domingo, 7 de novembro de 2010

O MEU, O SEU, O NOSSO GUIMARÃES

Tudo é recado. Coisas comuns comunicam, ao entendedor, revelam, dão aviso.
(Ave palavra)

Muita gente me pergunta, brincando ou a sério, se o meu sobrenome tem a ver com o do João, o Rosa. Quem dera! Nenhum parentesco, ele é apenas o meu escritor brasileiro preferido. Essa preferência se consolidou – levando-me a, após ler e reler sua obra, começar a estudá-la com os especialistas Ana Luiza Costa e Leonardo Vieira – quando li numa entrevista concedida a Günther Lorenz, a revelação de algo de que suspeitava: da “importância monstruosa, espantosa de Freud em sua pluma”. Bem que eu já observara o estranhamento que sua escrita provoca, uma certa equivocação que vem a ser o cerne da práxis analítica. O diálogo entre literatura e psicanálise que daí decorre (a dupla ressonância de uma área na outra) é objeto de teses e mais teses em todo o mundo, responsáveis pelo relançamento de questões nunca suficientemente definidas, relativas ao sujeito, sua fundação, estrutura e escrita. Ele é tão estudado porque “nele procurando, acha-se - sempre é assunto para novas interpretações, inclusive por divergir de si mesmo”, disse Cláudio Willer.

Barroco por excelência, se cultivava o excesso, entretanto, era por absoluta necessidade de maior amplitude lingüística, tendo trazido para o seu texto a riqueza de expressões populares sem ser considerado regionalista por isso. Em 1946 ele assim se explica: “A língua portuguesa está empobrecida, rígida, estratificada, falta sentido e beleza a ela. É preciso lhe dar plasticidade, refundi-la no tacho, distendê-la, trabalhá-la, dar-lhe músculos”.

Mais do que determinar um estilo e influenciar seus leitores credito ao autor a abertura de possibilidades estéticas literárias infindáveis, a liberdade para brincar com a estrutura da frase, criando uma outra articulação, sem por isso torná-la ininteligível. Tal insubmissão aos cânones estabelecidos, com suas recriações vocabulares e sintáticas, faz lembrar Joyce (meu escritor estrangeiro favorito): o mesmo limpar as palavras do senso comum, com prazer e imenso savoir-faire, o mesmo encarar a linguagem como a principal personagem (o enredo ficando sempre em segundo plano), a mesma maneira de contornar o Real, domesticando-o via neologismos. Seu método de trabalho era oposto, por exemplo, ao do Houaiss ao traduzir Ulisses, abrasileirando-o. Ao contrário, Guimarães trazia expressões idiomáticas de outras línguas para o português, e dizia que o tradutor devia mesmo “violentar a língua de chegada”.

Ao seu “As pessoas não morrem, elas ficam encantadas” respondo que encantados ficamos nós, e bem vivos, com a errância de Riobaldo em sua travessia pelo Grande Sertão: Veredas. Este é o romance da dúvida por excelência, onde as megeras cartesianas do homem dogmático são subvertidas (sinto, logo existo) e combatidas pelos freqüentes questionamentos que não findam nem na última página, como se pode constatar com o símbolo matemático de infinito que a ilustra. Inclui todo tipo de ambigüidade, inclusive a que diz respeito ao gênero (Reinaldo/Diadorim). É visível sua tentativa de apreender o não-apreensível, o que não tem contornos definidos, o chiaroscuro, o que está em eterno movimento, em construção, o ainda não nomeado: por definição, emblemático do processo analítico. Dar voz ao Outro da gente: o que não fala, o que está no limiar entre o humano e o animal, o que não tem autoridade para se expressar: o sertão, a criança, o índio, os seres da natureza, o louco. Seus arquivos revelam cadernos/cadernetas/diários de viagem, documentos inter-relacionados e verdadeiras sentinelas da memória com que ia registrando o que via para depois então escrever, apontamentos esses que evidenciam seu permanente diálogo com o mundo.

Nós que ousamos trilhar esse caminho duro e penoso (se ele que era ele guardava um texto recém-escrito por uma semana, um mês, depois o desengavetava e falava: “vamos ver por que esse conto está ruim”, e tome de corrigir!), porém inevitável, pois não sabemos como recusá-lo (falava do horror a escrever, mas não ter como escapar disso: “Um livro tem que ser escrito senão vira um trombo na veia”), assim que terminamos de lê-lo ficamos como “chuva em nuvens, dependurados no ar, para cair”, prontos para desabar nossas letras – ainda que miúdas, verdadeiras garoinhas comparadas às rosianas – na primeira página em branco que encontramos pela frente. Torcendo para ter, ao menos, um pouco do estômago de ostra que lhe atribuía Haroldo de Campos, capaz de, após tudo fagocitar, um dia produzir da irritação, da adversidade, alguma pérola, ainda que barroca.

Ana Guimarães

14 comentários:

  1. O Sertão em mim, mim, lido de lá pra cá.
    Esse sertão da fertilidade da palavra que faz dobra, atravessa e duela com o impossível de representar. Uma única língua é pouco, daí ele inventar várias, feito um Deus. E o Diabo no duelo.

    Bjs

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  2. Ao contrário, Guimarães não inventou nem reinventou a língua, ele apenas a fotografou no seu estado natural nos Sertões de Corinto à divisa da Bahia, sempre com um caderno na capanga para registrar as palavras das entranhas das Gerais. E tendo ao seu lado um jagunço legítimo para traduzir para ele.

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  3. "Que existe uma receita, a norma dum caminho certo, estreito, de cada uma pessoa viver – e essa pauta cada um tem – mas a gente mesmo, no comum, não sabe encontrar; como é que, sozinho, por si, alguém ia poder encontrar e saber ?(...)
    Todos não vendem ? O diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a alma...meu medo é este. A quem vendi ? Medo meu é este, meu senhor: então a alma, a gente vende, só é sem nenhum comprador..."

    Quando imaginamos que ele aparecerá e desfiará uma certeza, uma exatidão, logo adiante ele a quebra, e nos deixa assim...
    Terminei ontem de ler o Ricardo G. Dicke um autor do Mato Grosso, que canta o sertão (tuaiá)e tem uma voz muito parecida, e também muito bela. Deu para renovar as saudades avivadas. E o seu texto fez o resto. Parabéns. Beijos.

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  4. Qual Guimarães nos transporta por um passeio entre estas palavras? Por um passeio pelas feiras intensas, vivas e coloridas do Nordeste. Entre elogios na descrição diversa do autor preferido, rende Guimarães à Guimarães uma homenagem aos subversivos da palavra; todos eles.

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  5. Guimarães Rosa, o inovador. Sim, nosso, com todo orgulho. De mãos dadas com suas palavras, Ana, caminhei por este universo Guimarães tão peculiar, tão imenso. Belíssima resenha, Ana. Que bom que passei aqui, venho lá da Flor de Moranguinho.
    Beijo

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  6. Ana, querida,

    Vir ao seu blog é como entrar na razão do encantamento, se é que existe razão na sabedoria de simplesmente ser um encanto. A fantasia é real porque nunca "morre".

    Obrigada, foi tão bom ler seu texto! A Magalena gostou tanto que está no Flor de Morango como dica.

    Beijos, com carinho,
    Madá

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  7. Acompanho os leitores na magia do Rosa.
    Uma honra brasileira, graças a Deus.

    Valeu Ana.
    Beijo

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  8. Ana,
    É sempre um prazer ler teus textos. São didáticos, técnicos e literários.
    Amiga, uma paciência que já não tenho para escrever e publicar em Blog. Me ocupo com a escuta e com leituras técnicas para coordenar seminários. E aí então, quando me ocorre escrever para publicar uso aquele estilo mas apropriado para que eu possa me desapropriar e me re-apropriar de "coisas".
    Sabemos que o "quê", o a-mais, às vezes a-menos, o escritor quer, mesmo que não saiba no momento é isso, trabalhar-se através das palavras, num processo de ida e volta.
    Parabéns por mais esse.
    Beijos

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  9. Guimarães Rosa asfaltou o caminho da invenção na prosa brasileira.
    O que tinha começado, lá no início do Modernismo, com as Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald, e seu romance anárquico, prossegue com Rosa em outra tonalidade, mas, ainda, prenhe de invenção.
    Além disso, o homem Guimarães Rosa merece destaque. Ele que ajudou a livrar das garras do Nazismo tantos judeus em seu trabalho de embaixador brasileiro, é digno de todo nosso apreço.
    Rosa desbravou os sertões da linguagem e tem, na poesia, Manoel de Barros como seu continuador.
    E em Ana Guimarães sua parente espiritual e admiradora...

    Beijão.

    Ricardo Mainieri

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  10. Gracias por compartir hermoso texto, mis saludos fraternos ya fectuosos desde Santiago de Chile,

    Leo Lobos

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  11. Foi muito bom conhecer O Gozo da Letra. Os textos são ótimos, o prazer de ler está aqui o tempo todo.

    Um abraço.

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  12. Olá Ana!


    pego nas suas palavras, que vêm ao encontro do que penso sobre o assunto:
    «o mesmo limpar as palavras do senso comum, com prazer e imenso savoir-faire, o mesmo encarar a linguagem como a principal personagem (o enredo ficando sempre em segundo plano)».

    A maioria, esmagadora talvez, dos escritores trabalha sobre o enredo e produzem-no através de uma linguagem corrente. Aqueles que ultrapassam o limiar da correnteza trabalham sobre a linguagem de forma peculiar e a produzem não necessariamente através de enredos, sem enredos, ou mesmo através de enredos "correntes".
    Fiquei encantado com esta abordagem de Guimarães Rosa.
    Abraço

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  13. Para um bom entendedor, meia palavra basta...não é minha querida Ana? :)

    1 Bj*
    Luísa

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  14. Ave palavra! Como é bom ter tantos leitores queridos? Muito obrigada, amigos, fico feliz com os seus comentários!
    beijos

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