domingo, 30 de abril de 2023

VOVÔ GOMES E A ORELHA DO BURRO


Vovô* Gomes e a orelha do burro


Li em algum lugar que esse sobrenome, segundo alguns registros, tem origem portuguesa no prenome medieval Gome ou Gomo, provindo do visigótico Guma, abreviatura de Gomarius, homem da guerra. 

Faz sentido. Aquele jovem senhor viúvo, pacífico comerciante, sempre de bem com familiares, amigos, vizinhos e empregados tinha pavio curto. Um problema doméstico à toa e saía do sério, surgia um belicoso guerreiro. 

Roupa mal passada era amassada e devolvida à lavanderia. Não admitia nenhuma mancha na toalha de mesa onde ainda se faria a refeição. Exigia louças, talheres e copos impecáveis, mesmo os usados no dia a dia. A comida precisava ter acabado de ser feita e servida fervendo. Fruta não é sobremesa, dizia, tragam doce de leite, pavê, pudim, goiabada cascão, marmelada Colombo. 

Traços herdados por mim, a família zoa. Então deve estar no DNA, já que convivemos tão pouco, eu tinha quatro anos quando meu avô “sumiu no mundo sem me avisar”, um ataque cardíaco fulminante o levou, antes dos cinquenta.

Foi difícil lá voltar depois da sua morte, ano após ano, no Dia de Finados, até a casa ser vendida. Um vazio jamais preenchido, não houve lágrima que desse conta. Que falta fazia aquele vô alegre, brincalhão, que se ajoelhava e abria os braços para nos receber, num abraço em que cabia todo mundo.

Sentado no chão com os netos, fazia pilhas de moedas, de alturas e valores diferentes, e nos mandava escolher. Foi assim que, bem pequenos, fomos apresentados ao valor do dinheiro. Aprendemos a poupar, para comprar algo, se não tínhamos em mãos a quantia necessária para isso. Ou a pedir emprestado e pagar com um pequeno ajuste, “recompensa” para quem nos adiantou o capital. Quase um bê-a-bá de educação financeira para crianças (acho que meu irmão, economista, ficou com esse legado).

O que eu curtia era ouvi-lo contar passagens da sua vida, reais ou inventadas. Dramatizava (outra característica minha, segundo a amiga astróloga, culpa dos quatro planetas em sagitário, além do signo) para ficar mais crível, mas o efeito às vezes era oposto, gerava desconfiança, no mínimo dúvida, o que me intrigava. 

Só tive certeza de que a tal cobra que ajudou a capturar na fazenda não era invenção no dia em que mamãe me mostrou o sapato e a bolsa feitos com a sua pele, por seu Martins, o sapateiro da rua da Conceição, na Cidade (naquela época era assim que nos referíamos ao Centro do Rio).

A da orelha do burro pensei que fosse piada, porque contada e repetida às gargalhadas, mas há testemunhas. Um dia, atrasado para o trabalho e já irritado com a situação - um animal empacado numa ponte - partiu para o corpo a corpo e aprontou esse absurdo. Pelo menos o pobre do bicho saiu correndo em disparada, liberando o caminho. Daí a fama dos Gomes: são esquentados, capazes até de morder orelha de burro.

Curioso é que meu pai na hora em que me registrou resolveu omitir o sobrenome Gomes da minha certidão de nascimento. Fiquei só com o dele, Rebello (também português, oriundo da Península Ibérica, da Itália ou dos Açores, há divergências). Na verdade sofri mais duas perdas: um l (tendo ficado Rebelo) e um n, do nome próprio, homenagem a Anna, a avó materna, porque o teimoso escrivão do cartório assim determinou. Mas ganhei Emília (um tributo à mãe do meu pai). E, por casamento, virei Guimarães, que acredita-se tenha vindo da palavra germânica Wimaranes, que significa terra de cavalos de combate. Mas aí já é outra história. 

*O único que conheci, quando nasci os outros três já tinham morrido. Mas ele compensou direitinho.

Ana Guimarães