domingo, 14 de agosto de 2011

DEPOIS DA MORTE* - uma homenagem


Hoje é a terceira vez que venho ao apartamento depois da morte de meus pais, há quinze dias mais ou menos. Nas duas primeiras não tive tempo sequer de olhar com mais atenção ao redor, preocupada que estava em pegar documentos com urgência para procedimentos burocráticos da ocasião. Agora venho também atrás de mais alguns, só que vou procurá-los com calma, não tenho idéia de onde estejam nem estou afogada na pressa de encontrá-los. Na verdade, aproveito para saborear ecos do passado.

À luz de um abajur (a de cima, do lustre, queimou), tomo fôlego para embarcar nesse túnel do tempo, suportar as vertigens que me esperam ao me deparar com lembranças e reminiscências que povoam o espaço, hora solitária que não posso nem quero dividir com mais ninguém.

Da sala arrumada como se esperasse visitas, um inebriante e familiar cheiro de comida caseira sendo refogada na vizinhança quase me faz perguntar: o que é que vai ter pro jantar? Na cozinha, o silêncio. Tampa de fogão arriada. Tudo limpo como a faxineira deixou, só um pó fino que teima em penetrar pelas frestas das janelas e em tudo se depositar. O insistente e delicioso aroma que me invade as narinas transporta-me às delícias culinárias de minha mãe, nosso único ponto de identificação, mesmo assim tardio e com atritos: ela nunca se conformou com a invasão, senão superação de seus domínios pela filha mais afeita aos livros do que a qualquer outra coisa, que quando se casou nada sabia dessa prática e em pouco tempo a dominava, entregando-se de corpo e alma à culinária, fora os outros interesses que permaneceram.

Perco-me em memórias olfativas e gustativas que logo carreiam as visuais: o peixe frito da feira de 4ª feira, até hoje no mesmo lugar e no mesmo dia. Os incomparáveis bifes acebolados. O pernil de porco assado no Natal. O bacalhau da Páscoa. Sonhos polvilhados com açúcar e canela do lanche no meio da tarde. O imbatível bobó de camarão das festas de aniversário. Era uma cozinheira de mão cheia, daquelas que só sabem cozinhar com fartura, embora gostasse de alardear que era econômica porque considerava isso uma virtude e gostava de ser – ou de se pensar, ou ainda de ser vista como – virtuosa. E só usava ingredientes de qualidade, ficava doente quando dava sua receita a alguém e via esse alguém modificá-la, adulterá-la, visando um menor gasto.

Volto pelo corredor, com todo o barulho interno contrastando com o silêncio exterior, e no meu antigo quarto de solteira abro a escrivaninha com a fechadura emperrada, detendo-me em papéis que há muito não são mexidos. A poeira me faz espirrar sem parar. Um gaiato, de algum lugar, grita saúde. Respondo amém, rindo, em meio a mais espirros. De uma grande caixa amassada de papelão saem reclames os mais diversos, guardados não sei para que, os números de telefone ainda com sete algarismos. Meu convite de formatura, um santinho da primeira (e quase última) comunhão, uma tela desbotada, pintada por mim na aula de arte, uma tapeçaria não terminada, retratos em preto e branco. Na estante, minha coleção de Monteiro Lobato.

Empurrando com o dedo a porta apenas encostada, sinto-me como uma criança invadindo o quarto dos pais na sua ausência, violando sua intimidade. Quase posso me ver menina, brincando de mulher adulta, sapatos de salto alto, colares, batom vermelho borrado na boca infantil, bolsa maior do que eu (de couro de cobra morta na fazenda do meu avô), uma echarpe de plumas ainda não ecologicamente incorreta. Tudo isso está aqui, na minha frente, quieto, mudo, mas falando tanto!... remetem a um tempo até anterior a mim, quando só se ia ao centro – à cidade, como se dizia – de chapéu, luvas e meias finas. E de bonde. Era chic.

No armário de mamãe, entre cabides de soutache, velhos óculos de grau e uma pesada bola de marfim para cerzir meias descubro um baú cheio de cartas de amor de um para o outro. Jamais soube de sua existência, e minhas mãos se revestem de um respeito inimaginável ao tocá-las. Tamanho, que depois de ler o primeiro parágrafo da primeira resolvo fechá-la e ficar só – por enquanto – contemplando os envelopes sobrescritados. Aqui se trata da correspondência entre duas pessoas distintas, um homem e uma mulher, e não mais de meus pais. Recoloco com reverência o baú, como se fosse uma urna mortuária com cinzas dentro, no fundo da gaveta onde estava, como um tesouro escondido. Mais pra frente virei redescobri-lo. Não se pode viajar por vários países de uma só vez, a cabeça rodopia e você confunde tudo. Muita informação ao mesmo tempo.

Na cômoda de papai, apetrechos masculinos largados, com displicência, como se o dono fosse ali e já voltasse: um barbeador prateado em seu estojo original, com nota fiscal, garantia e instruções de uso. Um pente de osso. Uma velha câmera kodac em excelente estado. Moedas as mais diversas, num saquinho de feltro. Uma calçadeira e uma piteira. Dessa me lembro bem: um amigo a presenteara, recomendando que a usasse com freqüência para reduzir a assimilação das substâncias nocivas contidas no cigarro. E junto com elas o gosto, o prazer de fumar, brincava papai. E o que ele fazia? Era só o amigo chegar de surpresa (é, isso acontecia), e ele pegar a bendita piteira e aparecer na sala como quem não quer nada, fumando seu cigarrinho devidamente encamisado, quer dizer, protegido. Impostura? Fraude? Não. Mentira que dizia a verdade. Um agrado, um mimo ao amigo, que ficava superfeliz e agradecido, crente que fizera uma boa ação. Que o presente emplacara. Que fora de muita utilidade. E fora, só que de outro jeito, para diverti-lo.

Não, ele não queria ser poupado dos estragos do fumo. Da pulsão de morte agindo, desse gozo. Que acabara, inclusive, conduzindo-o a um enfisema pulmonar progressivo que o faria passar, mesmo sem mais fumar, os últimos anos de sua vida dependente de uma bala de oxigênio instalada à cabeceira da cama. E quando ficava algum tempo sem, era horrível. A boca aberta como um peixe fora d’água, se debatendo, tentando respirar, com a gente impotente à sua volta.

Abrindo o emperrado gavetão inferior, no meio de tantos postais por ele recebidos, sinto a pele arrepiar e rodopiar a cabeça, precisando sentar-me para ler um amarelado cartão, datado de priscas eras. Na frente, um desenho de uma criança com um bebê de proveta nas mãos. Dentro, os seguintes dizeres, com minha letra miúda: pai, já sei como se faz um filho! É só criá-lo com o mesmo amor com que você me criou. Feliz dia dos Pais, sua filha querida.

Ana Guimarães

*Já publicado em http://www.saldaterraluzdomundo.net/literatura_contos_.htm e http://www.blocosonline.com.br/literatura/arquivos.php?codigo=temdomes/2006/08/pai/tempro02.php&tipo=prosa





6 comentários:

  1. Puxa, parabéns por tão bela e singular história! E pelo exemplo e motivação a todos nós, os cujos pais estão vivos e os que falesceram pra mostrar que é assim, diz minha mãe que essa ordem seria a natural, embora hoje em dia eu nem saiba mais o que é ordem. Mas um dia uma pessoa cuja mãe acabara de falecer me disse: a gente nunca acha que mães morrem, mas morrem! Pais e pães´´ também! Tocou fundo e percebi que, mesmo racionalmente sabendo e esforçando pra sempre lembrar, é-me impossível sequer imaginar porque dá a sensação de que atrai ou algo ruim assim. Emocionalmente, não sei acreditar que pais morrem. Não! Não os meus!

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  2. Ana,

    Essa experiência de retorno aos pertences dos pais falecidos é muito forte.
    Eu já passei por isso e Você o descreve com letras e sentimentos.
    Abraço
    Luiz Ramos

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  3. Sobre episódio naturalmente doloroso, reflexões perfeitamente disciplinadas.
    Verdadeira peça literária, este post, Ana.

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  4. "um tesouro escondido. Mais pra frente virei redescobri-lo"
    O mesmoa contece ao ler-te Ana. redescobrimos tesouros depostos em palavras.

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  5. Rose, Tania, Luiz, João (quanto tempo! Você não está no Facebook?) e Tere: muito obrigada pelos comentários, generosíssimos.
    Beijos, meus leitores amigos!
    Ana

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