Foto de minha autoria, do pequeno cemitério nos jardins da Trinity Church, NY.
DESOLAÇÃO
DESOLAÇÃO
Calorão
de janeiro em plena primavera, o diferencial era o vento alísio soprando,
refrescando quem ali chegava, anunciando chuva que terminaria por cair bem na
hora dos serviços funerários. De outros refrigérios, no entanto, carecia.
O
primeiro a ser avistado foi o filho mais velho que imediatamente se pôs a
chorar, me abraçando. Cruzamos o pátio, olhares baços nos miravam sem ver. À
entrada da sala, só desolação. Vestes negras predominavam, em sintonia com o
funesto destino a que uma existência conduz.
Nenhum
cheiro de santidade no ar que, pesado, parecia faltar a todos. As duas viúvas
se entreolhavam, dividindo também nessa hora o que já partilhavam em vida.
Um
familiar protesto contra a lentidão dos trabalhos burocráticos da ocasião se
fazia ouvir. Bramia impropérios sem respeito algum senão ao morto, ao menos às
senhoras presentes.
Crianças
brincavam na escaleira de pedra, alheias a tudo. Na outra ponta do tempo,
também alienados, idosos calejados – a maioria – nem se preocupavam em fingir
reverência à situação.
O
rumor aumentava à medida que o momento escorria. Quase se esqueciam do que
acontecera: indisfarçáveis sorrisos alegres pelo reencontro, tapinhas nas
costas cada vez mais efusivos, gargalhadas sem vergonha aqui e ali entreouvidas.
A
todos recepcionando, uma voz diminuta e monocórdia discorria sobre o mal súbito
que lhe acometera; rudemente prosseguia seu monólogo sobre a causa mortis, propagando um modus vivendi diferente do escolhido
pelo defunto: asséptico, sem fumo, álcool ou stress, inclusive o advindo de dupla vida amorosa.
Uma
jovem mulher, desconhecida e solitária, vagava pelo recinto apertando as alças
da bolsa como se temesse ser assaltada.
No
canto, depois de muito balançar de forma rítmica e hipnótica o previdente guarda-chuva,
um senhor acabara por cochilar, deixando seu interlocutor falando sozinho.
Envolta
no silêncio das recordações enquanto acariciava, pela última vez, suas geladas
mãos, eu divagava. Da janela podia ver lápides adornadas por flores murchas,
pendentes. Um pesar se abatia sobre mim.
Desejava
ainda pudéssemos desfrutar daquelas intermináveis conversas telefônicas, por
décadas e décadas. Mas a ligação caiu. Irremediavelmente.
Ana
Guimarães
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