sábado, 17 de abril de 2010

LOST (NOT ONLY) IN TRANSLATION


Minha descoberta de Joyce – o primeiro approach – foi sem interlocutor algum para dividir o impacto que seu texto me causava: quem estaria lendo Ulisses aos dezessete? Paixão à primeira vista. Totalmente rendida aos encantos, à mágica, à amplitude de suas letras, à proliferação de sentidos que o aparente caos de imagens e idéias provocava. Aos efeitos de atos internos, como Paul Valéry preconizava em A jovem Parca, para designar o que uma obra de arte é capaz de promover. Não parei mais. Joyce me comprou: mais de uma década depois começava a reler todos os seus livros, sempre traduzidos, mesmo advertida de que tradutore, traditore. Não posso me queixar, o que encontrei foi sempre mais criação, transliteração. Sou grata aos irmãos Campos e a Antonio Houaiss tão dignas empreitadas. E recentemente, a Bernardina da Silveira Pinheiro.
Há mais ou menos cinco anos dei início à nova rodada, sob a batuta de Lacan, apoiada na partitura de seu seminário O Sintoma. Balizas que poderiam restringir, na verdade ampliaram minha escuta, como se um novo Joyce se descortinasse aos meus – até então – ingênuos olhos e ouvidos. Conhecê-lo por isso? Não. Entendê-lo? Menos ainda. Como bem disse Derrida: Quem pode se vangloriar de já ter “lido” Joyce? ... Porque há muitos livros que acabamos de lê-los desde a primeira página: programa conhecido. Lendo-o sempre sim, no gerúndio, como tempo de verbo: genuíno work in progress. Sua leitura, tanto quanto um processo analítico, é interminável.
Ao mesmo tempo em que pretendeu limpar o vocabulário do senso comum, da sujeira da funcionalidade, Joyce também quis capturar o incapturável, numa ânsia pelo fonema que tudo abarcasse, o maior significado possível, uma utopia lingüística de nomear quase que termo a termo, totalmente, o mundo. Sua obsessão: a busca da homologia entre a palavra e a coisa. Quanto mais à vontade ficava em sua produção literária (o auge disso foi Finnegans) mais demonstrava pretender uma ampliação da língua: trabalhá-la, distendê-la, enriquecê-la, reescrevê-la, apropriando-se de territórios antes exclusivamente do Real, nomeando-os, trazendo expressões novas, engavetadas, inventando-as acima de tudo quando não tinha qual designasse o que pretendia. Penetra com vigor em sua tessitura e aí brinca, sem pudor, com maestria e gozo.
Escrevo malgré moi, parece dizer o escritor. Não escolho, sou escolhido. Embora deixando-se perfurar por epifanias, ao invés de sujeitar-se às palavras impostas (mesmo atormentado por elas) teve savoir-faire de artífice para trocar de lugar, inverter as posições e quebrá-las, desmontá-las. Liberdade essa, de ir e vir, um enfrentamento do paradoxo que roça a loucura. Joyce soube, como ninguém, suportar a dor do parto: dos escritos e de si mesmo, enquanto sujeito. Criando, ele se constituiu. O que lhe parecia estanque, separado, disjunto é suturado via autoria, via escritura.
Tudo quanto é reto mente, a verdade é sinuosa, sabemos. Quanto mais confuso, quanto mais turvo, mais chance de verdadeiro. Quanto mais incerto, mais significativo. Nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Assim ele nos dá uma mostração exemplar da estrutura do parlêtre, a divisão do sujeito: sou e não sou, sou os contrários, os diferentes ao mesmo tempo, numa fala nem sempre coerente, nem sempre unívoca, mas autêntica, et pour cause. Ambígua, como a própria vida. Fracassa a compreensão: é pra ser lido e não, necessariamente, entendido. Rasura as palavras, desfaz o sentido (ou finge desfazê-lo) para que cada leitor o reconstrua a seu modo, particular, único, diferente, daí se dizer que a obra de arte funciona como analista: provoca um estranhamento em quem dela desfruta, um descentramento, uma equivocação.
Lost in translation ficamos, mas não mais do que quem o lê no original, sei. Não mais do que o próprio Joyce estava. Não foi Sabato quem disse que a literatura – como a psicanálise – é um viés no qual a gente se perde pra se encontrar? Não serve para explicar, edificar, moralizar, muito menos para acomodar, tranqüilizar, adormecer tal como uma igreja ou partido político. Ao contrário, para despertar, sacudir da anestesia de um viver amortecido e da inconsciência do sono do cotidiano. Esse foi o bê-á-bá que Joyce nos ensinou. Silabação que estudamos até hoje, como ele queria. Minha homenagem em forma de poema:

O BÊ-A-BÁ DE JOYCE

Todos os idiomas da dúvida são meus
mesmo com tradução
mistério e enigma fazem parte
do meu dicionário

o verbo oceânico persigo
conjugar o inefável, o intangível,
o paradoxal: não elidir os contrários

se minha dicção é múltipla
almejo uma sintaxe própria
enquanto isso, soletro a ponte
entre o efêmero e o estável

coar a nata do sentido para seu deleite
o poema – o leite no copo –
esperando pela interpretação
os buracos no texto, como borra de café,
o seu deciframento
a arquitetura da ficção,
sua desconstrução

antes que se queixe ou interrogue, explico
não é a forma nem o conteúdo do que lemos
o que está em cogitação:
é só a coisa em si, nada mais, nada menos

Ana Guimarães

Esse texto acaba de ser publicado no Portal Cronópios:
http://www.cronopios.com.br/site/default.asp


31 comentários:

  1. "...designar o que uma obra de arte é capaz de promover".

    Yes! in the sea of life enisled
    Wirh echoing stratis between uns thorwn
    dotting the shorleless watery wild
    we mortal millions live alone. (J.Joyce)

    Entre vida e morte há a arte - que sobrevive desdenhando do tempo.

    Bom dia amiga Ana. Beijos

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  2. Ana
    Outro dia postei a frase; - A arte é um lgado fidedigno do movimento cultural - No Blog "A ARTE COMO VIA".
    Lembrando ainda aulas de história e antropologia como disciplinas obrigatórias para todos os cursos da UNISINOS do primeiro semestre de qualquer curso, entendia já naquele momento através das famosas LINHAS DE TEMPO que a professora assinalava a ARTE, como referência para retratar uma cultura.
    Leiura escrita, é a via por onde nós blogueiros deixamos também nosso legado, ... - a ser decifrado também.
    Embora sabemos que através de leituras, de fato leituras, com os sentidos mais limpos, vamos constatar o que de linear do pensamento, das idéias, das concepções e emoções se mantém nessa LINHA DO TEMPO.
    Quanto ao teu texto. Que bom poder ler. Grata por tê-lo escrito e partilhar.
    Beijos e bom final de semana.

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  3. Ana,
    Primeiramente, gostaria de agradecer o comentário no meu blog. Ele é tão abandonado (pelos leitores) que me surpreendo quando recebo um comentário atencioso como o seu.
    Em segundo, quero dizer que amei o seu blog. Sério. Poucas vezes encontrei um blog tão bem escrito e com temas tão atraentes. Vou visitar sempre.
    Quanto ao Joyce, eu tenho um livro dele, na estante, me esperando. Deixa só eu acabar o livro do Dostoiveski pra me "entregar" à aparente boa literatura do James.
    Beijos.

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  4. Raloentrando, pós zebra e abrão, das curvas da histriada às dobras de todos santos, me trago de volta primavez ao gozo da letra e arrededores...
    Senhor Tristrivão, violentilho de amores, dalém da trapobrana, tinha inda não passencóreo rearrivado da MortAmérica neste lado do tectônico ístimo da Europa Menor pra imundilutar sua penisolenta guerra: nem tinham os escólhios tomsáureos às margens do escorreguente Orrívio se exagerado-se a siamesmas em esgorjeios do Condado de Laurêncio enquanto foram dublirlando suas mamaspapas o tempo todo: nem uma avoz de afogo beloshouou maxixemixe ao taotao tuéspedrenrique ainda não, pesar que verytavares, tinha um piá amantessado um brando isaque velho: ainda não, apesar de tudo ser justebelo em vanécia, estavam as ermãs sosiestéreis farjadas com uniduni natanjoão. Nhem um peque do pademalte tinham Jem ou Xem fermentado ao luzarco e róreo fim pro regifeição estava a ser visto alganélio sobre a façáqua.

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  5. Como eu posso comentar um texto como o seu?
    A nossa aproximação do artista se deu por vias diferentes.ssim imagino. A minha leitura foi a de um lógico arraigado.
    Confuso sem o saber, procurou "coar a nata" para estabelecer qual era, afinal de contas, a ordem.
    Ele não teve nada além da curiosidade imensa para auxiliá-lo. E só o tempo, agora o seu texto também, desvendou a leitura como a da borra do café.
    Um sábio árabe mesmo sem entender o idioma, poderia obter o mesmo resultado. Outro poeta do pantanal me ensinou a arte de limar as palavras, escová-las para obter o sentido mais largo. Ele reduzia, você alargou.
    Ele queria sentido, você sabia a magia da música.
    Hoje transformado, mais equilibrista, e vendedor de bilhetes de loteria posso dizer:
    Se o texto é magnífico, a sua poesia é magnífica. Você foi escolhida. Beijos.

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  6. Cara Ana, como sempre, exemplar. Se fôssemos apenas transcrever o tempo passado, nada nos sobraria como presença. Apenas entretenimento, talvez. Grato pelo texto. Abraços, Pedro.

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  7. Agradeço os comentários indicando um texto brilhante da Flora Süssekind, no Prosa&Verso do O Globo de hoje, sobre crítica literária.
    Abraços, beijos, meu muito obrigada, mais uma vez!

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  8. Ana querida, que aula você me deu.Linda a poesia, não tenho conhecimento literário, gosto daquilo que me soa bem aos ouvidos, já que poesia, gosto de ler em voz alta.Muito obrigada!.
    beijão

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  9. Ana, mas é "essa coisa em si" que você tem e que nos encanta em seus textos.
    Brilhante,minha amiga.
    Um beijo

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  10. Silvia e Lau: o agradecimento que já tinha feito às duas sumiu, então digo: aulas vocês me dão de amizade, de carinho, de gentileza, o que só me encanta.
    Muito obrigada!
    Beijos

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  11. faz tempo que eu nao volto a Joyce, belo texto, me trouxe lembranças do tempo em que eu lia sem me dar por isso :)) parafraseando o outro gigante, pois agora ando só lendo obrigaçoes mestradas :)
    abraços
    Rubens

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  12. Já eu, como disse no texto, reli Joyce sob a ótica de Lacan, preparando-me para um simpósio de psicanálise e literatura do qual participei, em Dublin, em 2005 (maravilhoso, inesquecível!). Enriquecedor porque foi uma experiência em grupo, na instituição psicanalítica da qual eu fazia parte.
    Beijo e obrigada

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  13. Cara Ana, acabo de ler seu texto no Cronópios e confesso felicidade pela forma com Joyce e seu trabalho foi abordado. Sim, e não posso deixar de agradecer pela dica da leitura sobre Praga, esta cidade maravilhosa, de muitos, inclusive de Kafka.
    Abraços carinhosos,
    Mendes Júnior
    mais textos: http://www.germinaliteratura.com.br/2008/mendes_junior.htm

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  14. Cara Ana, retifico: "confesso felicidade pela forma como Joyce e seu trabalho foram abordados".
    Grato,
    Mendes Júnior

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  15. Muito obrigada pelo comentário, Mendes Júnior.
    Grande abraço!

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  16. Ana!
    Eu vi o seu post naquele site.
    Super merecido, já que seu texto está primoroso.
    Bem, meu email é justphtg@yahoo.com.br
    Pode me escrever sempre que quiser, que eu respondo assim que puder, ok?
    Beijo

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  17. Ana querida

    Embora esteja ausente dos blogs, não posso deixar de passar por aqui e ler seus posts sempre tão ricos e profundos.
    Seu amor por Joyce é contagiante.

    um beijão!!

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  18. Pedro Henrique: muito obrigada! Sempre que tiver texto novo publicado eu aviso, ok?

    Rose: amiga antiga, fazendo falta na rede! Obrigada, querida!

    Beijos

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  19. Prezada Ana:

    visito aqui de novo pra avisar que lhe dediquei uma postagem, com uma versão brasileira de Pangur Bán: espero que seja do seu agrado:

    http://ossurtado.blogspot.com

    Cordialmente,

    Ivan

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  20. Já estive no seu blog agradecendo a homenagem.
    Mais uma vez parabéns por tão bela e criativa versão brasileira do poema.
    Abraço

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  21. Oi Ana,

    Sumi, e quando volto aparecer eu seu blog, me encanto e me enriqueço com texto-poesia-estudo-olhar seu.
    Bom demais!
    Besosss e Parabéns pelo texto e pelo dia das mães, já que passo aqui justamente em tal dia.

    Quel

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  22. Belíssimo trabalho hermenêutico, electivo e afectivo, acerca desse Ulisses literário dos tempos modernos, texto a ler e a reler com grande profundidade exegética.
    grato pela partilha,
    luís filipe pereira

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  23. Muito obrigada, Quel! Não suma, não, também quero me enriquecer com suas crônicas de viagem.

    Luís Filipe: grata por tão generosa análise do meu trabalho. Uma honra tê-lo como leitor.

    Beijos e abraços para ambos.

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  24. Olá Ana!
    Na internet conhecemos muitos amigos. São pessoas que geralmente têm o mesmo interesse que você, as mesmas afinidades... Trocamos palavras, ficamos seguidores, gostamos de ler seus textos, mas a vida é tão complicada, são tantos os afazeres, que muitas vezes, como na vida, nos perdemos deles. Hoje, relendo alguns posts antigos, vi seu nome e... vim lhe visitar, amiga!
    Vim e li um texto maravilhoso! Vou vir mais vezes, com certeza...
    Um grande abraço!
    Luísa

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  25. Querida Ana
    Belissimo post...texto e poesia...Aprendi muito hoje aqui...Dá gosto visitar-te...por isso, virei mais vezes!
    beijo amigo
    Graça

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  26. Queridas novas amigas Luisa e Graça: é um prazer e uma honra tê-las aqui como leitoras e comentadoras dos meus textos, muito obrigada! Sejam bem-vindas!

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  27. Fantástico ler-te: nada mais nada menos!

    1 Bj*
    Luísa

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  28. Valeu imenso ter vindo cá e lido este post.
    Bela blogada.

    Ler Joyce é mesmo tudo de bom. Sua iniciação deu-se com você ainda muito jovem, no viço seus dezessete, idade em que a maioria não lê "essas coisas". Mas com os poucos que leem dá-se quase invariavelmente o que com você se deu: apaixonam-se. Posso tirar isso por mim mesmo, que nessa idade também já me apaixonara algumas dúzias de vezes, pelo que conheci dos chamados clássicos universais. Joyce eu descobri bem mais tarde, mas era já uma boa lista, a das minhas paixões.
    Enfim, Ana, pagou-se muito bem o tempo que dispendi hoje na leitura deste seu post.

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  29. Valeu imenso o seu comentário, meu amigo. Vindo de um leitor especial como você, essas palavras encheram-me de alegria. Minha lista, nessa idade, incluía Eça de Queiroz, Machado de Assis e Guimarães Rosa: esse último, outro por quem fui/sou/serei eternamente apaixonada.
    Muito obrigada.

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  30. Comentando no Blog de J.A. Gueiros, encontrei algo que me fez procurar o Gozo da Letra.
    Nã o conhacia seu blog, porém confesso : Estou em pleno êxtase em ler o seu conteúdo.
    dora avante serei um leitor assíduo de seus esritos.
    Carlos Prudente Leite
    (prudenteleite@hotmail.com)

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  31. Muitíssimo obrigada, Carlos. Volte sempre.
    Abraço

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