sexta-feira, 1 de maio de 2009

Primavera de 2009 na Europa – Veneza

Se aquela luz, no entanto, emprestasse o pincel
a um poeta qualquer, eu tentaria agora
fazer que retivesse o retrato cruel
daquela intensidade que nunca se demora,
que atinge o auge um belo dia e vai-se embora
(Bruno Tolentino)

foto de Ana Guimarães
Assim que desembarcamos na Stazione Veneza-Santa Lucia tomamos um vaporetto, o meio de transporte mais usado na região, um barco originalmente movido a vapor, daí o nome. Navegando pelo Grande Canal, principal artéria aquática, em forma de um S invertido, revejo a imagem que se recusou a evaporar-se com o tempo ou a própria mente a embalsamou para ressuscitar um dia. As águas dançam à minha frente num baile fulgurante.
Ouço o que me diz o vento, nada estrangeiro (até porque, sendo carioca, o forte cheiro de maresia faz com que me sinta em casa): eis sua outra ‘cidade maravilhosa’! Seu lar agora é aqui, no Bella Venezia, um palácio do século XVI totalmente preservado, a poucos passos da Ponte Rialto e da Piazza de San Marco.
Saímos a caminhar pelo labirinto de ruelas e mini-pontes, essa confusa geografia de Veneza é, em si, uma atração. Deixamo-nos seduzir pelas vitrines, adquirindo lembranças (as máscaras carnavalescas de porcelana pintadas à mão, dos mais variados desenhos e tamanhos cabem em qualquer orçamento), em meio a uma ondulação de pessoas falando outras línguas. Todas de passagem – como, aliás, estamos na vida – invadindo pátios, calçadas, escadarias.
Rialto é uma festa democrática da qual até as gaivotas participam. Diferente da Ponte Vecchio de Florença (onde a ourivesaria impera), além de lojas de artigos populares e barracas de camelô em profusão tem até um mercado ao ar livre. Entrego-me, embriagada, aos mistérios dos perfumes que legumes, frutas e sucos exalam e de imediato se aninham na emoção.
Acertamos um passeio de gôndola, coisa que não havíamos feito em janeiro de 2000, já que pleno inverno, temperatura próxima de zero grau, elas permaneciam ancoradas, lado a lado, e nenhum gondoleiro à vista. Logo constatamos que o salgado preço (100 euros por meia horinha) não inibe os turistas: são dezenas esbarrando com a nossa, enfrentamos um verdadeiro congestionamento de ‘trânsito’, ainda bem que em silêncio, sem buzinas ou motores roncando, não é à toa que a cidade é chamada de ‘A Sereníssima’, aqui só se circula pelo mar ou a pé. Programa imperdível.
Também ninguém se importa de pagar caro apenas para sentar e tomar cappuccino num dos cafés da praça: as cores da música tingem o real da cena, mil vezes mais prazerosa do que a imaginação supunha.
Durante muito tempo Veneza foi a encruzilhada dos mundos bizantino e romano, e o conseqüente legado artístico e arquitetônico desse cruzamento está bem representado pela Basílica de San Marco; seu interior merece uma visita, mesmo para os não-religiosos. Enfrente a fila, vale a pena ver a coleção de peças de ouro, fruto de saques feitos pelos cruzados em Constantinopla.
Tomamos o elevador do Museo Correr (entrada pelo lado oposto da Basílica) até o alto do Campanille de onde se tem uma magnífica vista da laguna inteira. E tome foto! Cada uma mais linda do que a outra! Verdade que o dia, mais ensolarado impossível, ajudava a fotógrafa amadora.
Capítulo à parte é o encantador Palazzo Ducale, antiga residência e sede do governo dos doges, aposentos ricamente decorados com obras de Veronese, Ticiano e Tintoretto. Uma curiosidade: do lado de fora da Sala della Bússola está a Bocca dei Leoni, uma fresta na parede através da qual denúncias secretas contra supostos inimigos do Estado eram depositadas. Mas o ponto alto de todo o Palácio é a Sala Del Maggior Consiglio; dela saindo se atravessa a Ponte dos Suspiros (que leva às Prigioni), assim batizada pelos suspiros de Casanova, não de amor como reza a lenda, mas quando conduzido ao cárcere.
Não se pode ainda deixar de visitar a Galleria dell’Accademia (com pintura veneziana exposta em ordem cronológica) e a Coleção de arte moderna (Picasso, Kandinsky, Pollock, entre outros) de Peggy Guggenhein.
Se à noite, cansados para sair de novo, queríamos lanchar no quarto do hotel tratamos de seguir os ‘nativos’ e compramos maravilhosos pães, queijos, presuntos e vinhos italianos em panetterias, salumerias e que tais. Mas querendo jantar fora, um local aprovado foi o Vino Vino, apesar do negligente atendimento.
O dia mal amanhece e, singrando o Adriático num táxi aquático em direção ao aeroporto Marco Polo, no continente, estendo a mão, toco o instante e logro agarrá-lo, endereçando à vida, ao destino, um agradecimento. Findo o espetáculo. Agora é tudo espuma.

Ana Guimarães
PS Os dois textos estão na página de capa de hoje, 4/5, de Blocos Online, como Crônica de Viagem: http://www.blocosonline.com.br/literatura/prosa/cron/cv/cv09/090501.php

14 comentários:

  1. Viagem deliciosa. Encanto de cidade, de região. Delícia viajar com vc.
    Beijo

    ResponderExcluir
  2. Que delícia de viagem,
    e que texto!
    beijos

    ResponderExcluir
  3. Ana,
    Muito interessante!
    Ler o texto possibilitou-me vivenciar um pouco sua maravilhosa viagem!
    Aproveito para agradecer-te por ter proporcionado-me uma linda viagem.
    Abraços.

    ResponderExcluir
  4. Pôxa linda amiga,ler vc nesse bucólico feriado,me energizou!
    Ternura toda del Mondo!

    Bzus nas criaturas lindas que família sua formam!

    Bezuuuuuussssssssssssssssssssssss

    ResponderExcluir
  5. Ana,

    Eu adoro seu estilo de prosa e poesia, mas, confesso que seu jeitinho especial de escrever crônicas me pegou com todas as letras pela naturalidade das imagens que se produziram em minha mente e coração quando lia esta crônica com cheirinho de maresia, onde o barco (ou gôndola) é movido a encantamento.

    Beijos, Madá

    ResponderExcluir
  6. Querida Ana,

    Muito bom ler e "reviver" momentos...principalmente o passeio de gôndola.

    Obrigada!

    1 Bj*
    Luísa

    ResponderExcluir
  7. Ana,
    Embarca-se e sente-se em detalhes, tamanha fidelidade narrativa, como sempre, tudo de bom!
    Beijos
    Saudades!

    ResponderExcluir
  8. Você pode, perfeitamente, se especializar em crônicas de viagem. Falou da querida Ponte dos Suspiros, falou da espuma e do tempo que passa. Uma nota melancólica, como a própria riqueza da cidade que se esvaiu, e agora vive também de suas lembranças. Espero que também tenha tomado um Bellini. Obrigado pelo presente. Beijos.

    ResponderExcluir
  9. A terra de meu pai, a Itália, embora ele seja do Sul, nas proximidades de Nápoles.
    Ainda farei esta viagem, está marcada em meu calendário afetivo.
    Ótima a crônica, me fez viajar um pouco, acima destes dias normais.
    Tim-tim pelo vinho italiano, montepulciano, chianti ou barolo. Todos são muito bons.

    Beijão.

    Ricardo Mainieri

    ResponderExcluir
  10. Amo a Italia! Mas acho que eu jah disse isso, rsrs!

    Abs,

    ResponderExcluir
  11. Ahh...Ana, que delícia sentir Veneza através da sua observação!!!!
    Amei!!!

    Ciao!!
    Baccio

    ResponderExcluir
  12. Agradeço os comentários dos amigos, verdadeiros presentes. Muito bom saber que proporcionei bons momentos aos meus queridos leitores.
    Beijos

    ResponderExcluir
  13. Querida amiga ANA
    Nesse final de semana terei tempo para ler e comentar. Estou sentindo falta disso ao abrir os BLO´s e não ter tempo nem para ler. Fico com aquela sensação de estar perdendo. Mas sei que é só por uns dias, de quando em quando tenho um pouco mais de tempo livre.
    Desejo que estejas bem. Pelo que constato estás inspirada e com uma excelente, como sempre produção. MAS RENOVADA..
    Bejos
    Saly

    ResponderExcluir
  14. Muito obrigada, Saly. Venha quando puder, no seu tempo.
    Beijo

    ResponderExcluir