenho inglês. A vitrine do Valenti especialidades (queijos, salames, azeites) é de cair o queixo.
La Plaza Shopping Center é mais um centro de lazer, com três áreas que homenageiam os três Pablos: Picasso, Neruda e Casals. Todavia, é domingo, dia de Feria de San Telmo, e é pra lá que eu rumo. Uma divertida feira de antiguidades ou quinquilharias, depende do ponto de vista, cheia de artistas anônimos, “estátuas vivas”, casais dançando (e ensinando) tango, tocadores de bandoneon (que som pungente! Sabe a música Pelos Ares, da Adriana Calcanhoto?) que de Mercedes Soza e Violeta Parra logo passam para Aquarela do Brasil ou Cidade Maravilhosa quando percebem a chegada de brasileiros “no pedaço”. Pega de surpresa, longe de casa, prenhe de saudade, corpo e alma são transpassados num só golpe (baixo)!
No Jardim Japonês, em Palermo (onde também está localizado o Parque 3 de Febrero, o grande pulmão verde da cidade), deixei-me ficar no silêncio da doce fluidez das horas, o que me pareceu ser, no momento, o mais perfeito enlace entre céu e terra. Enquanto o sol caía por entre as folhas, apreciava os bonsais, e, salpicada de gotas dos bailados das carpas em torno de migalhas de pão que os visitantes vinham lhes atirar, encharcava-me de paz.
Por fim, os Armazéns de Puerto Madero, resultado do maior projeto de revitalização da zona do cais (marina, dois barcos-museu, universidade, igreja, cinemas e inúmeros restaurantes), perfeito para um passeio pelo calçadão entre os prédios e o dique. Depois de muito caminhar, faminta, afoguei-me na mais feroz alegria dos sentidos, guiada apenas por desejos, aromas e sabores. O Cabana Las Lilas, que recebeu estadistas como Clinton e Fernando Henrique Cardoso, foi o escolhido. Se pedir tapa de quadril (picanha) com papas (batatas) fritas souflée, um clássico, não tem erro. Sobremesa: panqueca de dulce de leche, o melhor do mundo, vamos combinar. La Caballeriza foi outra boa escolha, quando lá voltei. A decoração lembra um haras, todo dividido em “baias” e os garçons vestidos no estilo. O cardápio, como sempre, voltado para as carnes, não invente. Bife de chorizo (nosso contra-filé) ou lomo (filé mignon) são uma excelente pedida.
A vocação gastronômica da cidade é um fato. Inúmeras são as opções, para todos os gostos e bolsos. Indico: Clark’s (frutos do mar ou o filé da casa, envolto em massa folhada com panceta e cogumelos). Prosciutto la Parrilla, localizado num prédio histórico de 1890, com um eficiente sistema de porta de entrada dupla para controle do frio externo, é outro que recomendo (jamon crudo (presunto cru) é a especialidade, servido de várias maneiras e acompanhado de chope, para variar dos vinhos até então consumidos). Las Nazarenas, tradicional assador criollo (churrascaria) também oferece maravilhosas carnes no típico fogo de chão. Muito aconchegante. Um ótimo, com menu a preço fixo no almoço, é La Casa de Esteban de Luca. O mais econômico, nem por isso menos agradável: uma simpática cantina chamada Broccolino, neologismo com o qual os donos, italianos, brindavam o Brooklin, em Nova York, onde estavam seus parentes que foram “fazer” a América.
E, se quiser um prato rápido, um lanche, uma comidinha leve, sem perda de qualidade, há cafés, confeitarias e casas de chá em profusão. Ressalto alguns: Café Tortoni, o mais antigo, fundado em 1858, muito querido dos intelectuais, artistas e jornalistas da época. Florida Garden (prove o sanduíche de pan de miga (pão de forma sem casca)). Le Caravelle (em pé, no balcão). Café de la Paix (lotado de americanos e europeus, nos fins de semana). Confiteria Jockey Club (peça uma platina de massas (bandeja de doces, deliciosos)). Delicity-Sweet House (tortas, medialunas (croissants) e um saboroso almendrado (sorvete de amêndoas). E o Freddo (uma cadeia de sorvetes artesanais, com mais de cinqüenta sabores. Tem filiais e entrega a domicílio). Falei dos alfajorres? (Finos discos de massa recheados com “aquele” doce de leite e cobertos de chocolate). Só aceite o Havanna, fabricado em Mar Del Plata. Vale o preço.
Mas não me (nem te) engano: o vivido é uma pluma que o vento vai levando pelo ar, e a essência, se é que ela existe, pertence ao invisível. Desfolhe meu real e alucine/concretize seus próprios sonhos. Siga sua caravana. Viaje, se preciso for, sem sair do lugar: pode ser ainda melhor.

Ana Guimarães

sábado, 20 de fevereiro de 2010

FRAGMENTOS DE UM ENIGMA

FRAGMENTOS DE UM ENIGMA

Debruço-me sobre poemas de Fabrício Corsaletti (o livro é Esquimó), na esperança de tomar distância do real e tentar manter o equilíbrio. Literalmente, acordei com labirintite.
Mas acontece o contrário, o que leio me remete de volta à questão pessoal. A poesia é como óculos: quando você os coloca, não vê os óculos, vê as coisas com mais clareza. A poesia é essa lente que faz com que se perceba tudo com mais nitidez.
Retorno aos pensamentos sobre a minha identidade. Ana Emilia Rebelo é meu nome de batismo, não esse com o qual todos passaram a me conhecer. Mas Ana Guimarães é meu verdadeiro nome, construído por mim, letra por letra. As duas afirmações guardam parte da verdade, assim é a realidade.
Mesmo acometida de desconfortáveis vertigens, continuo a ler. “Não quero voltar para casa/no seu abraço/não busco o que perdi.../...Você é vento quente/que me acompanha/o enigma que não precisa ser decifrado.../...De você eu quero apenas/um filhote de lobo/um filhote de lobo/para morder minha mão direita”.
Enigmas mordem a gente, despertam, trituram. E fazem sangrar. Na mão direita, a da razão, quando não se consegue entender. A esquerda, a da emoção, continua intacta porque partida desde sempre, como a castração na mulher.
Leio uma mensagem recém-chegada. "Grato pelo seu novo texto, Ana. Você me instiga, motiva". Só Ana, talvez essa seja mais eu.
Se transparente, veriam que além de escudo para a família, de escuta para as pessoas, tenho um lado sensível que aflora quando me deparo com mentiras e dissimulações. Ando tonta pelo vento que, para simplificar, chamamos vida, e suas incongruências.
Everything is broken, diz o poeta e assino embaixo, com qualquer um dos meus nomes. Novamente ele me retrata. “Minha voz/está quebrada/meu pensamento/está quebrado/(...)/tudo está quebrado/... Há uma pessoa no mundo/que não está quebrada/e eu estou ao seu lado/como se não estivesse quebrado”. Só o outro cola, fornece a ilusão de completude. Mas mesmo isso não estanca a sangria, sabemos.
Existem coisas a respeito das quais devemos nos calar, não procurar esclarecer, é inútil.“Nunca falei/nunca vou falar”. Falar afeta o frágil equilíbrio do mundo. Não falar afeta o meu.
Mais um verso que me traduz: “Não vou/me perdoar/pelo que fiz/Não vou/me arrepender/do que fiz”.
Das palavras não conseguimos escapar. Elas expõem a cisão que nos constitui. Escrever (poesia ou prosa, tanto faz) só roça o enigma, não pretende solucioná-lo. Não é inútil, embora também não sirva para nada (seria um sintoma do indizível?). Melhor não tocar no assunto. É mais prudente ficar em silêncio.

Ana Guimarães

domingo, 31 de janeiro de 2010

CAMINHANDO POR MADRI



CAMINHANDO POR MADRI

Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco, 
e me sabendo tal, sem grão de siso, 
sou — que doideira — um louco de juízo.
(Drummond)

Cansada, confesso que pousei no Aeroporto de Barajas desanimada, quase triste, com a sensação de que a fogueira estava prestes a se apagar, que a viagem agonizava. Primeiro, porque era um dado de realidade, afinal seria a última escala antes da volta ao Brasil. Depois, porque após o ápice que fora Barcelona, dificilmente alguma outra a superaria. Mas o jogo começou a virar na noite em que cheguei. O voo atrasou e fui jantar perto de onde estava hospedada, na Gran Via, num dos muitos restaurantes abertos  de madrugada, a metrópole tem fama de boêmia, nada fecha, nunca. Além do gentil atendimento, farta e deliciosa refeição por um preço ínfimo, comparado ao dos bacalhaus e jamóns que vinha, até então, degustando. Invadiu-me tanta alegria pelas papilas gustativas que fui dormir esperançosa de que o sonho continuaria enquanto a areia escorresse pela ampulheta.

Entrando no clima, tomei café com pan com tomaca (pão com tomate), e saí, como os mouros, disposta a conquistar Madri, só que caminhando e cantando, como Vandré. 
Parti para a Plaza Cibeles, no cruzamento entre Paseo Del Prado e a Calle de Alcalá, com sua famosa fonte, um lindo monumento.
Passei pela Plaza de Toros de Las Ventas, a das touradas, apenas por curiosidade, jamais assistiria espetáculo tão sangrento.
Na Plaza de Espanha, fotografei ao lado do busto de Cervantes e das estátuas de D. Quixote e Sancho Pança, seu fiel escudeiro. 
De lá rumei para Plaza Mayor, a mais bela de todas, incrível que o lugar tenha sido palco de julgamentos e execuções da Inquisição. 
Debaixo de suas arcadas, para abrir o apetite, provei o xerez Tio Pepe e belisquei tapas, uma espécie de petiscos salgados, embora os espanhóis odeiem esse reducionismo e adorem contar aquela velha história sobre a origem deles: como “tampas” para impedir que as moscas caíssem nos copos de bebida.
Andei até Puerta Del Sol, marco zero das estradas nacionais que saem da cidade, e vi o símbolo de Madri, a famosa estátua de um urso apoiando-se numa árvore chamada Madroño.
Pausa para almoço no Botin, o restaurante mais antigo do planeta, segundo o Guinness, de 1725, freqüentado não só por turistas como por habitantes locais, na Calle dos Cuchilleros, conhecido polo gastronômico. 
Talvez pela baixa temperatura, apesar do vinho consumido tive fôlego para ir direto ao Centro de Arte Reina Sofia, com seus panorâmicos elevadores de vidro, admirar o impactante Guernica, de Picasso, entre outras obras. 
Voltei para jantar no recomendado El Cuchi, cozinha mexicana, ambiente acolhedor e boa música.

Acordei disposta a dedicar manhã e tarde somente para apreciar os trabalhos expostos no magnífico Museu do Prado, um dos melhores acervos do mundo. 

No outro dia foi a vez do Museu Thyssen Bornemisza, que expõe a evolução da arte espanhola do século XIII ao XX. Mais Velásquez, Goya, Picasso, Dali.

O sol já aparecendo de novo, apesar do frio, e a marcha continua. Pernas, pra que te quero? Força, para chegar ao Templo de Debod, construído no século IV a.C., salvo de ser inundado por uma represa e dado de presente a Espanha. Fica nuns jardins no alto da cidade, valeu a pena a procura, pois além da sua beleza, nos presenteia com uma privilegiada vista.
Monastério de San Lorenzo de Escorial, na verdade um complexo que abriga mosteiro, basílica, biblioteca e dois panteões.
Valle de Los Caídos, monumento aos mortos da guerra civil espanhola, imensa capela escavada na rocha bruta.
Morta de fome, saí e fui direto almoçar um divino cozido madrileno no La Bola. 
A visita guiada, previamente marcada, ao Mosteiro de las Descalças Reales, repleto de tapeçarias, esculturas e pinturas de Rubens e Ticiano, doadas pelos pais das noviças, foi especial e diferente: somos acompanhados por um segurança para que ninguém se desvie e adentre algum recanto proibido, onde se encontram as religiosas reclusas. 
As Igrejas de San Isidro e N.S. de Almudeña, a padroeira, também encantam. 
Quando terminei, a noite há muito já nos enlaçava. Entrei, atraída pela placa, no Museo Del Jamón, que dispõe de enorme variedade da iguaria mais típica do país. Degustação terminada, concluí que meu presunto preferido é o Pata Nera (Pata Negra), feito da carne de um tipo de porco criado sem nenhum confinamento, alimentando-se apenas de uma espécie de castanha de coloração amarronzada, o que mancha suas patas, daí o nome.

Por fim, embarquei numa excursão de longa jornada para a qual fora pedido que se chegasse cedo no ponto marcado, com calçados confortáveis para pisar em ruas de paralelepípedos. Fomos levados a Toledoa capital da Espanha medieval até o inicio do século XVI, a cidade das três culturas (cristãos, judeus e árabes), dentro de antigas muralhas, preservada, tombada pelo patrimônio, berço de El Greco não de nascimento, mas por adoção, para aí desenvolver a maior parte de sua carreira. Ali nos extasiamos com várias edificações. 
Alcazar, que era um palácio fortificado. 
Igreja de São Tomé, bem simples, o destaque é que ela abriga “O enterro do Conde de Orgaz”, obra prima do mestre. 
Sinagoga de Santa Maria La Blanca, bem eclética em termos arquitetônicos, uma salada de estilos, em bom português, mais parece uma mesquita. 
E a Catedral, cujo altar ostenta magnífica escultura de Narciso Tomé, em mármore, jaspe e bronze, chamada Transparente devido à iluminação que recebe de uma clarabóia. 
Visitamos ainda uma autêntica oficina de artesãos em pleno funcionamento, lidando com ouro damasquinado, técnica secular onde se incrustam fios de ouro nos desenhos das peças. 
Um passeio encantador, mas exaustivo, o que me fez desabar na cama do hotel por oito horas seguidas. 

Desperto feliz, saciada de boas comidas e belas artes. Malas prontas, enquanto aguardo o horário da volta para a casa, vou domingar um pouco no Parque Del Retiro, enorme área verde no centro da cidade, com alamedas repletas de mímicos, músicos e acrobatas, barcos no lago e cafés ao ar livre. Uma senhora despedida. Agora o corpo quer relaxar apreciando o vaivém das pessoas, só a alma caminha. 

Ana Guimarães

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

BARCELONA, LUMINOSA CIDADE



A linha reta é do homem, a curva pertence a Deus. (Gaudi)


Barcelona, a primeira impressão, aquele instante, permanece a cantar até hoje em minha alma. Revejo a gélida noite de seis de janeiro de 2002. O coração logo aquecido, seu ritmo acertado ao ritmo da festa de Reis que incendiava as ruas da cidade. Como separar a dançarina da dança?, perguntava-se Yeats. Só sei que rodopiei enquanto lá estive. E, sempre que a revisito na memória, bailo de novo.
A privilegiada localização do hotel em que fiquei, praça Catalunya, foi vital para a mobilidade e conseqüente melhor e mais rápido conhecimento de tudo, no tempo de viagem de que dispunha. Daí partem os ônibus turísticos que levam de uma atração a outra. Aí se encontra El Corte Inglês, loja de departamentos com ampla oferta de mercadorias de qualidade a preços razoáveis, e, sorte minha,  ainda estava em rebaja (liquidação). Aí também começa a famosa La Rambla, com um grande e constante fluxo de pessoas, onde se pode tanto visitar o mercado La Boqueria e se abastecer com pães, queijos, vinhos, frutas secas e o maravilhoso jamon (presunto cru) quanto assistir a um espetáculo no Gran Teatre Del Liceu (Montserrat Caballé tinha estreado na véspera, mas os ingressos para a temporada já estavam esgotados). Ela termina em um ponto igualmente importante, o monumento a Colombo, uma enorme estátua no meio da praça do Portal de la Pau, marco que comemora a vitoriosa volta do navegador após sua primeira expedição ao Novo Mundo. Bem perto, no Port Olimpic, é possível sair ao mar em barcos chamados Golondrinas, quer dizer, andorinhas, que, aliás, nunca sós, sempre em bando, dando vôos rasantes sobre as cabeças dos turistas, fazem verão em pleno inverno.
Passeig de Gràcia, paralela a Rambla, entre outros motivos, merece uma caminhada. Deixei-me embriagar pelas vitrines de joalherias e sofisticadas grifes, e ainda consegui comprar na loja Vinçon, de design contemporâneo, uma caneta finíssima, nos dois sentidos, para Nanda, minha filha designer. Além disso, depois de tanta andança, descobri a oficina manual de alpargatas catalãs típicas, de modelos, cores e tamanhos a escolher.
A Avenida Rainha Maria Cristina, ladeada por campanários inspirados nos da praça de São Marcos, em Veneza, tem escadas rolantes a céu aberto e uma enorme quantidade de bancos para a siesta, a soneca obrigatória depois do almoço. Se em Roma, como os romanos, relaxei e cedi ao sono, até porque quase tudo fecha nesse horário.
A gastronomia seria um capítulo à parte, contudo vou resumi-lo,  come-se bem em qual-quer lugar, dos mais dispendiosos aos mais econômicos, tanto a comida típica (paella, por exemplo, feita de arroz com açafrão e frutos do mar) como a internacional: considero que tomei a sopa de cebola mais deliciosa do mundo, talvez porque tenha me aquecido do frio de cinco graus assim que cheguei, no restaurante La Poma, simples e lotado.
Berço de muitos gênios da arte, Barcelona tem, além do Museu Nacional D’Art, atrações imperdíveis. Comecei pela Catedral gótica, com vinte e oito capelas laterais, emudeci diante de tanta beleza. Depois fui a Fundação Miró, no Parc de Montjüic, que abriga os principais trabalhos do pintor surrealista, embora eu tenha preferido o Museu Picasso, ele próprio, as três casas que o compõe, uma obra de arte. E ainda fui presenteada com uma exposição extra, Picasso erótico.
Todavia, rendo-me à unanimidade, que nem sempre é burra, Gaudi é a estrela do pedaço. Duas ou três coisas que sei dele: professava uma profunda fé religiosa e difundia com fervor a linguagem e a cultura catalana, quando isso era proibido, conta-se que chegou a se recusar a falar espanhol com um policial, o que lhe valeu duas noites na cadeia. Morreu atropelado. Não totalmente, como atesta a arquitetura que pintou em aquarela nada formal. 
Para começar, fui conhecer a Casa Vicens, sua primeira grande encomenda. Surpreendente. Depois, o edifício de apartamentos Casa Milà, mais conhecida como La Pedrera, com a fachada curva, ondulada, e suas conhecidas chaminés. E ainda a Casa Batlló, uma marca do seu estilo, particular, único, com muitos elementos diferentes, mistura de vitrais, madeira, cerâmica e ferro forjado, os três últimos considerados modernos, na época. Visitei com calma o Parc Güell, tombado como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, com uma imensa salamandra revestida de cacos de azulejos a recepcionar todos os que sobem a escadaria da entrada. Por fim, entreguei-me à visão da grandiosidade da Basílica da Sagrada Família, templo idealizado por ele, ao qual dedicou quarenta e três anos da vida, e apenas conseguiu ver terminadas algumas partes, entre elas a monumental fachada “do Nascimento” e uma das dezoito torres projetadas, com um elevador que leva o visitante ao alto, onde o olhar parece se estender além do horizonte. Considerada, se/quando concluída, a maior da Europa. Saí tocada pela grandeza daquele verdadeiro work in progress a me lembrar quão inacabados somos, em eterna construção.


Não creio em ti, Senhor, mas tenho tanta necessidade de crer em ti, que muitas vezes falo e te imploro como se existisses.
Tenho tanta necessidade de ti, Senhor, e de que sejas, que chego a crer em ti — e penso crer em ti quando não creio em ninguém.

Mas depois desperto, ou me parece que desperto, e me envergonho de minha fraqueza e te detesto. E falo contra ti que não és ninguém. E falo mal de ti como se fosses alguém.

Quando, Senhor, estou desperto e quando adormecido?

Quando estou mais desperto e quando mais adormecido? Não será tudo um sonho e eu que, desperto e adormecido, sonho a vida? Despertarei algum día deste duplo sonho e viverei, longe daqui, a verdadeira vida, onde sonho e vigília sejam uma mentira?

Não creio em ti, Senhor, mas se és, não posso dar-te o melhor de mim a não ser assim: senão dizendo-te que não creio em ti. Que forma de amor tão estranha e tão dura! Que mal me faz não poder dizer-te: creio.

Não creio em ti, Senhor, mas se és, tira-me deste engano de uma vez.
Faz-me ver bem a tua cara! Não me queiras mal pelo meu amor
mesquinho. Faz com que, sem fim e sem palavras, todo o meu ser possa dizer-te: És.

(Canto espiritual, poema de José Palau, poeta catalão, traduzido por Augusto de Campos)



Ana Guimarães