quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

BUENOS AIRES



“La ciudad está en mí como un poema/ que aún no he logrado detener en palabras” (Borges 1923)

A mais européia das cidades da América Latina, a Paris sul-americana sempre me instigou pelo que ouvi falar da elegância discreta não só de suas meninas como de todos os seus cidadãos. Já a conhecia através de fatos políticos (a ascensão de Perón, a chegada ao poder, após a sua morte, da vice, Isabelita (sua segunda mulher), o sangrento golpe militar de 76 e a eleição de Menen, por voto direto do povo, em 89), através das letras de expoentes como Borges (escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta, habitual frequentador da legendária Livraria Ateneo), Cortazar (natural de Bruxelas, mas desde os quatro anos morador e amante da cidade, autor de Jogo da Amarelinha, Bestiário, Final de Jogo) e Sabato (de O Escritor e seus fantasmas, meu livro de cabeceira, ativo combatente da ditadura no país), e através também, inútil negar, embora não aprecie o gênero, do tango de Carlos Gardel, repaginado por Astor Piazzolla (ainda assim considero imperdível uma ida ao Viejo Almacén para assistir a um show do ritmo cadenciado que eletriza multidões).
Estive em B.A. por duas vezes. Na primeira, de passagem para Bariloche, cumpri à risca os roteiros dos guias turísticos. Na segunda, fui a mais perfeita tradução do flanêur: por quinze dias, sozinha, refém do acaso, zanzei de lá pra cá, de manhã à noite, aproveitando cada instante imortal posto que só chama. Perdi-me para me reencontrar, mas nunca me achava como antes, sempre diferente, reinventada. Descobri na metrópole (e em mim) tesouros que não constam de nenhum circuito-padrão. Fartei-me de uma interessante e desconhecida sensação de eternidade. Conheci curvas, arestas, dobras e brilhos do lugar. Tanto que quase me tornei porteña (o que significa portuária ou a que vive junto ao porto). O tempo, que tudo apaga e faz cinza do mais rubro, aqui não foi bem sucedido: passados vários anos do fim desses volteios desisto de pintar a plenitude das cenas porque sei da fenda que existe entre a linguagem e o ser, contudo tento desdobrar em palavras alguns dos principais reflexos e imagens que retive, o que a emoção mais murmurou - ainda hoje ouço aquele grito.
Revi com vagar a Plaza de Mayo (palco de acontecimentos cívicos significativos da história da Argentina, a exemplo do famoso encontro das madres de Mayo, mães de desaparecidos durante os anos de chumbo), a Casa Rosada (sede do Governo Federal), a Catedral Metropolitana (onde está o túmulo do General San Martin, herói nacional), o Teatro Colon (muitas celebridades ali se apresentaram: Caruso, Strauss, Stravinsky, Maria Calas, Nureyev), a 9 de Julho (uma das avenidas mais largas do mundo), o Obelisco (que – ao contrário do nosso de Ipanema, no Rio, erguido pelo ex-prefeito César Maia e já derrubado – após intensa polêmica, acabou se integrando à paisagem de B.A.), Manzana de las Luzes (belo conjunto arquitetônico tombado pelo patrimônio), Calle Florida (exclusiva para pedestres, farta em comércio de artigos de couro e lã, com o moderno shopping center Galerias Pacífico instalado num prédio onde funcionavam os escritórios da Ferrocarriles Argentinas. Uma coleção de afrescos e os vitrais da abóbada do teto executados por brilhantes artistas plásticos fazem com que, por incrível que pareça, comprar seja o que menos importa, com uma exceção: a loja Bonnie Life, de artesanato, voltada para a defesa da natureza: todos os produtos são ecológicos. Confira).
Voltei a La Boca, na margem esquerda da desembocadura do Canal do Riachuelo, colorido recanto que abrigou os imigrantes genoveses. De novo sorri diante de Caminito. A curiosidade são as casas (construídas sobre estacas, como proteção contra a maré alta) feitas com folhas de zinco porque essa era a matéria-prima utilizada nas embarcações que aí aportavam, pintadas de cores fortes com sobras de tintas que os moradores conseguiam junto aos navios.
Chegando à sofisticada Recoleta, curti a sombra do Gran Gomeiro, a seringueira árvore-símbolo do bairro. Depois visitei o Cementério, rico em frondosas araucárias, cheio de estátuas, monumentos, mausoléus, verdadeiras obras de arte, como o sepulcro de Evita Perón, a ex-primeira dama. Saí para conhecer a Basílica de Nuestra Senõra Del Pilar, de 1732, destinada às orações dos padres franciscanos recolhidos (recolletos), cujo Altar Mayor é o destaque: um trabalho em prata realizado por indígenas do Peru. Almocei em um dos notáveis restaurantes do Paseo Del Pilar, a galeria ao lado do Centro Cultural. Para quem se interessa pelo assunto, o B.A. Design Recoleta vale uma visita seguida de comprinha, nem que seja uma lembrança original. But, se quiser e puder gastar muito, vá ao Pátio Bulrich, templo do alto consumo, em uma antiga construção onde aconteciam leilões de gado, fortemente marcada pelo desenho inglês. A vitrine do Valenti especialidades (queijos, salames, azeites) é de cair o queixo.
La Plaza Shopping Center é mais um centro de lazer, com três áreas que homenageiam os três Pablos: Picasso, Neruda e Casals. Todavia, é domingo, dia de Feria de San Telmo, e é pra lá que eu rumo. Uma divertida feira de antiguidades ou quinquilharias, depende do ponto de vista, cheia de artistas anônimos, “estátuas vivas”, casais dançando (e ensinando) tango, tocadores de bandoneon (que som pungente! Sabe a música Pelos Ares, da Adriana Calcanhoto?) que de Mercedes Soza e Violeta Parra logo passam para Aquarela do Brasil ou Cidade Maravilhosa quando percebem a chegada de brasileiros “no pedaço”. Pega de surpresa, longe de casa, prenhe de saudade, corpo e alma são transpassados num só golpe (baixo)!
No Jardim Japonês, em Palermo (onde também está localizado o Parque 3 de Febrero, o grande pulmão verde da cidade), deixei-me ficar no silêncio da doce fluidez das horas, o que me pareceu ser, no momento, o mais perfeito enlace entre céu e terra. Enquanto o sol caía por entre as folhas, apreciava os bonsais, e, salpicada de gotas dos bailados das carpas em torno de migalhas de pão que os visitantes vinham lhes atirar, encharcava-me de paz.
Por fim, os Armazéns de Puerto Madero, resultado do maior projeto de revitalização da zona do cais (marina, dois barcos-museu, universidade, igreja, cinemas e inúmeros restaurantes), perfeito para um passeio pelo calçadão entre os prédios e o dique. Depois de muito caminhar, faminta, afoguei-me na mais feroz alegria dos sentidos, guiada apenas por desejos, aromas e sabores. O Cabana Las Lilas, que recebeu estadistas como Clinton e Fernando Henrique Cardoso, foi o escolhido. Se pedir tapa de quadril (picanha) com papas (batatas) fritas souflée, um clássico, não tem erro. Sobremesa: panqueca de dulce de leche, o melhor do mundo, vamos combinar. La Caballeriza foi outra boa escolha, quando lá voltei. A decoração lembra um haras, todo dividido em “baias” e os garçons vestidos no estilo. O cardápio, como sempre, voltado para as carnes, não invente. Bife de chorizo (nosso contra-filé) ou lomo (filé mignon) são uma excelente pedida.
A vocação gastronômica da cidade é um fato. Inúmeras são as opções, para todos os gostos e bolsos. Indico: Clark’s (frutos do mar ou o filé da casa, envolto em massa folhada com panceta e cogumelos). Prosciutto la Parrilla, localizado num prédio histórico de 1890, com um eficiente sistema de porta de entrada dupla para controle do frio externo, é outro que recomendo (jamon crudo (presunto cru) é a especialidade, servido de várias maneiras e acompanhado de chope, para variar dos vinhos até então consumidos). Las Nazarenas, tradicional assador criollo (churrascaria) também oferece maravilhosas carnes no típico fogo de chão. Muito aconchegante. Um ótimo, com menu a preço fixo no almoço, é La Casa de Esteban de Luca. O mais econômico, nem por isso menos agradável: uma simpática cantina chamada Broccolino, neologismo com o qual os donos, italianos, brindavam o Brooklin, em Nova York, onde estavam seus parentes que foram “fazer” a América.
E, se quiser um prato rápido, um lanche, uma comidinha leve, sem perda de qualidade, há cafés, confeitarias e casas de chá em profusão. Ressalto alguns: Café Tortoni, o mais antigo, fundado em 1858, muito querido dos intelectuais, artistas e jornalistas da época. Florida Garden (prove o sanduíche de pan de miga (pão de forma sem casca)). Le Caravelle (em pé, no balcão). Café de la Paix (lotado de americanos e europeus, nos fins de semana). Confiteria Jockey Club (peça uma platina de massas (bandeja de doces, deliciosos)). Delicity-Sweet House (tortas, medialunas (croissants) e um saboroso almendrado (sorvete de amêndoas). E o Freddo (uma cadeia de sorvetes artesanais, com mais de cinqüenta sabores. Tem filiais e entrega a domicílio). Falei dos alfajorres? (Finos discos de massa recheados com “aquele” doce de leite e cobertos de chocolate). Só aceite o Havanna, fabricado em Mar Del Plata. Vale o preço.
Mas não me (nem te) engano: o vivido é uma pluma que o vento vai levando pelo ar, e a essência, se é que ela existe, pertence ao invisível. Desfolhe meu real e alucine/concretize seus próprios sonhos. Siga sua caravana. Viaje, se preciso for, sem sair do lugar: pode ser ainda melhor.

Ana Guimarães

22 comentários:

  1. Sua descrição de Buenos Aires fez com que meus pensamentos, pombos arrulhando e ciscando pela praça do meu jardim (Palermo), atiçados pelo texto voassem em muitas direções, tentando acompanhar aqui e ali, uma impressão, uma lembrança, um sentimento, até alcançar o final e ao descobrir uma discordância aquietasse, voltando aos poucos desta viagem pelo mesmo lugar. Aquietados, um dos pombos recomenda experimentar também um alfajor de 'maicena' do Café Tortoni. Afinal, nada tão grave assim. Beijos.

    ResponderExcluir
  2. Adorei !

    O tempo tem se me esquivado como uma galinha metafísica que haja custo para apanhá-la para uma canja abstrata, mas sempre que der, estaciono a 55 por aqui no vaga fácil.

    Abço.

    ResponderExcluir
  3. "Descobri na metrópole (e em mim) tesouros que não constam de nenhum circuito-padrão".

    Quanto há por descobrir(de si mesmo)no que se descobre ao olhar (do atento)...um atestado de que autor e obra, invariavelmente, não são um só. Sós, talvez. A deambular entre um e outro.
    Abraço

    ResponderExcluir
  4. Olá Ana, que delícia de crônica.D+!! E além de tudo isso os argentinos anda amam os brasileiros. [rs]
    ... "deixei-me ficar no silêncio da doce fluidez das horas, o que me pareceu ser, no momento, o mais perfeito enlace entre céu e terra". (lindo)
    E sua alma agradeceu, certamente.
    Beijosss e obrigada por esse momento.

    E.T. Tem um prêmio te esperando no Renascendo.

    Lembre de uma passagem no

    ResponderExcluir
  5. Ana!!

    Seu blog é pra sorver aos poucos, como fruta que se tira do pé. Agora estou correndo e, por isso, dei só uma passada de olhos, triste por não poder me deter em suas descrições tão literárias!

    Volto loguinho!

    beijão!

    ResponderExcluir
  6. Djabal: que seu pombos arrulhem e cisquem sempre aqui no meu jardim literário, obrigada!
    Vário: aqui tem vaga certa, gratuita, pode estacionar quando quiser! Abraços!
    Tere: deambulemos, pois! Um beijo, querida!
    Lau: eu que agradeço. E duplamente! Beijo
    Potiguar: sorva quando e o quanto quiser: o pomar está às ordens, amiga!

    ResponderExcluir
  7. Legal,

    me identifiquei com várias passagens tuas. Faltou o museu de ciências naturais, ver um dinossauro altera a perspectiva :))

    abraços
    Rubens

    ResponderExcluir
  8. Buenos Aires me chama, mas não ando atendendo a sua sutil evocação.
    Quem sabe aproveite este ano e vá conhecê-la.
    Excelente texto sobre uma cidade que instiga.

    Beijão.

    Ricardo Mainieri

    ResponderExcluir
  9. Rubens: legal é sua presença aqui, volte sempre!
    Abraços
    PS Não fui ao museu de ciências naturais, acredita?

    ResponderExcluir
  10. Ricardo: você TEM que ir a B.A.! Imperdível!
    Obrigada!
    Beijo

    ResponderExcluir
  11. Amiga Ana
    Saudades de estar aqui.
    Escrever é fazer a sua própria construção de um local, fato, de uma cultura e de si mesmo ao mesmo tempo.
    Me gusta contar con ese recurso que quien escribe utiliza para dejar un legado al quien llegara más adelante de nosotros.
    Mui buena escrita.
    Saludo, besitos
    Salete

    ResponderExcluir
  12. Querida, que saudade! Muito bom vê-la aqui! Sim, escrever é inscrever-se na cultura.
    Muito obrigada pelo comentário!
    Um beijo amigo!

    ResponderExcluir
  13. Ana,
    Eu e Elika passamos uma semana em Buenos Aires agora em janeiro. Foi a nossa primeira viagem sem filho algum depois de 14 anos de casamento. E lendo seu texto percebi como esta cidade vai ficar para sempre no meu coração, que saudade...

    Adorei a foto, é no jardim japonês? Palermo é uma delícia, não é?

    beijos

    PS. Sem guia é bem melhor, não acha?

    ResponderExcluir
  14. B. A. é uma beleza de cidade, não é mesmo, Nelson? Que bom que aproveitaram sem os filhotes... de vez em quando é bom.
    Beijo, obrigada.
    PS Sim, a foto é no Jardim Japonês. Palermo é lindo!

    ResponderExcluir
  15. Passei por aqui para te deixar um afago, volto no final de semana para ler com calma.
    beijo

    ResponderExcluir
  16. Um afago é tudo, Silvia! POde ser mais do que um belo comentário! Ainda mais com a promessa de leitura.
    Beijo e obrigada!

    ResponderExcluir
  17. Obrigado pela visita, Ana.
    Valeu o toque do novaliteratura.
    Pasin tinha me convidado e já estou por lá.

    Beijão.

    Ricardo Mainieri

    ResponderExcluir
  18. O RICARDO ESSE,NA RODRIGO DE FREITAS LAGOA ESSA ,TEM TRANSMUTADA A ESFINGE TUA ,AMALGAMADA ENTRE INTERNAUTAS,ME FAZ SENTIR ATÉ HOJE ,PRESENÇA FEMININA TUA,INESQUECÍVEL!DA MULHER E DA SÁBIA FEMEA,A NÓS ENSINANDO ,A POSTURA SÓ SOMENTE TUA!
    JAMAIS ESQUECEREI
    PÉS TEUS TOCO EM REVERENCIA A MULHER SÁBIA E E INTENSAMENTE FEMININA QUE ÉS!

    BZU MÃOS TUAS ,MADRINHA MINHA

    ResponderExcluir
  19. Ricardo: obrigada digo eu, pela visita. Entristece-me não mais poder, como antes, participar ativamente do Nova Literatura e dos demais sites literários para os quais colaboro, mas fazer o que? A vida real tem sido muito pregnante. Tento conciliar, então, como faço agora, num domingo à tarde.
    Beijo

    ResponderExcluir
  20. Muito obrigada, Calmon, pelas gentis e generosas palavras! Valeu, amigo.
    Beijo

    ResponderExcluir
  21. À volta dos lugares, lançando esteiras de sentido e de frequentação dos topoi do fascínio, numa escrita que se adentra pelo prazer da viagem, pelo sortilégio dos espaços de que a memória é a guardiã.
    grato pela partilha,

    luís filipe pereira

    ResponderExcluir
  22. Quem agradece sou eu, Luís Felipe, tão honrosa visita: volte sempre!

    ResponderExcluir