quinta-feira, 24 de março de 2011

O ESCRITOR E O KAXINAWA

O escritor e o kaxinawa

Um kaxinawa, tribo do Alto Rio Purus, na Amazônia, quando faz um desenho no próprio corpo é um agente produzindo outro sujeito. Mediado por imagens gráficas, outro kaxinawa surge no ritual de passagem de criança para adulto, via contornos mais finos e delicados, diferentes dos traços grossos que antes o adornavam. Assim registram etnógrafos que estudam esses índios.

Não podemos saber o que se passa na cabeça de alguém se ele não se deitou no nisso divã, já nos advertia Lacan ao estudar Joyce e sua obra, pois só temos acesso ao que sobra do ato criativo, a produção final, os restos, as ruínas que tombam na folha em branco. Mas sabemos que um escritor quando escreve sai da protetora estagnação estéril em que estava imerso para lamber, sem risco de vida (ou de morte, como agora se diz), a total falta de fixidez que o ameaça; o meio-termo é a escrita.

Aí indivíduo e autor realizam trocas com relativa segurança em seus respectivos lugares, o que era antes e o que passa a ser durante e depois se interpenetram, à total anarquia sucede uma temporária organização: o “desenho verdadeiro” começa a ser delineado. O que parecia só tautológico (o que faz um escritor? Escreve, ora!), é mais: o escritor se escreve e se inscreve no mundo. Linha por linha, alinha o que lhe parece/soa desalinhado, na nova leitura de si. Ao contrário do detetive, nada procura: acha, se encontra.

Na voluntária óbvia primeira pessoa (aí talvez seja onde ele menos se revela) ou refugiado no aparente distanciamento da terceira, ele, ainda que de maneira inconsciente, sensível aos ruídos internos, em atenção flutuante (a escuta atenta, objetiva é surda), desova suas dores, exorciza o horror pelo qual se sente atraído, seu lado b, aquele insalubre da vida, do que poderia ser, mas não é. Sem esquecer a multiplicidade de vozes que perfazem o seu território cultural, até porque elas que o constituíram, primordialmente. Embora alguns pensem que produzem efeito sem causa, que criam do nada, essa costuma ser sua teimosa versão.

Madame Bovary c’est moi, dizia Flaubert. Um romance pode ser o mais autobiográfico dos textos. Sem  correspondência linear, não confundir, apenas cartografia peculiar de outras trajetórias possíveis. Numa entrevista, à pergunta O que existe do protagonista em Silviano Santiago?, o autor assim respondeu: "Tudo e nada. Se eu descrever o personagem por substantivos abstratos (sedutor, ambicioso, perdulário, canalha, etc.), tudo. Se descrever o personagem pelas ações concretas que ele vivencia no romance, praticamente nada. Ficção é o salto do abstrato da experiência para o concreto da trama romanesca. Entre um e outro, a imaginação em delírio”.

Ana Guimarães

7 comentários:

  1. Como sempre, Ana, excelente texto. Abraços, Pedro.

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  2. Cá de mim eu digo, sem qualquer pretensão de acertar, que a Literatura tem seus próprios e indecifráveis fins. Rendo-me à ela.
    Bom te ler Ana, sempre.

    Beijos

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  3. Texto maravilhoso!Parabéns Aninha, estava com saudades!
    Sempre bom te ler
    Elane
    Meu e-mail válido:elane_tomich@oi.com.br

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  4. "A literatura enganaria o tempo ou, ao contrário, por fazer as pessoas pensar as faria envelhecer de fato?"

    ???

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  5. Amigos Pedro, Tere e Elane: os agradecimentos de sempre, de coração.
    Taninha: obrigada pela leitura e comentário em forma de interrogação. Transcrevo um que acabo de receber via e-mail, a propósito dessa questão: "Dá para pensar, muito bom.
    Num primeiro momento acredito q a literatura produz um frescor mesmo no leitor-ancião.
    O escritor pode fazer diabruras, como as crianças, ter a leveza dos jovens, enfim continuar vivendo muitas idades por meio de seus personagens. Mas penso q é apenas uma possibilidade, alguns envelhecem, o texto até se transforma. Dificil saber, mas pensar não custa..." Pensemos pois, não há uma resposta.
    Beijos

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  6. Escrevo. E pronto.
    Escrevo porque preciso,
    preciso porque estou tonto.
    Ninguém tem nada com isso.
    Escrevo porque amanhece,
    E as estrelas lá no céu
    Lembram letras no papel,
    Quando o poema me anoitece.
    A aranha tece teias.
    O peixe beija e morde o que vê.
    Eu escrevo apenas.
    Tem que ter por quê?

    Leminski, Paulo

    A poesia é mesmo um luxo necessário, não?

    E por fim, Silvano Santiago com o seu tudo e nada, é um primor.

    Posso testemunhas que andei passeando pelo seu texto, sonhando, refletindo, e colocando o meu lado B sob seus holofotes. Beijos e obrigado.

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  7. Querido amigo, muito obrigada! Fico felicíssima com a sua presença aqui!
    Beijo

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