quarta-feira, 3 de junho de 2009

SEGUNDO DEGRAU

Não há nada mais a dizer, embora nada tenha sido dito (Beckett)

“Manchando a folha branca com o falo da caneta, com o sêmen da tinta...” Um verso (sua lembrança), lido não sei mais onde, deflagra as primeiras indagações do dia. Existe escrita masculina? (Formulada dessa maneira para inverter a habitual, melhor seria perguntar se existe uma escrita distinta por gênero) Já vai longe o tempo da folha em branco, da tabula rasa? De certa maneira, tudo já foi dito e só nos resta copiar? Contentarmo-nos em criar segundo aquela frase de Pascal: nada de novo, somente “... la disposition des matières est nouvelle”? Tradução: o jeito é fazer uso da tríade permutação, arranjo, combinação. Com sorte, repetir com alguma diferença. Dialogar com a produção literária anterior e, dessa fricção, tentar fabricar alguma pérola, como Haroldo de Campos disse que Guimarães Rosa fazia.

E o produto final é mesmo o que importa? É possível, ao menos, minimizar sua importância? Romper com a noção teleológica? Continuar o pensamento de Valéry (um poema nunca está acabado, fica apenas abandonado) onde fazer seria o principal, e a tal coisa feita mero acessório? Ultrapassar a velha equação: obra de arte igual à finalização sobre uma elaboração? Ela não seria o próprio processo criativo, em movimento? Também não se trata de “compreender” nada através de anotações, esboços e cadernetas dos escritores, e sim da concepção do resultado final apenas como uma das possibilidades, uma das potencialidades da operação em curso. Nenhum trabalho de decifração, repito, nada a ser des-coberto (consultado por um tradutor para dar o exato significado de uma passagem de um texto seu, Rosa negou-se: o autor não dá conta de sua obra). Falo de uma opacidade permanente, e não de um véu que, se retirado, tudo se explicaria (nenhuma charada a ser decifrada: Stephen, no Ulisses, mostra como uma mensagem decodificada pode, ainda assim, permanecer um enigma). De uma prevalência do sugerido, deixando espaço para aquele que lê exercitar sua imaginação. De elementos apresentados sem que se estabeleçam relações fixas e precisas entre eles: o leitor é quem construirá as conexões. De uma suspensão do sentido dado, seu deslizamento no discurso.

Embora isso não seja, propriamente, uma novidade, pois que indefinições, equívocos (de lugar, nome, autoria) já tecem a prosa moderna desde sempre. Só pra lembrar: em épocas distintas Don Quixote faz o elogio da incerteza: “En um lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme...” e Malone morre sepultando com ele objetividade, enredo linear, caracterização de personagens, romance com as pontas amarradinhas. Mas a maior oferta desse tipo de texto, atualmente, poderia significar uma aposta no novo leitor. Aquele sonhado, acometido de uma insônia ideal, nada ingênuo, que encara com jogo de cintura recursos literários tais como ausência de fronteiras entre autor e narrador, confusão entre passado e presente, memória e ficção, e as chamadas bonecas-russas (um livro dentro do outro, do outro, do outro). Que suporta contradições, fissuras e chiaroscuros. Percebe que certos escritos são para serem lidos e não compreendidos. Aceita suas limitações na leitura, admite que sempre se pega o bonde andando, e corre atrás, então, das citações que desconhece, procurando – aí sim – esclarecê-las. Considera a estória uma opção para a história. Uma compensação, o que poderia ter sido. Uma espécie de universo paralelo. A resposta da fantasia diante da indigência do real. Sua salvação.

Leandro Konder sugere que se ofereça, naquilo que escrevemos, um mínimo de incitação à rebeldia, um estímulo às inquietações, o que dificultaria, senão impediria, que se reduzam leitores a meros consumidores, sem nos deixarmos tomar pelo desalento quando constatamos que até os textos mais subversivos são transformados em mercadoria: os versos do poeta engajado, as frases escatológicas ou de palavreado chulo que se julgam transgressoras, logo são estampados em alguma t-shirt ou aproveitados em jingles publicitários.

Tempo, tempo, tempo, tempo. Escuto Caetano e de novo essa questão me assalta. Acabei de rever Capote: o cara levou mais de três anos escrevendo A sangue frio (Joyce teria levado dezesseis em Finnegan’s). Ainda se faria alta costura, como antigamente, ou estamos mais para prêt-à-porter? Havia um esforço de mobilização à procura da mot juste, de imagens, metáforas, e uma espera (leia-se pesquisa) para a construção da trama. Uma linguagem nascida de um efeito de abandono. Isso levou a grandes momentos da literatura. Tirar medidas, fazer o molde, cortar o textu (tecido, em latim), alinhavá-lo, provar, costurar – uma técnica de artesão não mais cabível no presente, quem ainda faz roupas em costureiras e alfaiates? Compramos pronto, aqui e ali; no máximo, customizamos.
Ana Guimarães


8 comentários:

  1. Querida Ana,

    ótima analogia do texto com a costura... tanta reflexao oportuna nesse texto.
    Geramos textos, imagens,som...arte...ou consumo... Uma gestaçao/criaçao que pode ser de parto normal, cesaria, adoçao, ou sequestro...
    E depois o que o filho se tornará, só o tempo dirá, só as voltas do mundo responderá.

    Besitosss

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  2. Ana!
    Que bom menina!
    Você reaparecer aqui!
    Seus textos são sempre um brinde aos nossos olhos e subconsciente!
    Adoro teus escrits!

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  3. Ana,
    Entre o cânone e as visões contemporâneas, desfilarão sempre a coragem investigativa e a observação, como na pintura, de um belo traço/escrita, que destronará da quietude o observador. A esse fim, se for cumprido, será deliberado algum êxito. A admiração.
    Beijos

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  4. Ouvindo: "Down the road I go" Don Williams, ao som de uma rabeca.
    Num determinado dia, escrevendo, escrevendo, você consegue deixar de editar o seu próprio texto.
    O seu ego não funciona mais, e você escreve sem perceber o que está acontecendo. Exatamente, sem saber o que irá sair daquela fúria toda. Depois disso, você volta e percebe que existe vida ali. Não existe conselho, não existe explicação, não existe nada que possa nos consolar. Apenas vida pulsando, pulsando. Quem sabe alguém encontrará algum sentido? Você escreveu, eu li e vi alguma coisa. Será que é isso? Parece ser algo que eu li ao final desse belo e tem...tem...tem.. texto. Beijos.

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  5. Eu esqueci de comentar "A sangue frio". Foi uma experiência incrível, para mim. Bandidos que entram numa casa e cometem os crimes que cometeram, sem nenhum motivo aparente, merecem desde o início uma condenação formal. Final. Peremptória. À medida que lia a obra, fui compreendendo as razões, os motivos, não o suficiente para inocentá-los, mas o bastante para despertar a compaixão diante de outro ser humano. Esse foi o pulsar daquele texto impressionante. Aliás, um exemplo muito bem escolhido. Continuo seu fã. Beijos.

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  6. Ana
    Sempre que leio os teus texto sinto-me instigada a continuar a ler e escrever. Eles tocam num espaço que requer ser adentrado enquanto um labirinto que é inerente ao desejo de apropriação de nosso próprio existir enquanto continuadores da tecelagem.
    Li em Derida: "Ora não é acaso que Freud, nos momentos decisivos de seu itinerário, recorre a modelos metafóricos que não são tirados da língua falada, das formas verbais, nem mesmo da escrita fonética, mas de uma grafia que nunca está sujeita, exterior ou posterior à palavra. Freud recorre a sinais que não vem transcrever uma palavra viva e plena, presente a si e senhora de si. A bem dizer, e isto será o nosso probelma. Freud então não se serve simplismente da escritura não fonética, não julga expediente manejar metáforas escriturais para fins didáticos".
    E eu, e você, e do que escrevem sobre o tema e vivem essa questão como sendo a pesquisa da existência. Entramos no labirinto apoiadas nos fios que temos e vamos adiante, pois o labirinto do desejo é infinito.
    Beijos, bom final de semana.

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  7. Gostei muito do texto e a analogia foi perfeita.
    Confesso que feliz com a tua visita, e sobretudo honrada com o teu comentário.

    beijinho e tenha um ótimo domingo.

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  8. Exatamente isso o que persigo, Tere: que minha escrita "destrone da quietude o observador". E, por que não dizer/confessar? Também o escritor, eu.
    Beijo todos os meus queridos amigos leitores!
    Bom domingo!

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