sábado, 8 de agosto de 2009

AGO



– Morro alto, morro grande, me conte o teu padecer.
– Pra baixo de mim, não olho; pra cima não posso ver...
(Contracanção. Peça pseudofolclórica)

O Recado do Morro (Guimarães Rosa)


Quer ver a view? Punha ele no colo e, em silêncio, ficávamos na varanda a apreciar o contorno do horizonte (a pedra da Gávea ao longe, o Cristo, bem perto, o Dona Marta, à meia-distância), a acompanhar o movimento da rua, dos prédios vizinhos, o vôo dos pardais de dia, ou, à noite, morcegos passando raspando. Parecia gostar de aspirar a fria brisa com cheiro de maresia que eriçava seu pelo. Aí então suspirava, estremecendo todo o corpinho, como se, só então, relaxasse. Viu?
Às vezes, rastreava tudo ao redor, esboçando ganidos, olhar curioso, por longo tempo. Depois, virava-se pra mim, carinha e focinho de quem não está entendendo nada. Nem eu, querido, console-se. Não me encare de forma interrogativa. Pergunte aos morros qual o recado, quem sabe algum responde?
Noutras, dava uma geral e já desistia, enterrava a cabeça no meu peito pedindo proteção, recusando-se a ver a cena, parecia ter fobia de altura. Como censurá-lo, diante da atual estatura dos fatos, do nosso fado, dessa maldita sina?
De volta ao chão, as patinhas no vidro, era capaz de ali ficar horas (embora conferindo, de quando em quando, a minha presença), enquanto eu lia paisagens que alguém descrevera, abismos inventados que provocam reais tonteiras, fingidas dores que deveras sentimos, um corpo de baile conhecido apenas na hora do espetáculo.
Pecocinho, baiguinha: mal ouvia esse tatibitate canto soletrado, logo se deitava de costas, desarmado, dengoso, pra ganhar carinho. Ainda bebê, inventamos outra brincadeira: "A pulguinha vinha". Com o dedo médio e o indicador, simulava uma caminhada no chão. Ele corria a mordiscar o que teria ali, escondido. Nada. Nunca se tem nada, breve aprenderíamos. Tudo ilusão.
À medida que crescia, o reflexo e a força da resposta aumentavam. A pulguinha... Ele, rápido, me alcançava. A pulg... Mordia pra valer. Essa pulguinha não pode mais passear em paz, que você ataca, Ago! Seus afiados dentes começavam a machucar, a me ferir. Ai, doeu! Ele diminuía a intensidade da mordida no ato. Lambia, lambia (sua forma de beijar, se desculpando). Eu ria, e ele, em um segundo, reavaliava a situação e, imediatamente, voltava a brincar.
Maltês nascido branco carneirinho, manchas marron-sangue-pisado surgiram e começaram a se alastrar, debaixo dos olhos. O veterinário sentenciou: lágrimas ácidas, o nome do fenômeno. Claro, fosse a vida doce, nossas lágrimas também seriam. Do muito chorar (além do pouco dormir), grandes olheiras escuras me apareceram. Onde andará meu minino-galoto? Que admirável mundo novo estará vendo, agora, da janela?

Ana Guimarães

18 comentários:

  1. Acho que você deixou um spam no meu blog. Isto é, parece que é um recado do tipo "Ctrl+c e Ctrl+v".

    A propósito, gostei do seu blog. É tão... branquinho.

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  2. Olá Ana
    Um texto poético e pleno das "impressões" de ternura. O texto transforma-se em imagens, denotando o talento da escritora. Amei viver em seu texto.
    Beijos, saudades

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  3. Fiquei contemplando com o minino-galoto, nem morro acima, tampouco abaixo, em frente sempre em frente. A esperança do inesperado, é o que vi. Nenhum admirável, apenas a estatura mesma dos fatos e o peso dos fados. A Musa que poderia ajudar, apenas sorriu de lado, ouvi um sussurro vindo de não sei onde: "má memória e boa saúde, é a receita da felicidade." Aprumei-me a escrever, meio de lado, sentindo a gostosura do ler, do sonhar a ponto de publicar um comentário bobo, como homenagem. Beijos.

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  4. Minha querida amiga e vovó mais linda abraços do papai noel gaúcho. Acontece que no manuseio das ferramentas desse blogspot estava eu perdido agora linkei teu blog o da Salete e outros de amigos que havia eu deixado de visitar. E como aqui não tem chaminé não podia entrar.Abraços agora essa figura barbuda vai aparecer por aqui abração.

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  5. Os recados, às vezes, passam sem ruído; nem sempre cegos. Beijos Ana.

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  6. Obrigada pelos comentários, pelos recados, pelas advertências (spam?Eu?). Obrigada sobretudo pelo carinho. Minhas desculpas por ter tido tão pouco tempo para vocês todos. Mas breve volto a participar com frequência, prometo.
    Beijo grande.

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  7. Ana,
    Lembro-me desse seu texto. Lindo.
    Muito me emocionou e emociona.
    Luiz Ramos

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  8. Ana, também sou um pet-adicto.
    Benfeitor dos gatos de rua e dos dog de raça, sei bem o que é sofrer por esses bichinhos.
    Parabéns para ti nesta prosa-poesia e renovados cumprimentos pela participação no canil poético do Ulisses Tavares.
    Estou lá também com o poema Manchas na alma.

    Beijão.

    Ricardo Mainieri

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  9. Lindo texto. E as tais lágrimas ácidas foram uma (curiosa) novidade pra mim.
    Beijo grande !

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  10. Nossa ... como é bom encontrar o seu blog.

    Seus textos são magníficos!

    Bjs!

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  11. Olá Ana querida, eu estava com saudades de você e seus textos!! O Ago é tão fofo, que mesmo do outro lado da Vida continua conquistando seus leitores.

    Beijos.

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  12. Ricardo, perdão, amigo: só hoje estou vendo o seu comentário (e os dos demais).
    Obrigada, mas ainda não vi o "canil poético do Ulisses Tavares, com os nossos poemas - você poderia me dar o link, por favor?
    Beijo

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  13. Luiz, muito me emociona o fato de você ter tido a gentileza de, apesar de já ter lido e comentado esse meu texto, voltar e repetir o comentário. Mil vezes obrigada, e desculpe a demora para respondê-lo.

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  14. Rafaella querida! Um bela e nada ácida surpresa sua presença aqui, comentando um texto meu!
    Beijo e obrigada. Desculpe a demora.

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  15. E como é bom reencontrar um comentário seu, Eliezer! Muito obrigada.

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  16. Mada! Tem razão, o Ago é um fofo, e espero que ele ainda esteja desse lado da Vida (ele não morreu, nós é que o perdemos).
    Obrigada, querida! Bom "te ver". :)
    Beijos

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  17. Pois é, Rose, só hoje, dia 25/12, Natal, que os comentários estão sendo respondidos, me desculpe. Espero que em 2010 esse blog ande! :)
    beijos

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