domingo, 31 de janeiro de 2010

CAMINHANDO POR MADRI



CAMINHANDO POR MADRI

Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco, 
e me sabendo tal, sem grão de siso, 
sou — que doideira — um louco de juízo.
(Drummond)

Cansada, confesso que pousei no Aeroporto de Barajas desanimada, quase triste, com a sensação de que a fogueira estava prestes a se apagar, que a viagem agonizava. Primeiro, porque era um dado de realidade, afinal seria a última escala antes da volta ao Brasil. Depois, porque após o ápice que fora Barcelona, dificilmente alguma outra a superaria. Mas o jogo começou a virar na noite em que cheguei. O voo atrasou e fui jantar perto de onde estava hospedada, na Gran Via, num dos muitos restaurantes abertos  de madrugada, a metrópole tem fama de boêmia, nada fecha, nunca. Além do gentil atendimento, farta e deliciosa refeição por um preço ínfimo, comparado ao dos bacalhaus e jamóns que vinha, até então, degustando. Invadiu-me tanta alegria pelas papilas gustativas que fui dormir esperançosa de que o sonho continuaria enquanto a areia escorresse pela ampulheta.

Entrando no clima, tomei café com pan com tomaca (pão com tomate), e saí, como os mouros, disposta a conquistar Madri, só que caminhando e cantando, como Vandré. 
Parti para a Plaza Cibeles, no cruzamento entre Paseo Del Prado e a Calle de Alcalá, com sua famosa fonte, um lindo monumento.
Passei pela Plaza de Toros de Las Ventas, a das touradas, apenas por curiosidade, jamais assistiria espetáculo tão sangrento.
Na Plaza de Espanha, fotografei ao lado do busto de Cervantes e das estátuas de D. Quixote e Sancho Pança, seu fiel escudeiro. 
De lá rumei para Plaza Mayor, a mais bela de todas, incrível que o lugar tenha sido palco de julgamentos e execuções da Inquisição. 
Debaixo de suas arcadas, para abrir o apetite, provei o xerez Tio Pepe e belisquei tapas, uma espécie de petiscos salgados, embora os espanhóis odeiem esse reducionismo e adorem contar aquela velha história sobre a origem deles: como “tampas” para impedir que as moscas caíssem nos copos de bebida.
Andei até Puerta Del Sol, marco zero das estradas nacionais que saem da cidade, e vi o símbolo de Madri, a famosa estátua de um urso apoiando-se numa árvore chamada Madroño.
Pausa para almoço no Botin, o restaurante mais antigo do planeta, segundo o Guinness, de 1725, freqüentado não só por turistas como por habitantes locais, na Calle dos Cuchilleros, conhecido polo gastronômico. 
Talvez pela baixa temperatura, apesar do vinho consumido tive fôlego para ir direto ao Centro de Arte Reina Sofia, com seus panorâmicos elevadores de vidro, admirar o impactante Guernica, de Picasso, entre outras obras. 
Voltei para jantar no recomendado El Cuchi, cozinha mexicana, ambiente acolhedor e boa música.

Acordei disposta a dedicar manhã e tarde somente para apreciar os trabalhos expostos no magnífico Museu do Prado, um dos melhores acervos do mundo. 

No outro dia foi a vez do Museu Thyssen Bornemisza, que expõe a evolução da arte espanhola do século XIII ao XX. Mais Velásquez, Goya, Picasso, Dali.

O sol já aparecendo de novo, apesar do frio, e a marcha continua. Pernas, pra que te quero? Força, para chegar ao Templo de Debod, construído no século IV a.C., salvo de ser inundado por uma represa e dado de presente a Espanha. Fica nuns jardins no alto da cidade, valeu a pena a procura, pois além da sua beleza, nos presenteia com uma privilegiada vista.
Monastério de San Lorenzo de Escorial, na verdade um complexo que abriga mosteiro, basílica, biblioteca e dois panteões.
Valle de Los Caídos, monumento aos mortos da guerra civil espanhola, imensa capela escavada na rocha bruta.
Morta de fome, saí e fui direto almoçar um divino cozido madrileno no La Bola. 
A visita guiada, previamente marcada, ao Mosteiro de las Descalças Reales, repleto de tapeçarias, esculturas e pinturas de Rubens e Ticiano, doadas pelos pais das noviças, foi especial e diferente: somos acompanhados por um segurança para que ninguém se desvie e adentre algum recanto proibido, onde se encontram as religiosas reclusas. 
As Igrejas de San Isidro e N.S. de Almudeña, a padroeira, também encantam. 
Quando terminei, a noite há muito já nos enlaçava. Entrei, atraída pela placa, no Museo Del Jamón, que dispõe de enorme variedade da iguaria mais típica do país. Degustação terminada, concluí que meu presunto preferido é o Pata Nera (Pata Negra), feito da carne de um tipo de porco criado sem nenhum confinamento, alimentando-se apenas de uma espécie de castanha de coloração amarronzada, o que mancha suas patas, daí o nome.

Por fim, embarquei numa excursão de longa jornada para a qual fora pedido que se chegasse cedo no ponto marcado, com calçados confortáveis para pisar em ruas de paralelepípedos. Fomos levados a Toledoa capital da Espanha medieval até o inicio do século XVI, a cidade das três culturas (cristãos, judeus e árabes), dentro de antigas muralhas, preservada, tombada pelo patrimônio, berço de El Greco não de nascimento, mas por adoção, para aí desenvolver a maior parte de sua carreira. Ali nos extasiamos com várias edificações. 
Alcazar, que era um palácio fortificado. 
Igreja de São Tomé, bem simples, o destaque é que ela abriga “O enterro do Conde de Orgaz”, obra prima do mestre. 
Sinagoga de Santa Maria La Blanca, bem eclética em termos arquitetônicos, uma salada de estilos, em bom português, mais parece uma mesquita. 
E a Catedral, cujo altar ostenta magnífica escultura de Narciso Tomé, em mármore, jaspe e bronze, chamada Transparente devido à iluminação que recebe de uma clarabóia. 
Visitamos ainda uma autêntica oficina de artesãos em pleno funcionamento, lidando com ouro damasquinado, técnica secular onde se incrustam fios de ouro nos desenhos das peças. 
Um passeio encantador, mas exaustivo, o que me fez desabar na cama do hotel por oito horas seguidas. 

Desperto feliz, saciada de boas comidas e belas artes. Malas prontas, enquanto aguardo o horário da volta para a casa, vou domingar um pouco no Parque Del Retiro, enorme área verde no centro da cidade, com alamedas repletas de mímicos, músicos e acrobatas, barcos no lago e cafés ao ar livre. Uma senhora despedida. Agora o corpo quer relaxar apreciando o vaivém das pessoas, só a alma caminha. 

Ana Guimarães

12 comentários:

  1. Como já disse, lendo teu texto é possível ter a sensação de que estamos passeando contigo, caríssima. Fiquei com água na boca, tanto pensando nas comidas e quitutes para o corpo, quanto naqueles regalos para a alma, a mente, a emoção. Fiquei desejante de conhecer a "Transparente", e fico feliz em partilhar contigo desta alegria, através das letras, amiga. Abraços alados!

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  2. "Su cuerpo dejará, no su cuidado;
    Serán ceniza, mas tendrá sentido;
    Polvo serán, mas polvo enamorado."

    Francisco Quevedo escreveu esta poesia, e ela poderia terminar o seu texto, se encaixando com uma precisão, parece pensada. Melhor que não tenha sido, dá mais um toque de alma no conteúdo, se isso fosse possível.
    O povo espanhol, é a primeira lembrança do Brasil, para quem chega da escandinávia, disse-me um amigo. Ele sentiu-se em casa ao pisar em Madrid.
    E ao ler o que você escreveu, parece que tive a mesma sensação, talvez pelas escolhas que você fez, talvez pelos pratos, ou pela gente. Quem saberá? Só Quevedo e sua alma leve e palavras densas. Tudo ficou muito lindo. Beijos e obrigado.

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  3. Olá Ana, mais uma para a minha coleção/roteiro de viagem. A minha...alma não so caminhou junto com você, como também ficou em festa ao ler sua bela crônica.Sensacional!

    Quando será a próxima viagem??

    Um beijo

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  4. Um post bem descritivo. Só faltou um...olé!
    No mais...gostei!

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  5. Boa noite Ana,
    Saudades.
    Também estou afastada do ato de escrever por algum tempo. Durante 15 dias, os últimos de janeiro que estive numa praia em Florianópolis li Carta ao Pai de Kafka, esse ainda não havia lido, leivei outros para ler, mas de fato é surpresa para mim a disposição com que estava de me dar ao prazer de conversar, me divertir bastante. Também a temperatura e o mar estavam maravilhosos como há alguns anos não via.
    Gostei de constatar que retomastes teus escritos, tua disponibilidade para a interlocução através do Blog.
    E, teus textos, como sempre impecáveis e com a qualidade da escritora que és.
    Beijos
    Saly

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  6. Queridos amigos (Salete, João, Lau, Djabal e Analuka): fico feliz com a presença de vocês aqui! Espero que tenham aproveitado as dicas para quando forem a Madri, uma cidade fantástica.
    Obrigada pelo carinho.
    Beijos

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  7. Querida Ana,

    Gostei muito da forma como (d)escreves "nuestros hermanos" e seu quotidiano. É realmente muito bom...teu texto (como sempre) e a cidade.

    1 Bj*
    Luísa

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  8. Muito obrigada, querida!
    Breve postarei outro texto sobre nossos otros hermanos, os argentinos! :)
    Beijo

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  9. Ana,
    Que bom "ver-te" assim, vertente.
    Aguardo o próximo. Beijão

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  10. Entrar aqui, é ganhar presentes.
    Beijo Ana.

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  11. Olá amiga...
    Tem um presente para você no meu blog - dá uma olhada lá http://dulcenyz.blogspot.com/2010/02/premio-dardos.html
    Ah! E vem para o espaço Buzz do gmail - estamos todos nos encontrando lá como nos velhos tempos do GO !!!

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  12. Tere, Silvia e Dulceny: obrigada de coração. Presente é a presença de vocês aqui!
    Dulceny: como faço para entrar no tal espaço Buzz? Me dê as instruções, please! :)
    Beijos

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