terça-feira, 16 de junho de 2009

BLOOMSDAY IN DUBLIN



O canto das gaivotas é ouvido do meu quarto, no hotel Blooms. Na verdade, por toda a parte. De qualquer ponto da cidade – estou em Dublin, assim nomeada porque a atravessa o Dubbh Linn (Lago Escuro, em irlandês), o rio Liffey, com suas águas escuras – posso vê-las fazendo acrobacias no céu, bem baixinho, num bailado circular cuja coreografia lembra os movimentos do marinheiro que Joyce pareceu ser a Nora, no seu deles primeiro encontro: aquele que vem e vai, que parte (e reparte, e fica com a melhor parte, pois tem arte), mas está sempre voltando. Ou volta, embora sempre partindo. Como a gente, à procura de terra firme, de um porto seguro, de uma calmaria ao menos, mesmo que quando com ela nos deparamos, assusta: prenúncio de tempestade.
Dezesseis de junho de dois mil e cinco. Do primeiro Bloomsday a gente nunca esquece. Existirão outros? Duvido, só mesmo as asas de um simpósio Joyce/Lacan para aqui me transportarem, que maravilha o Dublin Castle onde ele se realiza!
Percorro, passo a passo, os lugares mencionados nas andanças de Bloom naquele distante 1904, retratadas no Ulisses. Começo pelo banho de mar na minúscula praia (uma faixa de areia, na verdade) mais rochosa que do que qualquer outra coisa, de Sandycove Martello Tower, cheia de banhistas que se trocam à vontade, seus brancos bundões e melões de fora.
Adentro o museu JJ aí instalado e, depois de ver documentos, objetos pessoais, fotografias, primeiras edições dos livros, uma réplica de sua máscara mortuária, souvenires de todos os tipos, subo a estreita escada de pedra em caracol. Meus olhos lacrimejam, meu nariz funga, não só pelo pó que em tudo se deposita: deparo-me com o quarto onde Joyce viveu, ainda que por um breve período de tempo: a cama, a estátua de uma black panter, parece que estou vendo a famosa cena descrita no primeiro capítulo. Mais uns degraus e, no topo, uma estonteante vista da baía se abre em 360 graus. Para não sucumbir à emoção, utilizo-me desse artifício de afastamento e proteção contra a realidade: a câmera fotográfica.
A celebração continua como um festival, dizem-me. Toda a cidade é festa. Leituras e performances me esperam em cada esquina.
No JJ Centre mais taquicardia: uma belíssima casa do século XVIII abriga suas obras nas mais diversas línguas, e uma mostra de sua vida em vídeo, para aficionados que enchem a sala de silêncio e reverência. Eu, sempre tagarela, me calo também.
Na National Library uma exibição, com tecnologia multimídia interativa, de desenhos e manuscritos do escritor, ainda desconhecidos e recém-adquiridos (2002).
Uma visita guiada ao Clongowes Wood College, a escola jesuíta na qual ele estudou de 1888 a 1891, revela recantos onde aconteceram os conhecidos episódios do autobiográfico Retrato, com Stephen Dedalus.
Constatar que Joyce nunca será esquecido, ao contrário, para sempre lembrado, discutido, amado, não só por universitários que dele se ocuparão por séculos e séculos como ele próprio queria é um gozo extra: sua estátua quase na esquina de Earl Street North com O’Connell vive rodeada de irreverentes admiradores.
Fecho o dia (só escurece por volta de dez, dez e meia da noite) tomando uma Guiness no Davy Byrnes, o bar freqüentado por Joyce, lotado dentro e fora, mais parecendo o nosso baixo Gávea, aqui do Rio, com faceiras e corajosas moças usando chapéus a la Molly Bloom, em sua homenagem.
Trocando escuridão por luz é o título da exposição do Book of Kells, na Trinity College Library Dublin, um relato dos evangelhos criados pelos monges irlandeses do século IX, fartamente consultado por Joyce quando ainda muito jovem. Pudera. Aí vai um trecho que explica o porque:

Pángur Bán

Solemos yo y Pángur Bán, mi gato,
en lo mismo los dos pasar el rato:
cazar ratones es su diversión,
cazar más bien palabras mi passión.

Es preferible a todo aplauso humano
sentarse con papel y pluma en mano;
y Pángur no me mira con rencor,
siendo él también sencillo cazador.

Frecuentemente, um ratoncillo errante
cruza el camino de mi gato andante;
alguna idea más, frecuentemente,
coge en sus redes mi afilada mente.

Vigila el muro con sus ojos vivos,
redondos, maliciosos, agresivos;
escudriñando el muro del saber,
mi poca comprensión busco extender.

Dia tras dias, a Pángur su ejercicio
lo ha hecho ya perfecto en el oficio;
yo noche y dia alcanzo más verdad,
trocando en clara luz la oscuridad.

(Escrito en el siglo IX por un monje irlandes en St. Gallen, Suiza)

Pángur Ban

I and Pangur Bán my cat
`Tis a like task we are at:
Hunting mice is his delight,
Hunting words I sit all night.

Better far than praise of men
`This to sit with book and pen;
Pangur bears me no ill will
He too plies his simple skill

Oftentimes a mouse will stray
In the hero Pangur`s way;
Oftentimes my keen thought set
Takes a meaning in its net.

`Gainst the wall he sets his eye
Full and fierce and sharp and sly;
`Gainst the wall of knowledge I
All my little wisdom try.

Practice every day has made
Pangur perfect in his trade;
I get wisdom day and night
Turning darkness into light

(Written by a ninth-century Irish monk in St Gallen, Switzerland)

Ana Guimarães

6 comentários:

  1. Creio que dos seus relatos de viagem esse é o de maior dimensão pessoal. Você emociona porque se emocionou. De fato, admiro o seu bom gosto no passeio, na escolha dos lugares. A cena da praia e a cena do barbear no alto daquela torre, também são marcantes. Ele bem queria que nós discutíssemos a sua obra pelos próximos cem anos, e creio que ele será bem sucedido no seu intento. Você já fez, com louvor e mérito, a sua parte. Parabéns, minha caríssima amiga.
    Beijos.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Ana,
    "Dia tras dias, a Pángur su ejercicio
    lo ha hecho ya perfecto en el oficio;
    yo noche y dia alcanzo más verdad,
    trocando en clara luz la oscuridad."

    Da tua narrativa, transborda essa, digamos, atitude do exercício, da pesquisa, que só mesmo o incansável escanfandrista consegue trazer à luz - prosa encantadora.

    Beijos

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  4. Olá, Ana!! Tudo bem? Estou voltando...aos poucos. Um espetáculo sua narrativa!!! Parabéns pelo belo texto, pelas preciosas informações, além do bom gosto ao "fechar" a noite.

    Um beijo

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  5. Obrigados, meus queridos Djabal, Tere e Lau. Eu já gosto do ato de escrever em si, mas sendo bem lida assim é um prazer extra!
    Continuemos, pois.
    Beijos

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  6. Ana,
    Lembrei-me daquela música que diz: "Eu caçador de mim".
    Emoção, além da decrição particular desses lugares tão imaginados pelos leitores, antes como tu.
    Capturar ou recapturar o verbo que há em cada um, em cada cena, em cada emoção que advém de um estar em!?
    Parabéns pelo texto, saudades
    Beijos

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