sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Peter Pan

PETER PAN

Ao contrário de Peter Pan, que não se lembrava do que vivera momentos atrás, jamais esqueci do impacto que me causou a primeira leitura das aventuras desse menino que não queria crescer. Lendo tradução de Hildegard Feist do original de J.M.Barrielogo após assistir ao filme, tudo me veio à memória outra vez.
É perigoso não recordarnão trazer de novo ao coração. O resultado pode ser a repetição, incorrer nos mesmos erros. Sem história nada se aprende e não se cresce. Na escuta repetida do relato dos contos de fadas, Peter Pan procurou encontrar a direção de sua cura, ou pelo menos, a que estava a seu alcance. 
Depois que mato alguém eu esqueço, disse ele referindo-se à morte do Capitão Gancho. Ou seria a (simbólica) de sua mãe?, visto que desprezava todas elas. Tendo “... assistido a muitas tragédias, se esqueceu de todas” para sobreviver emocionalmente. Contudo, esse esforço constante para o bloqueio de recordações indesejáveis faz com que sofra de lapsos de memória de outras pessoas e coisas.
Dois é o começo do fim, assinala o narrador logo no primeiro parágrafo do livro. Isso se daria quando deixamos de ser um só com nossas mães, quando nos percebemos distintos delas, concomitante ao surgimento de um terceiro que, cortando a simbiose, nos fará crescer? Além disso, com dois se faz mais um. Estamos falando de sexo, portanto, de deixar de ser criança, por isso Peter Pan não pode entender, muito menos corresponder (sequer sabe o que é um beijo) aos olhares de Wendy. Por isso a música cantada pelos eternos meninos: “As roseiras nós fizemos/Não fizemos os bebês/Pois decerto não podemos/A nós mesmos nos fazer”
Terra do Nunca, do impossível, da ficção é pra lá que as crianças estão sempre indo e aportando. Adultos também, toda vez que o encontro com o real se torna insuportável. Artistas e escritores o fazem com mais facilidade e freqüênciasua extrema sensibilidade talvez melhor os habilite a isso.
Quando as crianças morriam (Peter)... as acompanhava um pedaço do caminho, para que não tivessem medo”. Seria ele um anjo? O espírito de uma criança morta por desleixo? Por maus tratos? Perdida? Abandonada? Abortada? Fugida de casa porque rejeitada?
Já Sininho é uma fada. Fadas são sonhos e se deixarmos de acreditar neles, eles deixam de existir para nós, morrem. É a crença neles, em sua magia que nos faz voar, levitar, sentirmo-nos nas nuvens, ver estrelas, transcender. Se a gente se lembrar do trauma, da decepção, cai. “Ninguém se recupera da primeira injustiça, exceto Peter. Ele muitas vezes a encontrou, mas sempre a esqueceu”é sua maneira de se defender. Preso no amor a si próprio, no narcisismo: “Eu não sou maravilhoso?”costuma perguntar com frequência.
As fadas, nos conta ele, por serem tão pequenas, só tem lugar para um sentimento de cada vez. Ao contrário de nós, pobres mortais, humanos porque divididos, contraditórios, mas também maiores porque não precisamos ter emoções excludentes, somos grandes o suficiente, temos espaço para sentirmos muitas coisas ao mesmo tempo.
Uma outra leitura pode ser: só crianças freqüentam a Terra do Nunca, pois “só as crianças entrarão no reino dos céus”, ou quem se mantiver como elas, sua porção infantil intacta. Trata-se de féDe acreditar no outro. Não se lembrar do ontem, hoje é o que importa, amanhã será um novo dia. Zerar, recomeçar
Sempre que fico muito séria alguma coisa dentro de mim grita como na Wendy adulta: “Mulher, mulher, deixe-me sair”. Deixe-me ser criança outra vez, alegre, inocente e inconseqüente, imprevisível. Deixe-me voar! Só assim viver será uma grande aventura.
Essa personagem, Wendy, na verdade, pode ser vista como a protagonista do enredo, já que dela emana toda a história, é sua vida que é contada desde o início, enquanto que de Peter Pan, o pouco que se sabe é envolto em mistério,  verdadeiro enigma. 
Ela é instada a crescer, comportar-se como uma mocinha, ser treinada pela tia para freqüentar – ou enfrentar – a sociedade. Para ver e ser vista. Escolher e ser escolhida. Encontrar um parceiro com quem formará uma família. Mais realidade e menos brincadeiras doravante. Deve assumir responsabilidades, deixar de ser criança (já que não o é mais), com tudo de bom e de ruim que isso implica. Ela vê a ginástica que seu pai tem que fazer para se adequar às normas, para ser aceito, os desafios que encara, seus medos e inibições, o quanto tem que paparicar os outros para se dar bem, e isso a assusta e a desencoraja.
Quando aceita o convite de Peter Pan para fugir rumo amundo da fantasia (onde ninguém cresce) é por sentir-se tentada a isso. Mas acontece que ela já tinha sido mordida pela vida adulta, pela pulsão sexual que latejava. Já quer um beijo dele e tem, inclusive, a malícia de, na segunda oportunidade que se apresenta, trocar a palavra beijo por dedal a fim de ser bem sucedida. Já o envolve numa atmosfera romântica, embora sem resultado. Então se desilude, cogita até em ficar com o pirata, o Capitão Gancho, que no filme é representado pelo mesmo ator que faz o papel de seu pai, não por acaso: aqueles mesmos olhos azuis quase a seduzem, como se fosse para lembrá-la do Édipo vivido e sua necessidade de superá-lo, de elaborá-lo, e partir para outros objetos desejados não proibidos, não mais paralisada na imagem paterna interditada, passar a encarar a sexualidade com as dores e delícias inerentes a ela. Cansou de voareufemismo para transar, só em sonhos.
E quando percebe que está se esquecendo de seus pais (e o que eles significam) sente que é hora de voltar. Para crescer é imprescindível recordar, e ela levará quem quiser crescer com ela: seus irmãos e os meninos perdidosPeter Pan não quis, ou não pôde.
No final do livro, ela aceita amadurecer desde que tenha férias periódicas na terra da imaginação, desde que possa manter sua porção infantil.  Até que tenha filhos e passe para eles (e assim por diante) esse buraco do impossível (a terra não é do Nunca?), pois essa é a única transmissão possível de pais para filhos, é essa falta, essa incompletude que possibilita desejar, fantasiar, criar, produzir.

Ana Guimarães

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