quinta-feira, 11 de junho de 2009

DESCAMINHOS



... O senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa... Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...

(Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)


Por que João sorria
se lhe perguntavam
que mistério é esse?
E propondo desenhos figurava
menos a resposta que
outra questão ao perguntante?

(Drummond, 1967, três dias após a morte de João Guimarães Rosa)

Não os conduziria por caminho algum que não fosse o do desejo e sua relação com a linguagem, é o único peixe que tenho para lhes vender. O saber é mera suposição que não se sustenta, o que não impede que avancemos um pouco em nossas questões. Inicio com uma de nebuloso semblante, já que a ficção – como o sonho – é tecida no inconsciente, esse bastidor da criação: Para quem o escritor escreve? Ele sabe do que se trata, desde o início? No fim, ao menos? Ou tudo o que ele tem em mente é que não pretende corresponder a expectativas, está se lixando para demandas, despreza aquela afirmação segundo a qual a leitura, para despertar interesse, tem que ser lúdica e prazerosa? (Os interesses do escritor e o do leitor jamais são os mesmos e se ocasionalmente chegam a coincidir, trata-se de mero acaso - W. H. Auden). E ainda, que está disposto a encarar a força da dissociação a que está submetido. Não se deve confundir, no entanto, ignorância primária com ausência de conhecimento, o que há é uma paixão de ser, a prevalência do (ainda) não articulado. Suas pegadas (sua “assinatura”) dirão mais dele do que ele próprio é capaz.

São íntimas as relações entre produção e endereçamento. Ambos estão no mesmo lugar; este último, o destinatário, é quem alavanca a primeira, no entanto, só podemos deduzi-lo pelos efeitos que provoca. Imprevisíveis, por sinal, mas bem melhores do que os colaterais de certos remédios que tomamos. Um escrito é o enlace de algo até então desatado, mudo. Representa a admirável ação do ser sobre si mesmo (Cortázar), a salvação de uma experiência perdida (Benjamim), para ser compartilhada, acrescenta Borges: seremos parte de um discurso que nos escreve enquanto pensamos redigi-lo? Associei ao seu O Livro de Areia, no qual o número de folhas é infinito, nenhuma é a primeira, nenhuma a última: apenas janelas que se abrem.

É possível hierarquizar as literaturas? Estabelecer valores sem cometer injustiças? Existem critérios únicos ou determinados? Um selo de garantia pode ser dado por uma minoria abalizada ou seria melhor assumir que não se tem pares, só se tem ímpares quando se é escritor? Fundamentar-se numa alteridade que dê mais consistência porque heterogênea? O que designaria, afinal, uma obra de arte? Tem pregnância visual a excelência de um texto? Já vai longe a época em que sua definição seria “poder sustentar encantamento”? As soluções estéticas teriam se esgotado, substituídas pela est’ética do bem-dizer? (Que, ao contrário do que parece, subsume o enfrentamento do não senso, do paradoxo)

Quando Alice (de Carroll), vendo uma mesa tão grande, posta para tantas pessoas, quer saber se a razão disto é porque é sempre hora do chá, o Chapeleiro responde: Sim, nós não temos tempo para lavar a louça nos intervalos (que, logicamente, não existem). E ela conclui: “Vocês vão mudando de lugar, eu suponho... Mas o que acontece quando vocês começam tudo de novo?” Então a Lebre de Março se intromete e diz: Suppose we change the subject (“suponha que nós trocamos o sujeito” e “mudemos de assunto, estou cheia desse chá maluco!”). Como se vê, atribui-se qualidade artística a um texto se ele se serve da língua para significar algo diferente do que ela habitualmente diz, não nos deixa aprisionados num comunicado qualquer, se ele não só aceita diversas leituras, mas resulta da intenção deliberada do autor que assim seja – isso é sabido e notório, página menos cinco, nunca démodé.

A capacidade de permitir sua releitura, sua reconstrução – parâmetro de peso – envolve, indiretamente, o conceito de morte do autor, entendido como pai, proprietário e guardião do sentido do texto, escondido, sempre a ser decifrado. Acontece que entre os romanos, auctor era aquele que aumentava o território: o general vencedor. A fonte da palavra já desfaz a premissa da originalidade na escrita: não passamos de involuntários “cut-upeiros”, só fazemos anexar escritos que conquistamos. Por isso Foucault nem teria, propriamente, discordado de Barthes: não morre porque nunca existiu, chega desse idealismo da criação individual a partir do nada. Resultando daí a mudança da idéia, referida agora como destruição de toda voz, procedência e identidade, restando a linguagem vista como potência, aquela que fica de pé sozinha.

Essa constatação não exclui o reconhecimento da passagem do autor por um texto, não mais senhor absoluto, ausenta-se de fato, mas s’obra (obrou, se obrou e finalmente sobrou), deixa marcas de um trabalho, institui-se como agente de um discurso. Se não há intenção de comunicar nada, também não há recusa de fazê-lo. Mito do espaço do autor ultrapassado, chegamos à outra ponta: o leitor. Seria ingenuidade e um erro considerá-lo tabula rasa: ninguém lê sem recordar, sem associar, sem transpor sua experiência para a leitura. É preciso que se dê alforria às letras, devolvê-las ao seu devir: de onde vieram, para onde vão: isso é problema delas. Aceitar o riverrun. Um texto, depois que nos abandona (a gente é que pensa que se livra dele) começa a azucrinar os outros, seus leitores. Mas o que milhões de sedentos estariam procurando? ... Aquilo que revela e ao mesmo tempo redime a desolação da vida ordinária (Henry James). Cazuzeando: um veneno antimonotonia.

Ana Guimarães


Texto já publicado no site Cronópios: http://www.cronopios.com.br/site/colunistas.asp?id=1198


6 comentários:

  1. O autor e o leitor são amigos. O autor desperta nos olhos do leitor. O leitor prolonga-se nas mãos do autor.

    Muitas vezes somos o que lemos. Um livro é um meio de transporte. Um leitor também.

    1 Bj*
    Luísa

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  2. Escrevemos e se o escrito é lançado ao mundo com seu título, um nome, esse passa a ser independente do que desejamos ao escrever. Ganha vida própria, como nós ao sermos lançados AO MUNDO.
    Passamos como os que leem, sermos leitores também.
    O texto interroga. É o que dele mais constitui essa díade escrita/leitura.
    Continuemos.
    Beijos e bom domingo e semana.

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  3. Ana,
    Confesso que lendo o seu texto e os comentários, percebo que não tenho essa sua capacidade literária, amo ler, sonho pra mim uma casinha pequena e um anexo imenso,para guardar os meus livros Procuro nas minhas leituras;conhecimento, situações que me façam pensar e que me emocionem por isso gosto de ler os seus.Adoro reler livros, e quando meus, marco trechos e é uma delícia a releitura desses trechos, consigo avaliar-me.
    Para mim, é simples assim.
    Um beijo

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  4. Ana querida
    É sempre muito bom ler você e nessa série sobre o leitor , o escritor , suas leituras e escritos você está magnífica.
    Nossos escritos é como massa de argila que jogamos nas mãos do leitor.Nossa obra continua nas mãos e nos olhos de quem lê.

    beijos

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  5. A realidade é que não existe texto que não foi escrito. Todas as histórias já foram contadas. Nos resta alguma coisa para acrescentar, mas é algo mais íntimo, uma generosidade de escritor que pretende compartilhar, como você ressaltou. Algo, assim, do momento. Aquela expulsão, também mencionada.
    Quase uma impossibilidade, pois aquele que escreveu não existe mais, o leitor que leu também passou. Hoje ambos podem reler e encontrar diferenças no gosto, na textura e no prazer que outrora leu. Ah, temos os clássicos que se renovam, na leitura, complexos, e com tantos cruzamentos que parecem inesgotáveis. Portanto, nossa geração aprende a recontar com alguma graça, e merecedora de alguma alegria. Mas, pouca, devo acrescentar. E, escrevemos, escrevemos. Minha caríssima amiga, parabéns pela argumentação fértil, e perdoe minhas redundâncias. Beijos. Felicidades, sempre.

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  6. Descaminhar tendo vocês como companhia é uma delícia! Sempre que posso digo para os meus amigos 'presenciais' (me disseram que 'reais' não é correto) o quanto amo meus amigos virtuais*: muito obrigada pelo carinho de sempre.
    * Aliás, acabo de chegar do lançamento do livro O Gozo de Ulisses, da Noga Lubicz Sklar, lembram-se dela do GO? Pois é, adorei conhecê-la, e, de quebra, quem fez a orelha do seu livro: Arthur Dapieve.

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