quinta-feira, 27 de junho de 2019

O FLORISTA

FLORISTA

Não era a linguagem o seu principal problema, apesar de ser estrangeiro radicado no Brasil há quinhentos anos e ainda falar com sotaque aquele portunhol que nem nós, experts no assunto, compreendíamos. Tampouco era a entonação de sua voz, desinteressante, desinteressada, quase deprimida, como se tivesse acabado de perder um ente querido. Aliás, acabara mesmo de enterrar um cunhado à tarde, por isso se atrasara ao encontro. Mas não, ele já se mostrara exatamente assim há cinco meses atrás, quando o conheci.
O que mais aborrecia era sua dificuldade de ouvir. Não no sentido literal, embora tenha desconfiado, desde o início, que a  função auditiva também estivesse um tanto prejudicada pelo avançado da idade, mas no sentido mais amplo da escuta, sua incapacidade de dialogar, a impressão de desconhecimento do que isso significa. Aquela cadência, aquele ritmo que funciona mais ou menos assim: um emite uma opinião, um conceito, pergunta algo, enquanto o outro atento ouve e então responde, concorda, discorda, acrescenta, tira dúvidas. Operação que não só permite como exige, às vezes, uma interrupção do fluxo de pensamento do interlocutor e um caminhar em outra direção, numa boa. Quem está em sintonia com o assunto o faz sempre intuitivamente, sem sentir. Apartes são indispensáveis numa conversa, diria até que são um sinal de que ela está sendo proveitosa, de que existe uma dinâmica flexível, uma vitalidade da língua que desliza macia, quase iludindo os ouvidos mais incautos e/ou absortos de sua tão decantada capacidade de comunicação.
Esse ponto é maravilhoso. Essa fraude, esse engodo. Quanto mais perto dele chegamos mais evidencia que um verdadeiro contato corpo a corpo, sujeito a sujeito, se estabeleceu. Como a relação sexual que não há, quer dizer, um ajuste perfeito, mas nem por isso deixa-se de tentar, que é bom é. Essa deliciosa mentira que dois formam um, que existe fusão, metades que se complementam, bla, bla, bla. Mas quando, por um átimo de segundo  sente-se assim, então valeu.
Pois é, falava do dono de uma floricultura que nos visitava para oferecer os serviços de decoração para a cerimônia de casamento de uma filha. Figuraça. Não quis se sentar assim que chegou, ignorou todos os convites, deixando-nos numa situação desconfortável. Donos de casa em volta da mesa da sala de jantar, com a visita, aquele senhor idoso recém-chegado, ali parado, de pé, argumentando, melhor dizendo, rosnando entre dentes, que ficaria assim para melhor mostrar seu trabalho nos inúmeros álbuns de fotografia que trouxera, tarefa que prometia ser demorada. Pedimos licença e nos sentamos. E teve início nossa sessão de tortura.
Agora entendia porque ele quis ficar em posição mais alta. Superioridade. Para definir logo quem mandava. Quase uma hora de verdadeiras sevícias psicológicas nos foram impostas. O QUE? COMO? Esforçávamo-nos para escutá-lo. Sim, ainda mais essa, como metade dos surdos ele falava baixinho (a outra metade, como se sabe, grita). Lábios entreabertos, ou semicerrados, não fazia o menor esforço, parecia que falava para si próprio.
Empenhava-me em decifrá-lo, imaginando o que os outros estariam sentindo. Eu com dificuldade, imagina o resto, era espantoso. A que tem ouvido biônico, ou de tísica, como sempre brincou meu marido, levando as filhas muito cedo ao dicionário para ver o significado da palavra.  Eu, que com o meu quarto localizado no final do corredor, nos tempos de carpete no apartamento (claro, antes da descoberta desses seres nojentos com que os alergistas insistem em nos ameaçar, os ácaros, nossos verdadeiros dormindo com o inimigo) conseguia ouvir os passos de alguém se aproximando de madrugada para falar qualquer coisa, quase sempre ruim, já que ninguém vem trazer notícia boa a essa hora.
Todos boquiabertos, em silêncio, atentos, não conseguindo escutar/entender o florista, esperando por mediação. Tentava ajudar com minha parca compreensão. Cada trecho era logo traduzido, parecia mesmo que estava no exterior, apesar de ter estudado um pouco de cada, só entendo outros idiomas falados lentamente, me lasco toda se o nativo se empolgar, falta de prática em conversação, mas aí já é outro papo. Até que dá pra seguir uma orientação de direção, por exemplo, escolher um prato num cardápio, fazer umas comprinhas. Já quando falam rápido, a coisa complica. 
Tamanho esforço me rendeu uma tremenda dor de cabeça quando a visita acabou. E enquanto durou, durou, parecia que nunca ia ter fim. Sei que é forte por tão pouco, parece exagero, é lugar comum, mas quando ele se foi a paz voltou a reinar aqui em casa.
Minha outra filha, a mais nova, que ficara em seu quarto o tempo todo, chega às gargalhadas, quebrando o penoso clima que nos tinha sido imposto. Ela sim, se divertira a valer, só de ouvinte.  Que barra, hein? Mãe, você foi soberba. Paciente, controlada, mas firme e decidida a enfrentá-lo, a bela contra a fera. E corajosa, interveio o pai da noiva. Sim, porque foi preciso coragem para argumentar e com isso correr o risco de prolongar o martírio.  E o mais difícil: ser intérprete de gente que não entende nem se importa em se fazer entender. 

Ana Guimarães 

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