sábado, 30 de maio de 2009

SUBINDO



Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária.
(Cortázar - Instruções para subir uma escada, em Histórias de Cronópios e Famas)


Não acredito em literatura de Internet. Internet é veículo. De comunicação. De toda sorte de escritos, uma diversidade também encontrada nos livros. Não me parece, como preconceituosamente se crê, que tenha mais lixo sendo feito num lugar do que no outro. Internet é instrumento, ferramenta (mais uma) que possibilita, inclusive, a democratização do conhecimento. Sabemos, por exemplo, que no Portal Domínio Público – além de uma biblioteca com mais de mil obras que já têm autorização legal para publicação, permitindo a sua impressão e facilitando, com isso, por tabela, a difusão cultural e a inclusão social – qualquer autor pode ter seu texto digitalizado e, portanto, disponibilizado para divulgação, para ser acessado pelos internautas quando assim desejarem, com gratuidade. Única cláusula de restrição: sem fins comerciais. E resguardando-se a autoria, é claro.

Tenho observado, hoje em dia mais do que nunca, que escrever é abrir nova perspectiva de entendimento para algo que, até então, não comportava inteligibilidade, ou ao menos não-toda (sempre, e para nosso alívio, por mais que se revele, algo resiste e insiste). Tentar dar conta de uma experiência difícil de ser dita, tanto aquilo que nos persegue quanto o que nos escapa, o excessivo e a falta. Fazer diferença. Não uma diferençazinha de forma, porém a escrita de uma diferença. Como uma impressão digital: mais pessoal e intransferível impossível, pois a linguagem não expressa o sujeito, ela o constitui. Isso explicaria, em parte, o boom dos blogs, numa época em que a massificação predomina e as subjetividades são ameaçadas.

No entanto, diz-se que a arte (a literatura incluída) não comportaria engajamento moral, político ou religioso, todos sintomáticos de fechamento. Ela os dispensaria. Não se trata de impessoalidade: um texto livre engaja-me sem que eu precise dizê-lo. Mas seria algo que ultrapassa a realidade, evita as malfadadas referências explícitas às questões sociais. Clarice Lispector teria respondido, certa vez, quando questionada sobre sua alienação ante a miséria do povo brasileiro, que isso era muito óbvio e ela não escrevia sobre o óbvio.

Criação é transgressão por definição, não pode ter limite. Xô para essa hipocrisia do politicamente correto que beira o fascismo! Um controle vigilante, uma censura prévia corre o risco de engessá-la. Fraturas no establishment são esperadas e até desejadas. Uma charge, por exemplo, nutre-se do real, do cotidiano para transcendê-lo. Não existe humor a favor, humor é sempre contra: senão, que se proíba logo tudo! (E a ironia?)

Porém, dúvidas me assaltam, e não são poucas. Ainda vigora aquela tese segundo a qual quanto mais ficção, quanto mais opacidade mais literatura com L maiúsculo? (Como se a realidade fosse menos opaca, como se lembrança tivesse selo de fidedignidade...) Um texto ultra-real, cru, de uma naturalidade exacerbada, com um conteúdo confessional em estado bruto, mal trabalhado seria considerado limitado? Fernando Pessoa dizia que imitar a natureza não quer dizer copiá-la, e sim copiar os seus processos. Os porões do desejo (sexual, agressivo) quando visitados sem a lanterna da fantasia podem se revelar indigestos? Ainda Pessoa: “... qualifico de insinceras todas as coisas feitas apenas para pasmar, onde não passe o mistério da vida”: vale chocar por chocar, pura e simplesmente? Porque isso dá ibope, sabemos.

A mão que corrige não é a mesma que escreve. O inconsciente cria, o ego edita. Mas como, se o tempo – ou melhor, sua rápida fruição hoje em dia – parece ser um empecilho para o reencontro da palavra como objeto a ser burilado por um artesão, por um artífice? Num primeiro momento, o que impera é a construção (per via de porre), a seguir vem (precisa vir) talvez o principal: revisar, tirar o excesso, como o escultor (per via de levare). Mas se tudo é consumido com voracidade (os posts se sucedem numa freqüência absurda), há uma dificuldade, senão impossibilidade, disso acontecer.

Depois de muito rodar por aí percebo a inexistência do que possa ser conceituado como literatura contemporânea na rede, ou algo do gênero. A falta de algum elo formal ou temático, um traço que aglutine, por identificação, os autores, seus textos – seria exatamente isso que a caracteriza? Só mesmo uma vã guarda, como li não sei mais onde. Uma lotada: apenas estamos juntos, indo para o mesmo destino: qual mesmo? Individualistas, cada um com o seu cadáver literário próprio. Aliás, não era assim que Mallarmé postulava a literatura: como resto, dejeto?

Minha mão sempre me surpreende (Miró)

Ana Guimarães
Texto editado a partir do original Subindo ao Mezanino, publicado no site Cronópios, em 4/3/06.

domingo, 24 de maio de 2009

Primavera de 2009 na Europa – PRAGA


Carregamos conosco, cada qual a seu modo
uma paisagem harmonizada, uma cidade
que existe e não existe, como a realidade...
Bruno Tolentino
Chegamos a Praga, capital da República Tcheca, a pérola do oriente europeu, o navio dourado que navega majestoso pelo Vltava, como dizia Apollinaire, uma das cidades mais mágicas do mundo, concordo com Thomas Mann. Instalados no centro de Staré Mesto (Cidade Velha), a alguns passos de Staromestké Námesti, a praça, guiados por mãos experientes de viajantes que nos antecederam, resolvemos passar o primeiro dia explorando esse que é considerado um dos mais belos bairros da Europa.

Visitamos a antiga Prefeitura, cujo prédio exibe na fachada o famoso relógio astronômico medieval, o Radnice, um ícone da cidade. Centenas de turistas diante dele para ver e registrar, a cada hora cheia, a procissão das estátuas de Jesus e seus apóstolos, seguidos pela da morte e outras figuras simbólicas.

Depois, paramos para apreciar o monumento erguido em homenagem ao reformista religioso Jean Huss, sacerdote, mártir e precursor da Reforma protestante. Em seguida, almoçamos no Orologio, um dos vários restaurantes com mesas na calçada, onde se pode experimentar a autêntica cozinha tcheca: deliciosas e bem temperadas carnes de porco e pato, com o acompanhamento típico: dumplings. De sobremesa, Palacinky (crepe com sorvete). A pivo (cerveja) local além de saborosa é leve, o que não dificulta a continuação da caminhada.

Percorrer a Celetná, a rua mais antiga, por onde passavam os cortejos reais, é como voltar no tempo, a alma da gente rodopia! Aqui está a deslumbrante Igreja Tyn, fundada em 1365, que abriga a tumba do astrônomo Tycho Brahe, e ainda a Torre de Pólvora, em estilo gótico, uma obra prima de Matej Rejsek, que além de funções militares servia como portão principal para o rei quando retornava do estrangeiro. Bem perto está outro ‘cartão postal’, o prédio mais bonito de Praga, a Casa Municipal.

Amantes do escritor Franz Kafka, fizemos questão de ir ver sua estátua, como não poderia deixar de ser, uma insólita escultura em bronze, ao lado da Sinagoga Espanhola, na fronteira com o Josefov, o bairro judeu. E, ingressos previamente comprados, fomos assistir no Image uma apresentação teatral não verbal, o Black Light Theatre, assim chamado porque nele os artistas vestidos de preto para ficarem invisíveis no também negro plano de fundo do palco contam histórias através de pantomimas, esquetes de vaudeville e ballet, utilizando fabulosos efeitos visuais. Performances toda noite, sempre com espetáculos diferentes.

Last but not least, percorremos a maravilhosa Karluv Most (Ponte Carlos), só para pedestres (uma multidão transita por ali, diariamente), ornada com trinta estátuas ao longo dela, sendo que a de São João Nepomuceno, bem no meio, é uma homenagem a ele que foi jogado ao rio nesse ponto porque se recusou a contar ao rei o que a rainha havia lhe dito em confissão. Jantamos no Klub Arquitektú, ao lado da histórica capela Betlémská.

Nové Mesto é a Cidade Nova, onde fica a imensa praça de São Venceslau com a estátua eqüestre do santo patrono da região, circundada de edifícios antigos e modernos, muitos em estilo art noveau. Museus, galerias, lojas e o conhecido café Europa. Mas preferimos outro de ambiente também luxuoso, atendimento exemplar, cardápio internacional, outrora frequentado por Einstein: o Louvre, assim que saímos do espetacular Laterna Mágika, na mesma rua, uma espécie de show multimídia, com imagens e sons gravados e artistas ao vivo.

Na margem esquerda do rio, no alto de uma colina fica Hradcany, ou o distrito do Castelo. O lugar é amplo, a vista, esplêndida. Entra-se pelo magnífico Portão de Matias (demos sorte de chegar na hora da cerimônia de troca da guarda, um acontecimento) para visitar o Palácio Real (residência dos reis e príncipes da Boêmia até o final do século XVI; depois de 1918 os presidentes passaram a ser aqui empossados), o Tesouro (coleção de jóias, relicários, etc), a basílica de São Jorge e a imponente Catedral de São Vito, com 21 capelas, destaque para a de São Venceslau.

Descendo, chega-se em outro bairro, o Malá Strana, onde está a Igreja de São Nicolau, uma das mais lindas construções barrocas da cidade, seu domo é visto de longe, impressiona. Mais abaixo ainda, a Igreja de Nossa Senhora Vitoriosa que possui a escultura em cera do Menino Jesus de Praga, a quem atribuem curas milagrosas.

Quando Praga me ocupa o coração, tenho que ir embora. Chove pela primeira vez em toda a viagem. Dói a partida, talvez porque se confunda com o final de um longo, sonhado e realizado périplo. Embriagada por seu aroma, sua gente hospitaleira, seus bem cuidados recantos históricos, despeço-me. Sei que amei só pedaços, fragmentos, instantes soltos, flashes, e por pouco tempo – pura epifania – porém tenho dificuldade de partir o fio já tecido. Faço minhas as palavras de Kafka: esta velha tem garras, não deixa a gente ir embora.

Ana Guimarães

sábado, 16 de maio de 2009

Primavera de 2009 na Europa - VIENA




Tudo o que favorece o estreitamento dos vínculos emocionais entre os homens deve atuar contra a guerra... Tudo o que estimula o crescimento da civilização trabalha simultaneamente contra a guerra. (Sigmund Freud)

É entrar em Viena e logo, como num passe de mágica, sentir o clima dos gloriosos séculos passados, mesmo tendo ela se modernizado a ponto de ser considerada a terceira capital européia em padrão de vida de seus habitantes. Cavalos puxando carruagens lado a lado com modernos automóveis. Tranqüilidade, distinção e elegância. O feriado prolongado (segunda-feira também, além do tradicional domingo de páscoa) talvez tenha contribuído para esvaziar a cidade e dotá-la de mais amplidão e quietude ainda em seus sempre limpos, bem conservados e arborizados espaços públicos. Music (classic) is in the air: aqui e ali se ouve Mozart, Strauss, Beethoven, o que proporciona instantes de alta distensão lírica aos passantes. Testemunhar gestos de educação, honestidade e respeito ao próximo no dia a dia faz ressurgir em nós a crença na humanidade. E bucólicos jardins convidam-nos a contrariar aquela máxima segundo a qual “turismo é agito, só louco descansa em dólar ou euro”.

Ficamos hospedados na Rennweg, num bom hotel bem próximo ao Palácio Belvedere, uma das inúmeras edificações arquitetônicas admiráveis a serem visitadas. Outras são: Schönbrunnn, comparável ao que Versailles é para Paris, com visitas guiadas aos mais de mil e quatrocentos aposentos, inclusive os da famosa Sissi, a imperatriz. Hofburg, complexo de residências imperiais, museu, escola de equitação e capela, a cintilante Burgkapele, onde assistimos a apresentação dos conhecidos Meninos Cantores de Viena. Stephansdom, a catedral da Stephan Platz, no coração do centro histórico, com exuberante telhado composto por azulejos vitrificados formando figuras, datada do século XIII. Quem não se atreve a encarar trezentos e quarenta e três degraus pode pegar o elevador da torre norte e ter uma vista privilegiada do ponto mais alto da cidade, dos mais variados ângulos. Rathaus, a prefeitura. O acender de suas luzes ao anoitecer, jantando defronte a ela, no Landtman foi um momento inesquecível. Karlskirche, a igreja barroca mais bonita de Viena, interior ricamente ornamentado. Suba por dentro até o domo, fotografe e filme bem de perto os deslumbrantes afrescos do teto. Pestsaule, monumento erguido como lembrança do fim da peste negra, em 1663. O relógio Anker, situado numa passarela ligando dois prédios. Programe-se para vê-lo ao meio-dia, quando acontece uma procissão de figuras em madeira reproduzindo nobres e religiosos da história do país.

Para quem aprecia, o Museu de História da Arte exibe um admirável acervo, o mais completo da Europa Central. Para os amantes de ópera, a Staatsoper, um dos melhores teatros do mundo. Fãs ardorosos podem conhecer onde os célebres compositores viveram, o cemitério onde foram enterrados, as estátuas dos notáveis. Quem curte parque de diversões deve ir ao Prate e dar uma volta na roda gigante Riesenrade, um dos símbolos de Viena. Já os discípulos de Freud bailam de emoção em Berggasse, 19, casa onde o psicanalista morou e trabalhou de 1891 até o início do nazismo, 1938. Seja qual for a sua preferência, mergulhe de cabeça (e coração), sem receio: todos os passeios podem ser feitos a pé, com segurança, mesmo à noite. Mas se quiser um táxi, basta chamar que em um minuto aparece um Mercedes novíssimo à sua disposição, com taxistas sempre gentis, prestativos e bem apessoados, falando um inglês fluente.

Dicas gastronômicas: A torta de chocolate Sacher, no restaurante/hotel com o mesmo nome. Não sei o que é melhor: ela ou o creme que a acompanha. O enorme schinitzel (bife de carne de vitela ou porco a milanesa) do disputado Figlmüller. O apfelstrudel do café Melange. Frutos do mar do Nordsee, embora as caudas de lagosta sejam carinhas como quê, mas distraídos, só descobrimos quando pagamos, até guardamos a nota da extravagância como recordação: 47 euros cada!

Ana Guimarães

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Primavera de 2009 na Europa - BUDAPESTE

foto de Ana Guimarães

A PALAVRA FINAL
A palavra final pertence ao editor
ele tem um secretário da cultura
o secretário tem um primeiro ministro
o primeiro ministro tem um governo
o governo tem uma polícia
a polícia tem armas

Eu tenho um poema
o poema é um tirano
recusa assumir compromissos
no sentido estrito da palavra
é a palavra final

a neve é azul como uma laranja

(versão do poeta João Luís Barreto Guimarães a partir da tradução em inglês de Nicholas Kolumban de um poema do húngaro Elémer Horváth
)

Difícil escrever sobre Budapeste sabendo que tantos amigos dizem morrer de amores por ela enquanto eu, conhecendo e respeitando sua história, a luta dos magiares (como são chamados os húngaros) contra o totalitarismo, apenas gostei de conhecê-la, mas não voltaria. (Pareceu-me uma cidade partida, não só entre Buda e Óbuda, no lado esquerdo do Rio Danúbio, e Peste, na margem direita) Seria por que foi a primeira depois da passagem pelas esplendorosas Florença e Veneza? Sei, comparações desse tipo são idiotas, porém inevitáveis já que o coração não pensa... Teria o (mau) começo de nossa estadia influenciado nessa percepção?

Explico: trocamos de hotel, pois o primeiro não correspondeu às expectativas de um mínimo de conforto e funcionalidade. Partimos, então, para o Mercure, na Váci ut, a principal rua de pedestres, pertinho da Confeitaria Gerbeaud, fundada em 1858, e do Mercado Central, enorme estrutura metálica lembrando uma estação ferroviária, dezenas de bancas oferecendo alimentos, especiarias (a páprica é o condimento típico com que se faz o goulash) e todo tipo de souvenir (as matryoshkas, bonecas umas dentro das outras vestidas de camponesas são as mais vendidas, mas nas vésperas da páscoa faziam sucesso ovos dos quais se retira o conteúdo através de um minúsculo furo para serem decorativamente pintados).

Horas distraídas passamos no New York (almoço regado a cerveja Dreher sem rótulo afixado e sim gravado na garrafa), restaurante outrora freqüentado por famosos como Chaplin, Mastroianni e Pavarotti. O luxo, testemunha de um passado de riqueza e opulência, contrasta com a moldura de lixo da rua onde ele se situa, cujas lojas com fachadas sujas e pixadas, ainda parecem desconhecer a profissão de vitrinista. Descobriríamos mais tarde que a degradação do mobiliário urbano se faz notar por quase toda parte. Pedintes, edifícios mal conservados como rosas secas, dura realidade; a exceção é a Andrassy, deve ser por ela que Budapeste é considerada a Paris do Leste Europeu. No final dessa avenida, fica a Praça dos Heróis, e defronte, a Galeria de Artes e o Museu de Belas Artes.

Atravessamos a Ponte das Correntes e fomos conhecer o Palácio Real ou Castelo de Buda, na verdade um conjunto de vários prédios no alto de uma colina, uma construção imponente (todo o bairro era a residência oficial dos nobres, os Habsburgos). A Igreja de São Matias fica ao lado, com telhado colorido, e perto, o moderno Bastião dos Pescadores, de onde se tem uma boa vista, sobretudo à noite, do Parlamento iluminado. No ponto mais alto, no topo do Monte Géllert, encontra-se, além do hotel com o mesmo nome (conhecido por suas fontes termais), a Citadella, outrora uma fortaleza, hoje ponto lotado de ônibus levando turistas para lojinhas de artesanato. Aí, dignos de nota são as mega fotos de Budapeste em diferentes épocas.

Andamos muito a pé, e às vezes de táxi, mesmo sujeitando-nos a ser extorquidos (e fomos, por duas vezes), pois simpáticos bondes podem ser um excelente meio de transporte para seus habitantes, mas que estrangeiro arriscaria se perder? A comunicação é difícil, gerando muito mal entendido, mesmo com quem lida com público. O guia do city tour, por exemplo, falava um inglês tão corrido quanto mal pronunciado, despejando toneladas de informações históricas e arquitetônicas numa velocidade supersônica - todos desistiram de acompanhá-lo. E, por mais que nos esforçássemos, a língua nativa, uma das mais difíceis do mundo, é absolutamente impraticável. Belas tampas de bueiro em bronze tem escrito: Tulajdona Budapesti Elektrumos Muvek. Ficamos curiosos, quem se habilita a traduzir?

Ana Guimarães

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Primavera de 2009 na Europa – Veneza

Se aquela luz, no entanto, emprestasse o pincel
a um poeta qualquer, eu tentaria agora
fazer que retivesse o retrato cruel
daquela intensidade que nunca se demora,
que atinge o auge um belo dia e vai-se embora
(Bruno Tolentino)

foto de Ana Guimarães
Assim que desembarcamos na Stazione Veneza-Santa Lucia tomamos um vaporetto, o meio de transporte mais usado na região, um barco originalmente movido a vapor, daí o nome. Navegando pelo Grande Canal, principal artéria aquática, em forma de um S invertido, revejo a imagem que se recusou a evaporar-se com o tempo ou a própria mente a embalsamou para ressuscitar um dia. As águas dançam à minha frente num baile fulgurante.
Ouço o que me diz o vento, nada estrangeiro (até porque, sendo carioca, o forte cheiro de maresia faz com que me sinta em casa): eis sua outra ‘cidade maravilhosa’! Seu lar agora é aqui, no Bella Venezia, um palácio do século XVI totalmente preservado, a poucos passos da Ponte Rialto e da Piazza de San Marco.
Saímos a caminhar pelo labirinto de ruelas e mini-pontes, essa confusa geografia de Veneza é, em si, uma atração. Deixamo-nos seduzir pelas vitrines, adquirindo lembranças (as máscaras carnavalescas de porcelana pintadas à mão, dos mais variados desenhos e tamanhos cabem em qualquer orçamento), em meio a uma ondulação de pessoas falando outras línguas. Todas de passagem – como, aliás, estamos na vida – invadindo pátios, calçadas, escadarias.
Rialto é uma festa democrática da qual até as gaivotas participam. Diferente da Ponte Vecchio de Florença (onde a ourivesaria impera), além de lojas de artigos populares e barracas de camelô em profusão tem até um mercado ao ar livre. Entrego-me, embriagada, aos mistérios dos perfumes que legumes, frutas e sucos exalam e de imediato se aninham na emoção.
Acertamos um passeio de gôndola, coisa que não havíamos feito em janeiro de 2000, já que pleno inverno, temperatura próxima de zero grau, elas permaneciam ancoradas, lado a lado, e nenhum gondoleiro à vista. Logo constatamos que o salgado preço (100 euros por meia horinha) não inibe os turistas: são dezenas esbarrando com a nossa, enfrentamos um verdadeiro congestionamento de ‘trânsito’, ainda bem que em silêncio, sem buzinas ou motores roncando, não é à toa que a cidade é chamada de ‘A Sereníssima’, aqui só se circula pelo mar ou a pé. Programa imperdível.
Também ninguém se importa de pagar caro apenas para sentar e tomar cappuccino num dos cafés da praça: as cores da música tingem o real da cena, mil vezes mais prazerosa do que a imaginação supunha.
Durante muito tempo Veneza foi a encruzilhada dos mundos bizantino e romano, e o conseqüente legado artístico e arquitetônico desse cruzamento está bem representado pela Basílica de San Marco; seu interior merece uma visita, mesmo para os não-religiosos. Enfrente a fila, vale a pena ver a coleção de peças de ouro, fruto de saques feitos pelos cruzados em Constantinopla.
Tomamos o elevador do Museo Correr (entrada pelo lado oposto da Basílica) até o alto do Campanille de onde se tem uma magnífica vista da laguna inteira. E tome foto! Cada uma mais linda do que a outra! Verdade que o dia, mais ensolarado impossível, ajudava a fotógrafa amadora.
Capítulo à parte é o encantador Palazzo Ducale, antiga residência e sede do governo dos doges, aposentos ricamente decorados com obras de Veronese, Ticiano e Tintoretto. Uma curiosidade: do lado de fora da Sala della Bússola está a Bocca dei Leoni, uma fresta na parede através da qual denúncias secretas contra supostos inimigos do Estado eram depositadas. Mas o ponto alto de todo o Palácio é a Sala Del Maggior Consiglio; dela saindo se atravessa a Ponte dos Suspiros (que leva às Prigioni), assim batizada pelos suspiros de Casanova, não de amor como reza a lenda, mas quando conduzido ao cárcere.
Não se pode ainda deixar de visitar a Galleria dell’Accademia (com pintura veneziana exposta em ordem cronológica) e a Coleção de arte moderna (Picasso, Kandinsky, Pollock, entre outros) de Peggy Guggenhein.
Se à noite, cansados para sair de novo, queríamos lanchar no quarto do hotel tratamos de seguir os ‘nativos’ e compramos maravilhosos pães, queijos, presuntos e vinhos italianos em panetterias, salumerias e que tais. Mas querendo jantar fora, um local aprovado foi o Vino Vino, apesar do negligente atendimento.
O dia mal amanhece e, singrando o Adriático num táxi aquático em direção ao aeroporto Marco Polo, no continente, estendo a mão, toco o instante e logro agarrá-lo, endereçando à vida, ao destino, um agradecimento. Findo o espetáculo. Agora é tudo espuma.

Ana Guimarães
PS Os dois textos estão na página de capa de hoje, 4/5, de Blocos Online, como Crônica de Viagem: http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/cron/cv/cv09/090501.php