sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

O CORPO É A ALMA

Cabana de um curandeiro Zulu em estilo colméia no horto de plantas medicinais (muthi) do Jardim Botânico Nacional da Cidade de Natal.

Conta-se que, entre os zulus, os entes queridos de um enfermo compreendem e aceitam que não podem pedir ao curandeiro da tribo que expulse o espírito portador da doença, pois ele traz uma mensagem e recusar-se a recebê-la pode fazer com que a pessoa permaneça doente pelo resto da vida. Do mesmo modo, entre os psicanalistas há um consenso segundo o qual um sintoma jamais deve ser abolido, calado através de medicação (seja ela ansiolítica, antidepressiva, pró-libido, indutora do sono, etc), porque se considera que ele não se reduz a um mero processo fisiológico, não é algo indesejável a ser combatido e sim o primeiro passo na direção da cura. É preciso que se reconheça o seu significado, o que sinaliza. Falar dele claramente, sem reservas, com ele dialogar. Eu com-ele e não contra-ele. A questão é: quais são seus dizeres e silêncios? O que representam?

Um sintoma assinala o enquistamento de uma crise. Se se der atenção a ele e não tentar erradicá-lo de imediato, uma mudança – que já está em curso – pode ser facilitada. Nada de se retornar a um estado anterior, ao que se era antes, tampouco de se adequar a algum parâmetro de normalidade. Falo de autoconhecimento. De estrucura: assumir o que realmente se é, a estrutura da qual se estava distanciado, a única cura, aliás, possível de ser alcançada. Temos que refutar a mentalidade da medicina ocidental vigente que quer o indivíduo logo “consertado” para poder voltar a funcionar na engrenagem. Rechaçar essa idéia de mal estar como um vazio que precisa ser “resolvido” com uma adição qualquer (drogas legais ou ilegais, consumismo desenfreado, conquistas amorosas em série) quando o importante é fazê-lo restabelecer suas linhas de comunicação interna. O ponto congestionado interrompe a circulação da energia, indica que nós precisam ser desatados, laços refeitos.

Se, em priscas eras, esforços foram concentrados na descoberta, com êxito, de causas orgânicas para certos distúrbios mentais, nas últimas décadas uma novidade possibilitou o controle da sintomatologia de pacientes psicóticos, ocasionando uma modificação na assistência a eles: a “cadeia-hospital” foi substituída pela prisão farmacológica, sem que se admita que esses medicamentos psicoativos – além dos efeitos colaterais que provocam – estão longe de exercerem alguma conseqüência efetiva sobre o desequilíbrio propriamente dito. Mas, o pior: afastam o sujeito dele mesmo. Parece que a principal queixa atual (senão denúncia) é a de que não se trata mais o doente, pouco importando se sua subjetividade é exterminada junto com os sintomas combatidos, tamanha a virulência do tratamento imposto. Enquanto o modelo biomédico predominar (o pensamento cartesiano, a separação entre corpo e mente) o quadro persistirá.

Por que o fluxo parou de fluir? Por que a estagnação? Quando nossa história nos é negada, outra nos é imposta, adoecemos. É preciso redescobrir-se. Reinventar-se. E a palavra é a grande aliada. Como bem observou Dostoievski: o sofrimento é a origem da consciência. Se ele impede ou dificulta, por um tempo, sua livre movimentação no mundo, respeite-o. Não fuja da dor a qualquer preço, não se esconda, ouça o que ela tem a lhe dizer. Lembre-se do círculo aberto do zen-budismo, a brecha que é, ao mesmo tempo, entrada e saída. Costuma-se ficar acomodado ao sintoma, a essa forma de gozo, até o senso comum diz que quem gosta de troca é bebê com fralda molhada, mesmo assim só depois que ela esfria... Ao contrário, podemos descobrir que é possível capitular, com prazer, diante da seqüência infindável de transformações em que a existência se constitui. Acabar com a fixação no circuito pulsional. Entregar-se à liberdade do imprevisível.

Chega de culpar apenas um agente externo, objetivo, a falta ou o excesso de uma substância! E a nossa parte nisso? Também somos responsáveis pelo que nos acontece. Impulsos sexuais e/ou agressivos inadequados, talentos desperdiçados são determinantes (Guimarães Rosa disse: tive que escrever Grande Sertão: Veredas, senão um trombo me entupiria a veia). Sabemos que o timo é a glândula central que regula o sistema imunológico, e se uma das origens possíveis do vocábulo é o grego thumós = espírito/coração, feri-lo é desestabilizar esse sistema. A desesperança, a perda do sentido da vida (particular, único), a tristeza contida, a percepção de falta de solução para um conflito vivenciado abrem as portas para a enfermidade entrar. O problema não é a emoção (toda ela é válida), mas a incapacidade de externá-la, de simbolizá-la de maneira criativa.

Consta da sabedoria popular o conhecimento de que uma cegueira pode ter sido causada pela recusa de se ver tal ou qual coisa, uma dor de garganta, pela dificuldade de engoli-la. Onde está o sintoma, aí está você. Ele é letra tatuada no corpo e como tal deve ser lida, embora nem sempre tão simples e linear assim, às vezes está mais para hieróglifo a ser decifrado. Deixe-se guiar e encontrará sua autodireção. O corpo não nos diz só o que é a alma, o corpo é a alma. O sujeito é encorpado, as histéricas, as doenças psicossomáticas evidenciam isso, de maneira aguda.

A condição psíquica é crucial tanto no adoecer quanto no processo da cura. Em oposição aos antigos curandeiros que tratavam os males físicos por meios psicológicos, os mudernos psiquiatras, cansados de serem considerados médicos de segunda em sua própria classe reagiram a essa discriminação tentando explicar a doença mental em termos orgânicos, como uma perturbação dos mecanismos cerebrais. Isto é, inverteram as coisas. E mais: só fazem debelar a fumaça, nunca indo até o fogo e ainda agravando o incêndio, uma vez que acabar com o sintoma é acabar com o único jeito que o organismo tinha, até então, para expressar o seu desconforto. Posso curar quem deseja a cura, mas não quem a rejeita (Freud). Se você tivesse febre alta todo dia contentar-se-ia em tomar um antitermico ou iria pesquisar a causa?

Ana Guimarães

10 comentários:

  1. Reflexões maravilhosas, Ana. A doença é uma metáfora a ser decifrada.
    Beijos,

    ResponderExcluir
  2. Enquanto lia o seu texto, dois pensamentos ocorreram à mente.
    Primeiro como arte: o filme Da vida das marionetes. Ingmar Bergman trata, com aquela mão característica dele, dessa questão, ou de uma parte dela. E o filme é quase o seu texto roteirizado, insisto, parte dele, da parte da libido.
    E o segundo, como solução, uma das soluções, ou ao menos, uma reposta: é o texto, o livro. O processo do autoconhecimento fará com eles sejam intermináveis. Felizmente. E agora, a moda e a autobriografia, que não é outra coisa senão o Facebook, versão impressa.

    Por último e não menos importante, estou feliz em poder visitar mais o seu espaço, não deixe seus leitores na mão. Beijos e ótimo final de semana.

    ResponderExcluir
  3. uow, teu melhor texto! Penso como muito bem (d)escreveu:
    (...)"assumir o que realmente se é, a estrutura da qual se estava distanciado, a única cura, aliás, possível de ser alcançada. Temos que refutar a mentalidade da medicina ocidental vigente que quer o indivíduo logo “consertado” para poder voltar a funcionar na engrenagem. Rechaçar essa idéia de mal estar como um vazio que precisa ser “resolvido” com uma adição qualquer (drogas legais ou ilegais, consumismo desenfreado, conquistas amorosas em série) quando o importante é fazê-lo restabelecer suas linhas de comunicação interna. O ponto congestionado interrompe a circulação da energia, indica que nós precisam ser desatados, laços refeitos. (...)
    a “cadeia-hospital” foi substituída pela prisão farmacológica, sem que se admita que esses medicamentos psicoativos – além dos efeitos colaterais que provocam – estão longe de exercerem alguma conseqüência efetiva sobre o desequilíbrio propriamente dito. Mas, o pior: afastam o sujeito dele mesmo. Parece que a principal queixa atual (senão denúncia) é a de que não se trata mais o doente, pouco importando se sua subjetividade é exterminada junto com os sintomas combatidos, tamanha a virulência do tratamento imposto. Enquanto o modelo biomédico predominar (o pensamento cartesiano, a separação entre corpo e mente) o quadro persistirá.
    (...)"

    ResponderExcluir
  4. Bem que sempre me intrigou eu ter tatuado poesia em japonês no meu ombro...

    ResponderExcluir
  5. Muito interessante! Tenho a ideia de que é tão perigoso consultar um psiquiatra como um curandeiro ou um bruxo. Eles arranjam sempre maneira de meter doença ou problema na cabeça das pessoas. E sabem mais do que a pessoa sofre do que ela própria. Daí até a medicarem, por exemplo, porque ela é infeliz por ser traída, é um passo no raciocínio segundo o qual o mal é de quem se queixa. De facto a prisão farmacológica é uma ideia assustadora e radica numa crença (científica) sobre o funcionamento do corpo e da mente, que está longe de se pacífica, como o seu texto deixa supor, e muito bem.
    Obrigado pela partilha.
    Abraço

    ResponderExcluir
  6. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  7. A ciência ainda tateia às formulações de tratar o homem, mas já se avistam luzes no horizonte, teu texto é exemplo disso.
    Visão holística de quem precisa - e todos precisam ou virão a precisar - se tratar ou ser tratado, também é um ótimo re-começo.
    Beijos

    ResponderExcluir
  8. Amigos: grata pelos comentários. Um grande abraço em cada um de vocês!

    ResponderExcluir
  9. minha 1ª visita

    a este blog interessante e variado.

    Saudações poéticas

    ResponderExcluir
  10. Muito obrigada pela visita, Vieira Calado: que venham outras.
    Saudações poéticas!

    ResponderExcluir