quinta-feira, 28 de maio de 2015

DESOLAÇÃO

Foto de minha autoria, do pequeno cemitério nos jardins da Trinity Church, NY.

DESOLAÇÃO

Calorão de janeiro em plena primavera, o diferencial era o vento alísio soprando, refrescando quem ali chegava, anunciando chuva que terminaria por cair bem na hora dos serviços funerários. De outros refrigérios, no entanto, carecia.
O primeiro a ser avistado foi o filho mais velho que imediatamente se pôs a chorar, me abraçando. Cruzamos o pátio, olhares baços nos miravam sem ver. À entrada da sala, só desolação. Vestes negras predominavam, em sintonia com o funesto destino a que uma existência conduz.
Nenhum cheiro de santidade no ar que, pesado, parecia faltar a todos. As duas viúvas se entreolhavam, dividindo também nessa hora o que já partilhavam em vida.
Um familiar protesto contra a lentidão dos trabalhos burocráticos da ocasião se fazia ouvir. Bramia impropérios sem respeito algum senão ao morto, ao menos às senhoras presentes.
Crianças brincavam na escaleira de pedra, alheias a tudo. Na outra ponta do tempo, também alienados, idosos calejados – a maioria – nem se preocupavam em fingir reverência à situação.
O rumor aumentava à medida que o momento escorria. Quase se esqueciam do que acontecera: indisfarçáveis sorrisos alegres pelo reencontro, tapinhas nas costas cada vez mais efusivos, gargalhadas sem vergonha aqui e ali entreouvidas.
A todos recepcionando, uma voz diminuta e monocórdia discorria sobre o mal súbito que lhe acometera; rudemente prosseguia seu monólogo sobre a causa mortis, propagando um modus vivendi diferente do escolhido pelo defunto: asséptico, sem fumo, álcool ou stress, inclusive o advindo de dupla vida amorosa.
Uma jovem mulher, desconhecida e solitária, vagava pelo recinto apertando as alças da bolsa como se temesse ser assaltada.
No canto, depois de muito balançar de forma rítmica e hipnótica o previdente guarda-chuva, um senhor acabara por cochilar, deixando seu interlocutor falando sozinho.
Envolta no silêncio das recordações enquanto acariciava, pela última vez, suas geladas mãos, eu divagava. Da janela podia ver lápides adornadas por flores murchas, pendentes. Um pesar se abatia sobre mim.
Desejava ainda pudéssemos desfrutar daquelas intermináveis conversas telefônicas, por décadas e décadas. Mas a ligação caiu. Irremediavelmente.


Ana Guimarães

sábado, 9 de maio de 2015

A MINHA MÃE E A DA ADÉLIA

Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. (Adélia Prado)

Minha mãe achava sentimento a coisa mais fina do mundo.
Não é. A coisa mais fina do mundo talvez seja o estudo do sentimento.
Foi o que fiz, formalmente. É o que faço, no dia a dia.
Ficar entregue ao sentimento é ser barco à deriva.
Às vezes ele ilude, engana, até cega.
Sentimento sem razão, sem freio, sem respiração é nada.
Palavras - reflexões - urgem.
Elas orientam o sentimento, transformam-no, mudam sinais.
In-formam (gravam formas) na matéria bruta.
Ordenam o que antes era o caos.
Quem fala/escreve luta, não se entrega.
E um discurso/texto é sempre inacabado: 
Precisa de um receptor para ter significado.

Ana Guimarães

 Foto: Museu Freud, Viena, em 2009.