domingo, 16 de junho de 2019

A NAMORADA

A NAMORADA

Tinha permanecido deísta, mesmo após o repúdio à prática religiosa no qual uma rígida formação escolar jesuítica quase sempre resulta. Acreditava tanto na proteção divina contra todos os males como no atendimento de pedidos que suas rezas diárias evocavam. Pesadelos repetidos faziam-no acordar em ereção ou já tendo que trocar o pijama no meio da noite. Pela manhã, enquanto se barbeava olhando com interrogação o espelho, associava a partir de fragmentos oníricos, baseado no que aprendera naquela eletiva Introdução à Psicanálise que havia cursado só por causa da professora, a que ondulava os quadris pelos pilotis, enlouquecendo os alunos.

Sufocara anseios libidinosos para não prejudicar os estudos. Promessa cumprida (curso acadêmico concluído com louvor, vida profissional iniciada), ia tratar de saciar sua fome dos sentidos tão bem quanto as do espírito e do intelecto. Implorou a todos os santos e anjos que fizessem aparecer a mulher ideal, quer dizer, real, de carne e osso, aquela que o livraria da incômoda virgindade. Que o faria homem. Daria um basta à repressão e aos jogos de ilusão, coisas de criança ou louco. Submeter-se-ia, enfim, às leis da natureza. Para isso impunha um prazo ao acaso, um mês no máximo, pensava, vendo o porta-retrato com a foto da doce figura materna de maiô na piscina, objeto de fantasias masturbatórias, na falta de uma Playboy qualquer à mão.

Se conseguir chegar no fim da plataforma antes que a composição do metrô termine de passar é sinal de que vou conseguir. Duvido, o trecho da caminhada é longo, por mais que eu corra... Pronto, não é que deu? Se o número de pedras brancas for superior ao das pretas até chegar à galeria, vou conhecê-la hoje. Putz, quem mandou seguir tais impulsos obsessivo-compulsivos? Que frio na barriga, que taquicardia! Até parece que não quero o que desejo. 

Dez para as duas, confere ao entrar no restaurante, tendo que esperar uma pequena fila de retardatários comensais. Fora a costumeira indecisão na hora da montagem da salada, será que consigo me resolver antes que algum gaiato comece a reclamar? Meu Deus, é opção demais!  A pessoa logo atrás na fila, gentil, tenta ajudar, ou será por que cansou de esperar? O vinagrete com mel e nozes é a melhor pedida, experimente. É o que faço, e detesto. Passo a vigiá-la na mesa ao lado, linda, rosto enfiado num livro de francês, não sei se lendo ou para suportar os olhares baços, afastar possíveis paqueras, já que ostenta uma grossa aliança de ouro na mão esquerda. Termino a refeição e agradeço com sinal de positivo. Ela sorri mais com os olhos do que com a boca. Mesmo assim parece dizer um il n’y a pas de quoi  bem sincero. Era ela, tinha certeza agora. A primeira da minha vida.

Dia seguinte fico zanzando por ali na hora do almoço, esperando-a. Já desistia, quando a ruiva aparece, de novo sozinha. Aproximo-me ligeiro do balcão e começo a fazer meu pedido, enfatizando: o molho é o de mel, aquela dica foi ótima, viu? Qual o seu nome? Teresa. D’Ávila? Como? Nada, brincadeira, o meu é João. Da Cruz, para seu deleite e gozo.

Em uma semana ela já frequenta o meu apartamento. Na qualidade de amiga, bem entendido, com a empregada, minha ex-babá, torcendo o nariz e fechando a cara por causa do tal anel que denuncia sua condição civil. O filho de um ano é seu assunto preferido, além de literatura, já que mestranda em letras, trabalha com tradução numa pequena editora. Fala com vivacidade da criança, o que a torna mais encantadora ainda, os grandes olhos azuis acinzentados se iluminam, as covinhas se acentuam, detalhe que o bebê herdara, vi nas fotos.

De repente, assim do nada, sem planejar, um beijo de despedida trocamos à porta do elevador. Nada lascivo, sensual, nada de língua, mal tocamos nossos lábios. Desculpe, não volte se não puder me amar, vou compreender. Ela nada responde. Rosto congelado, enigmático, se foi. Não dormi tentando desvendar a falta de expressão, o que significaria. Dia seguinte, mal chega vai logo falando, numa franqueza que descombina com a suavidade da voz: você nada fez para me seduzir.

O tempo passou sem que nos déssemos conta, e, antes que eu gozasse ao menos uma vez, uma mísera única vez (muito justo, comparado com sua tarde multiorgástica) a menina, ao mirar os brilhantes ponteiros do relógio no semibreu do quarto, dá um pulo da cama, preciso ir embora, tenho que ir buscar Rodrigo na creche. Tomo uma ducha rápida para tentar baixar os ânimos e volto ao quarto a tempo de vê-la fazer uma leve maquiagem. Observo-a com o canto do olho. A minha princesa! Cheguei atrasado, outro dragão passara antes e cuspira seu fogo nela. 

Encontrávamo-nos todas as tardes, mesmo que não fosse para transar, mas quase sempre era. Nem comíamos mais, sorvíamos um ao outro de tal maneira que nos bastava. Emagrecemos a olhos vistos, mas transparecíamos felicidade de longe, assim depois me contaram atentos e discretos observadores. Essa moça, nua, lia poesia francesa para mim enquanto eu a impressionava – ou pensava que, ou tentava – falando de teologia. Bá Ina havia reclamado a princípio, mas discreta, saía e só voltava à noitinha, deixando-nos à vontade. Os amigos, ao contrário, estranhando minha ausência de todo e qualquer programa em grupo, fuçavam como loucos meu laptop, celular, crivavam-me de perguntas querendo saber com quem eu estaria envolvido. Já ia completar um ano nessa brincadeira. Séria brincadeira. Uma noite o telefone toca e, sem preâmbulos, como é seu estilo, avisa: precisamos conversar, não aí, num lugar público qualquer, zona neutra. 

Nem precisava, entendi na hora. Ou seja, no minuto, no segundo. Tenho dor de estômago e fico sem poder engolir qualquer coisa, ao lembrar da cena, Teresa falando acabou, basta dessa situação insustentável, você não se decide! E eu em silêncio, só lambendo com a ponta do indicador o resto do molho de mel da salada.

Ana Guimarães

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