sexta-feira, 5 de julho de 2019

Bispo com Quixote

BISPO com QUIXOTE

A derrota do ser no mundo aos olhos de uns pode ser a vitória interior, ainda que travestida de desespero e dor, liberdade que roça a demência. Claro e escuro coabitando na mesma dimensão. A perseguição do enigma no lugar primeiro. A confiança no paradoxo da duração do efêmero: quanto mais escapa, mais dele se tem certeza. Mais turvo, mais chance de verdadeiro. É justo nas trevas que pode surgir a luz. 


Assim foi com Arthur Bispo do Rosário, alguém que, além da psicose, jogado foi no abismo do manicômio, só restando sua expressão pré-verbal através da linguagem das formas, das cores, das texturas. Sem mediação da letra, ou melhor dizendo, inscrevendo-se ele próprio como (música e) letra de seu auto-processo criativo. Fez arte com o tremor do pensamento. Criando, ele se produziu, perambulando no pantanoso espaço delirante, repleto de fantasmas que habitavam os porões da sua mente, como formas que surgem de sombras na parede. 


Aí restava a possibilidade de sua ressurreição como sujeito, ao imprimir seu traço, sua marca nos bordados feitos com linhas esfiapadas do uniforme da instituição (é famoso o seu Manto da Apresentação, com o qual deveria estar vestido no Dia dia do Juízo Final) e no manuseio original de objetos de uso cotidiano, muitas vezes oriundos de sucata e até mesmo do lixo, alçados a categoria de instrumentos.


Diz-se que toda obra de arte guarda um nonsense, costura em suas bordas, margens, litorais o tecido da verdade pela eclosão do ente desvelado, o que transcende e aponta para o indizível, para o impossível, para o limite. “Como é que eu devo fazer um muro no fundo da minha casa” estava escrito ao lado de sua expressiva produção, um monte de cacos de vidro. Mas o 'the meaning of the meaning" tão procurado nos escapa quando se fala de arte, ela já é o decodificar, mesmo cifrado, do saber inconsciente que a constitui. O trabalho como resto de um despertar, mesmo que incipiente, tentativa de elaboração de um novo enunciado, um percurso em torno desse lugar cavado fora da simbolização. 


Talvez ele tenha falhado, embora com brilhantismo tentado, em dar sentido (senso), já que ficou no censo, no cálculo, contando, “fazendo o inventário do mundo antes de se apresentar a Deus”, como evidenciam as peças seriadas de algumas de suas composições. Sua obra, de reconhecimento internacional (acabou sendo consagrado pintor, escultor e artista visual, homenageado por uma escola de samba, em 2018, com o enredo O rei que bordou o mundo, teve exposições no Museu Victoria & Albert, em Londres e numa Bienal de Veneza) aponta para uma travessia, porém não completada. Cabe a quem a vê senti-la, escutá-la, ouvir o silêncio, e, paradoxalmente, o grito que promove.


E Dom Quixote com isso? Cervantes instaura ali o poder revolucionário da literatura. Da litura, a rasura feita nas palavras para descaracterizá-las, deformá-las, deixá-las livres para que o sentido dê quem as lê. Fracassa a leitura enquanto compreensão, fica só a ranhura sem sentido, como Joyce, que Lacan dizia para ser lido e não, necessariamente, entendido. Enigmático, mas revelador. Revela-a-dor. The viewers are those who make the painting (Duchamp, vanguardista com quem Bispo chegou a ser comparado). O artista desfaz o sentido ou finge desfazê-lo para que o público o reconstrua a seu modo, particular, único, diferenciado, daí se dizer que a autêntica obra de arte “funciona" como analista ou como teste projetivo. 


O protagonista, o fidalgo Quixote, leitor inveterado e identificado com os heróis dos romances que tanto leu até perder o juízo, resolve, já em idade avançada, tornar-se cavaleiro andante e partir, despreparado, da ficção para a realidade, para viver seu próprio romance de cavalaria. Quando se dá mal, a sobrinha, Fahrenheit bem intencionada, queima-os todos, culpando-os por seu excesso de imaginação, para tentar assim devolver sanidade ao tio. Em vão, ele já havia sido inoculado por esse vírus. Como se o homem precisasse disso ou daquilo para fantasiar, voar, navegar, guerrear. Aliás, Navios de Guerra é o nome de outro projeto de Bispo, feito de madeira, plástico, tecido e linha. Quixote encarna o herói que crê nas pessoas a despeito de zombarias, decepções, golpes sofridos. Estaria aí sua loucura?                                                                                      

Ana Guimarães  

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