domingo, 10 de janeiro de 2010

E QUERO FRÁTRIA



E QUERO FRÁTRIA

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
(Fernando Pessoa)


Havia lido que Lisboa, apesar de localizada no Atlântico, tem um quê de mediterrâneo. Talvez por seus telhados laranja escuro, casas em tons pastéis, calçadas lindamente decoradas, sempre sendo restauradas, azulejos azuis por toda a parte (D. Manuel I, em visita à Espanha, teria se encantado com os interiores mouriscos azulejados). Acordei num sábado de manhã cedo, no Aeroporto Portela, louca de disposição para conhecê-la. A sensação, após dez horas de vôo, é inusitada: fala-se a mesma língua, o que embora nos conforte e tranqüilize, causa um certo estranhamento. Uma flor de ambigüidade, estamos e não estamos no estrangeiro. Agora, fecho os olhos para melhor resgatar da memória tudo que possa servir de bússola para futuros viajantes.
O hotel Lisboa, bem localizado, junto à Avenida Liberdade, que me abrigou por apenas um dia, pois antecipara a ida em cima da hora, não é da mesma categoria do outro, onde me hospedei o resto da minha estadia, pertinho do praça do Rossio, o coração da cidade, contudo o atendimento da recepção foi cordial, rápido e eficiente: enquanto fazia o check in já me engajaram no primeiro tour aos arredores, deixando para depois o reconhecimento dos brilhos de um mito que se revelou realidade.
Comecei por Sintra, apelidada por Byron de O Glorioso Éden, antigo refúgio dos monarcas. Fez-me lembrar Petrópolis em seus áureos tempos. O lugar oferece aos visitantes, além da beleza natural (botânicos teriam enlouquecido com as espécies de plantas raras que ali florescem) grandiosas edificações como o Palácio Real, com duas enormes chaminés na cozinha, avistadas de longe, e o Palácio da Pena, erguido sobre as ruínas de um mosteiro do século XVI. Café e doces deliciosos amenizam o frio de quatro graus (é dezembro, pleno inverno). De lá seguimos para Cabo da Roca (o ponto mais oeste da terra), praia do Guincho (cheia de destemidos surfistas em suas águas geladas), Cascais e Estoril, paraíso dos aristocratas.
De volta do passeio, numa espécie de reconhecimento do terreno, jantamos no restaurante panorâmico do Hotel Mundial, com o magnífico e iluminado Castelo de São Jorge bem ao lado, quase a um esticar de braço. Fomos dormir com a sensação de que já estávamos em terras portuguesas há vários dias.
Aos primeiros raios solares, saímos para ver aquela que renasceu das cinzas por duas vezes. Seguíamos as trilhas sugeridas. Atravessar a Ponte 25 de abril, sobre o Rio Tejo (cantado em prosa e verso por Camões e Pessoa), a ponte pênsil mais comprida da Europa. Visitar o Mosteiro dos Jerônimos (uma homenagem às descobertas de Vasco da Gama, financiado pelo comércio das especiarias), o Museu dos Coches (instalado na antiga escola de equitação do Palácio de Belém), o monumento Padrão dos Descobrimentos e a Torre de Belém (construída como proteção contra piratas, a fortaleza que serviu de ponto de partida das caravelas). Subir e descer nas escadarias que constituem o labirinto de Alfama, antigo bairro árabe. Dar uma volta na Praça Marques do Pombal, o ministro que reconstruiu Lisboa após o terremoto de 1755. Passear nas ruas do Chiado, bairro criado após um incêndio em 1988.
Já o amplo Parque das Nações, feito para a Expo 98, revela a face moderna da cidade. Nele, muitas são as atrações, porém notável é o Oceanário, magnífico aquário gigante com diferentes habitats, vale a visita com bastante tempo disponível. No shopping Vasco da Gama, ali pertinho, uma surpresa, tolo afago de ego: a loja Ana Guimarães, onde adquiri uma almofada nova para pescoço, a fim de tornar mais confortável o vôo de volta ao Brasil. Depois fui ao shopping Colombo, bem maior e mais sofisticado, e aos Armazéns do Chiado (numa fachada antiga recuperada, um espaço interno que abriga seis pisos, boa opção para compras e refeições ligeiras). À noite, tendo feito uma ‘marcação’ (leia-se reserva) fomos ao aconchegante Parreirinha do Alfama ouvir fado (a palavra vem do latim fatum, ou seja, destino. Uma explicação para a sua origem remonta aos cânticos dos Mouros, que permaneceram no bairro da Mouraria, na cidade de Lisboa, após a reconquista cristã).
Dia 31 de dezembro fizemos uma excursão a Óbidos, pequena vila a 94 kms de Lisboa, rodeada de muralhas de pedras do século XIV, onde se toma a famosa “ginjinha com” (licor de cerejas com elas dentro da garrafa, daí o nome) e se come o melhor pastel de Belém dos muitos que provamos. De lá fomos a Alcobaça. Aí fica a maior igreja do país, o Mosteiro de Santa Maria, onde estão os túmulos de Pedro e Inês de Castro, casal que protagonizou uma das mais trágicas histórias de amor de Portugal. Seguimos para Nazaré, vila pesqueira onde degustamos um peixe fresquinho em mesa comunitária super divertida. Falava-se um pouco de italiano (jovens em lua de mel), um pouco de francês (casal idoso), um pouco de espanhol (cubano que mora em Miami), e, felizmente, o inglês, que todos ‘arranhavam’e propiciou que a comunicação fluísse. Em seguida Batalha, e por fim, Fátima, centro mundial de peregrinação desde que três pequenos pastores disseram ter visto a aparição da Virgem Maria e onde é impossível não se emocionar, orar e agradecer as bênçãos recebidas ao longo da vida.
Ceamos no restaurante do hotel e saímos antes da meia noite, levando champagne para a passagem do ano na Praça do Comércio. O que vimos foi queima de fogos de artifício, show com cantores locais, projeções a laser, espetáculo que, fora o visual da orla da Princesinha do Mar, nada ficou a dever ao nosso de Copacabana (devidamente registrado em vídeo, para quem quiser conferir).
Dia 1º de janeiro acordamos tarde, no maior silêncio, tentando espantar a preguiça. Continuamos a percorrer o roteiro sugerido. Castelo de São Jorge (erguido no topo de uma colina), Elevador Santa Justa (outra vista também deslumbrante), o tradicional café A Brasileira, e, após a clássica foto com a estátua de Fernando Pessoa, almoçamos no simples e fantástico João do Grão, mais conhecido dos lisboetas do que por turistas, dica de uma amiga da terrinha. Depois, uma boa passeada no Museu da Fundação Calouste Gulbenkian. As Igrejas da Sé (Catedral), a mais antiga, e a de Santo Antônio, o santo casamenteiro, foram outros tesouros arquitetônicos apreciados. E ainda o Palácio de Queluz, o Versailles de Portugal, a apenas quinze quilômetros de Lisboa.

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
(Vinicius de Moraes)


Então alugamos um carro para ir a Coimbra, capital do país entre 1139 e 1256. Depois de nos instalarmos num antigo hotel às margens plácidas do rio Mondego, partimos para a Universidade, que data de 1290. Sua torre é o cartão-postal da cidade. Visitamos a Biblioteca Joanina (obra engendrada por ordem do Rei D. João V, três amplas salas decoradas com laca verde, vermelha e dourada) e a Capela de São Miguel, onde se destaca um imponente órgão barroco. Vimos a igreja chamada Sá Velha.
Nessa noite, jantamos debaixo de forte chuva, no restaurante do Hotel Quinta das Lágrimas, uma boa experiência gastronômica. Palco de encontros do romance interditado de Pedro (herdeiro do trono português e filho de D. Afonso IV) e Inês (filha de Pedro Fernandes e Castro, da Espanha), ocupa uma área de dezoito hectares, com piscinas, campos de golfe, área de lazer e salões de jogos. Há árvores com mais de duzentos anos. Reza a lenda que Pedro condenou à morte os assassinos de sua amada com requintes de crueldade e mandou desenterrá-la para ser coroada rainha, numa cerimônia de beija-mão ao cadáver imposta a toda a corte da época.
Vimos ainda a Igreja de Santa Clara, “a nova” e Portugal dos Pequeninos, onde estão reproduzidos em tamanho reduzido os mais famosos monumentos do país e de suas colônias.
Se quiser adquirir a fina porcelana Vista Alegre, a fábrica fica a 50 quilômetros de Coimbra, com visita guiada mostrando a produção até o produto final (para quem não conhece, de excelente qualidade).
E para os que se interessam por sítios arqueológicos, há um, Conimbriga, o mais bem preservado conjunto de vestígios romanos, com parte aberta ao público.

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões...
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
(Caetano Veloso)


Tornamos a pegar a estrada, agora com destino ao Hotel Mercure Batalha, na praça do mesmo nome, no coração do Porto, essa cidade cujo casario típico foi tombado como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. O que recomendo? Coma, pra variar, um bacalhau, no Tripeiro. Descubra o centro antigo por meio de caminhadas. Suba, se for capaz, os duzentos e tantos degraus da Torre dos Clérigos, curta a paisagem e se seu ouvido suportar, ouça, às doze e às dezoito horas, a tempestade musical do repicar de quarenta e nove sinos. Visite a Catedral da Sé, a Igreja de São Francisco, o prédio da Bolsa. Vá a Praça da Liberdade e admire a escultura de D. Pedro IV, de Portugal, o nosso Pedro I. Desfrute do comércio da Rua das Flores. Flane pela rua Santa Catarina e tenha sorte de encontrar o Lourenço, onde provará o autêntico queijo Serra da Estrela. Almoce na região das Antas, em Portogalia (de preferência, uma galinha à cabidela), e faça uma degustação de vinho (do Porto, of course), em Vila Nova de Gaia, onde estão situadas várias caves.
À noite, já cansados desse périplo, nos despedindo, fazendo pela primeira vez uma refeição no restaurante do hotel. Surpreendemo-nos com o requinte e o esmero no preparo, na apresentação dos pratos e com as incríveis sobremesas, até hoje me lembro de clarinhas de fão, um delicioso creme de gemas acompanhado de doce de abóbora.
De Mercedes novinho (o trivial, todos os táxis são assim) rumamos para o Aeroporto. Terminava aqui nossa bem-sucedida temporada lusitana.

Ana Guimarães

22 comentários:

  1. beleza, ana! e assim descrito dá uma vontaaaaaaaaaade!
    besos

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  2. Ai Ana, que saudade que me deu. Eu quero Frátria...e voltar a passear por Lisboa.
    Lembrei também de minha mãe, que se não tivesse virado "estrelinha", faria hoje 84 anos.Ela amava Lisboa.

    Adorei você estar de volta.Bela crônica.Parabéns!!!

    Beijosss

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  3. Minha vontade de conhecer Lisboa só aumentou ao ler seu texto. Demais !
    Beijo grande

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  4. Bela blogada, Ana.
    Sua prudente trajetória (indo por trilhas recomendadas) está super bem descrita, e teve direito inclusive a uma loja homônima de onde trouxe uma utilidade de viagem.
    Bem passado esse tempo, de certeza.

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  5. Ana,
    Com seu relato de viagem eu refiz minhas boas viagens à Terrinha. São lindos e emocionantes recantos, que todos já conhecemos por contar de historiadores ou de algum patrício.
    Como diario de viagem, não poderia ser melhor!!
    Que venha o relato sobre Barcelona.
    Luiz Ramos

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  6. Ana Lúcia Vasconcelos11 de janeiro de 2010 às 11:15

    Ana que relato gostoso...Me senti la junto com voce...adorei também a tua volta.Linda crõnica como sempre..beijos.Ana
    Ah e a loja com teu nome é demais mesmo!!!

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  7. Apesar do frio rigoroso para uma carioca, a viagem foi muitíssimo bem aproveitada.
    Esta crônica faz, mesmo viajar!
    Faço a sugestão de uma crõnica sobre Paris que um amigo escreveu.
    Está, também, interessante.
    Se puder, dê uma olhada:http://ofazedordeauroras.blogspot.com/2010/01/obelix-e-bachiana-n-5.html

    Beijão.

    Ricardo Mainieri

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  8. Viajei na sua crônica, Ana. Bem descrito em verso e prosa. Estou aguardando Barcelona.

    Beijos
    Leandro

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  9. Obrigada, amigos, pelo carinho, pela leitura, pelas atentas observações. É uma honra tê-los como leitores.
    Obrigada, Ricardo, pela dica, já li e gostei do seu amigo, deixei lá, inclusive, um comentário.
    Beijo grande para todos.
    Aguardem Barcelona!

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  10. Ontem à noite, encontrei-me com um amigo médico e português (alfacinha) e conversamos sobre aquele lugar que parece estrangeiro e é tão próximo. E falamos do pastel de "Blem", da quantidade de doces feitos com as gemas dos ovos, da seriedade e honestidade dos locais para com a nossa língua fátria comum. E me preparei, sem o saber, para ler a sua crônica.
    Agora terei completo o meu trajeto. Tanto o verbal, quanto o narrativo, obrigadinho.
    Você fez tanta falta com seus textos, suas interpretações e delicadezas de forma geral. E como disse o Luiz, que venha Barcelona.
    Ps. Ouvi do Senhor Doutor Joaquim a explicação do porquê de tanta gema nos doces. As freiras utilizavam imensas quantidades de claras para engomar roupas e fazer hóstias; e com as gemas, o pecado. Beijos.

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  11. Seja bem-vinda, Silvana! Muito obrigada pela leitura e comentário. Vou lá no seu blog ler o que você ouviu dizer. :)
    Beijo

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  12. Obrigada pelo sempre esperado comentário, Djabal! Ia escrever sobre essa história do "aproveitamento" das gemas que sobravam, mas pensei: alguém, certamente, vai falar sobre, e foi você! :)
    Beijos

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  13. Lisboa é mais bonita com o seu relato rs Bjks !

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  14. Ana onde vc esta????

    Ñ acredito que passou por Barcelona, ou passara e nao nos vamos nos conhecer.
    Se ainda esta aqui me avisa!!!!
    chicabacana@hotmail.com
    Qto ao texto de portugal e isso que todos ja falaram, que ñ conhece fica com vontade e quem conhece revive a viagem de maneira saborosa.

    Besitosssss

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  15. Já te respondi lá no seu blog, Quel! Eu é que ficarei, agora, te esperando aqui no Rio! :)
    Beijos

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  16. Olá Ana,

    que rico trabalho sobre a sua visita a Portugal.
    O roteiro é excelente, mas a Ana tem o condão de o tornar fascinante, não desperdiçando referências históricas, e salientando impressões e relatos que vão muito para além das imagens de divulgação, fazendo-me viajar, por lugares que já conheço, como se fosse pela primeira vez.
    Gosto muito dos seus relatos.
    Fico à espera de mais.
    Tenho pensado visitar Barcelona.
    Beijo

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  17. Cereja do bolo! Obrigada por sua presença aqui! Mas não acredito que você tenha preferido Lisboa pelo meu texto do que ao vivo e a cores!
    Beijos

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  18. Carlos querido, que lindas palavras, obrigada! É que gostei muito mesmo de Portugal, e por mais que eu tenha tentado, não consegui transpor para as letras o que o coração sentiu.
    Já já posto o relato de viagem sobre Barcelona, espero que goste.
    Beijo

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  19. Ana que vergonha, já fui a Europa algumas vezes, e vc acredita que em nenhuma delas tive a chance de parar em Portugal? Sabe que me envergonho disso? Temos planos de ir á Israel esse ano, coloquei como condição na volta passar uma semana por lá.

    È encantadora a forma como você descreve a viagem, encantadora e cultural.

    Desculpe, usar o espaço dos comentários, para um solicitação.
    Coloquei no Longevidade uma aba a qual nominei Biblioteca, você tem alguma sugestão de papers com assuntos ligados ao envelhecimento para eu colocar lá? Atende leigos e profissionais da área de gerontologia e enfermagem.

    beijinho e obrigada.

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  20. Obrigada duplamente, Silvia, pelo comentário e pelo convite. Adoro o seu blog, e o tema que ele aborda, mas não disponho de tempo, no momento, infelizmente, para atender ao seu convite.
    Beijos

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  21. Ana, obrigada por seu despreendimento em nos passar suas experiências e emoções nessa viagem mágica, vou aproveitar suas dicas e lembrar-me de você quando por lá estiver passando. um Grande abraço Dina Bastos

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  22. De nada, Dina. É um prazer compartilhar experiências, emoções e conhecimento.
    Boa viagem!

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