sábado, 26 de fevereiro de 2011

COISA DE LOUCO*

Escrever é uma maluquice. Quem – senão um louco – pegaria numa pena (ou num teclado) e criaria outro mundo ao invés de se adaptar a esse já criado? Criado desse imundo, não! Subalterno de imposições, nunca! Quando se é exilado de si mesmo parte-se logo para outras praias, as do desterro da ficção. Ou não. De todo modo, não se trata de qualquer tipo de escrita, evidentemente, mas daquela que tem valor de escritura do traço que marcou primordialmente o sujeito. De uma autoria. E, conseqüentemente, do gozo obtido com isso. Escrevo para me estabilizar. Meus personagens são vis para que eu não precise sê-lo.

A literatura é uma tampa de ralo de banheira que se coloca, rapidamente, para que a água não escoe toda e deixe a gente a seco, nu, tremendo de frio, com a sensação de que o líquido amniótico se foi, escorreu (não se diz que o tampão se rompeu?) e o parto começou: vamos ter que respirar por conta própria, pagar essa conta, o ar entrando, queimando os pulmões. Sangue, suor e (ainda por cima) sem cerveja. Sem ser, veja. Dor. Separação.

É uma rolha que tampona o buraco que é sempre mais embaixo – ou acima, não importa. O que há é que não se consegue determinar o lugar, seu espaço, seu diâmetro, o que se sente é a espessura de sua borda. É um risco que se borda (e se corre), que se segue, de um bordado, uma abordagem, no máximo. Um recorte num mapa, litoral. Literalmente. Sempre mente, só aí se chega (próximo, e olhe lá) à verdade: pela mentira. Literariamente também. E principalmente. É quando mais se mente: pela letra, essa inscrição de nossa mentira primeira, a fantasia. Literatura não é isso? Ilusão. Elisão da verdade. Qual? Essa. Todas. Que a vida não tem sentido, não tem objeto, não tem closura, boa forma, gestalt. A relação sexual não há, nada de metade da maçã, nem nirvana. Só uma banda, de cada lado: você pra lá eu pra cá, até quarta-feira.

E se não há nada que tampone esse furo, essa falta, nada que sossegue o leão, o facho, acho, então deveria servir literalmente (de novo) tudo. Mas nem com isso me satisfaço, com esse desfilar metonímico de objetos na cadeia significante. Que situação, que prisão, eu não! Prefiro a liberdade do criar. Do pensar. Do re-significar. Do inventar. Uma outra vida, mesmo que seja só no papel.

Domingo era dia de pescaria. Hoje em dia, é dia de virtual. Todo dia era dia de índio, agora, de aldeia global. Sem pajé. Falo de Internet. O falo da Internet. A Internet como falo. (Como falo, putz, pareço uma matraca!) Cair na rede (como peixe) pra não se sentir muito solto. Algo que dê lastro a essa insuportável leveza do ser. Domingo é dia nacional, internacional, cósmico de angústia, como se sabe. Se como – mastigando ou só engolindo – o ‘se sabe’ fico com o saber que angustia, esse despertar para a possibilidade de liberdade. Sem a prisão do trabalho, do estudo, de (alguns dos) relacionamentos obrigatórios. Com a soltura do tempo escorrido. Da alforria. E, tal qual um escravo, não sei o que fazer com isso. Ainda. Sempre. Nunca. Dá um vazio...

Igual a Adão e Eva depois da expulsão do paraíso. Por isso a gente vive dizendo: Para iso. Digo, para isso que eu quero descer, tá muito estressante, me arranja um calmante, porque sem a cachaça ninguém segura esse rojão. Isso é livre-arbítrio. Não quis provar do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal? Decidir? Optar? Quem mandou? Agora agüente. Melhor quando se era criança, tutelado. Ou pra quem acredita em horóscopo, tarot, búzios, vidente: tudo determinado. Previamente. Viu? O prévia também mente, mas me engana que eu gosto. E preciso. De controle. De conclusão. De limite. De fim, da história.

Ana Guimarães

*Texto publicado em Germina Literatura: http://www.germinaliteratura.com.br/ana_guimaraes.htm

8 comentários:

  1. Disse-me alguém cujo nome ignoro - tampouco me interessei em sabê-lo- que a Arte sempre sabe o que fazer, e faz bem.Sempre.

    Beijo

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  2. como sempre vale a pena ler de novo... mas existe sim, infelizmente, in feliz mente, o q sossega o leão, não o vazio e a angústia, nem o sujeito, só o leão, deixando todo o resto infeliz e xei..

    xei das meta, linguagem, linguística, jogo, gozo, escrita...

    melhor ser tutelado, criança? será? ser há? ser ia? seria?

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  3. Olá, Ana querida,

    O que fazer da liberdade angustiante de um dia (domingo) poder ser simplesmente o que se é? E ainda por cima, livre de "obrigações" sem ter que fingir para o chefe e etc... Hummm, ler, escrever, é uma boa opção para ter a chance de se conhecer melhor livre do que o mundo cobra de sua humanidade.

    heheheh - por isso, para_iso, para isso - hehehe - genial Ana! Então, por isso, eu criei a Bruxauva, para que ela possa me representar - heheh.

    Beijos, carinho
    Madá

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  4. Tere, Tania e Madalena, loucas amigas escritoras: meu muito obrigada!
    Beijos e bom carnaval!

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  5. Um desarrolhar de palavras bem lavradas no terreno fértil da criatividade. Criar sem pressão tenho a impressão que seja isso.

    Abraços... Há braços.

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  6. "Domingo era dia de pescaria. Hoje em dia, é dia de virtual. Todo dia era dia de índio, agora, de aldeia global. Sem pajé. Falo de Internet. O falo da Internet. A Internet como falo. (Como falo, putz, pareço uma matraca!)"

    Adorei! hehehê...

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  7. Adorei sua presença aqui, Carlos!
    Beijos

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  8. Leandro Soriano!!! Como eu pude pular a resposta ao seu comentário!!! Mil perdões! E que prazer tê-lo aqui - de novo - comentando um texto meu: seja sempre bem-vindo!
    Beijo, meu antigo amigo!

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