quinta-feira, 27 de novembro de 2014

TRAUMA

Foto de minha autoria. Berlim, 2012.
                 TRAUMA
Andas a me espionar, bem sei, mas não ligo, ou ligo cada vez menos. No escuro da manhã eu saio para pedalar e você só reclama. Não se demore, dizolhos cheios de assombro ainda que sonolentos. Isso é hora de se exercitar? Aposto que ainda não tem ninguém nas ruas. Por que não faz academia, como todo mundo que conheço? Logo vai clarear, retruco, e quando estiver voltando do meu giro pela cidade dezenas de ciclistas estarão saindo de casa como formigas deixando o formigueiro, rompendo silêncio e solidão, esculpindo com suas silhuetas uma nova arquitetura urbana.
Mas você não quer saber. Olhar oblíquo, perscrutador, me espera. Sempre com cinco bocas interrogando onde fui, qual o trajeto de ida e volta, por que me demorei tanto, se parei em algum lugar, encontrei alguém conhecido. Epor mais que explique que aconteceu da corrente quebrar ou do pneu furarnão o convenço. Às vezes penso que enlouqueci também porque não convenço nem a mim mesma. Como se a verdade tivesse que ser convincente, como se ela viesse fantasiada de tal maneiracom tantos imprevistos e absurdos que ninguém mais acreditasse, enredada de tal modo que parece mentira. 
Rio de suas desconfianças e você se enfurece, avança sobre mim, a mão em riste. Choro, e você se acalma. Já me exasperei com isso. Hoje ignoro o incômodo que ainda representa, pois o prazer tudo suplanta. Pedalar, rosto ao vento, sensação de liberdade, nem que seja por instantes. Só ouço, de vez em quando, o eco tímido de um chega preso na garganta, que nunca se efetiva. Continuo a engulir mais essa tentativa de me aprisionar em seus medos e apreensões cobertos pelo manto da razão.
Parar de dirigir é outraCom um prodigioso raciocínio tenta me provar que devo vender o carro e andar de táxi. Que a autonomia promovida pela direção é ilusória, a responsabilidade e o risco imensos. Vidros levantados, bolsa escondida debaixo do banco do carona, não comprar nada nos sinais, não me apiedar de nenhum pedinteter cuidado com falsa blitz, ufa! Acho que você anda assistindo muitos telejornais, essas coisas acontecem, mas não posso deixar de viver, trancafiada em casa, e só falar nesse assunto noite e dia.
Desde o assalto da minha mãe. A vítima nem reagiu, disseram as testemunhasVocê, no entanto, não acreditou. Nem se o bandido viesse agora e jurasse que ela não fez nada, nenhum movimento, ficou passiva esperando que ele levasse o carro e a deixasse em pazMais do que para aceitar, você precisa de um motivo para entender o que houve. Sempre nos culpando de tudo o que acontece, mergulhado em seu mundo onde o lógica prevalece. Como defesa, proteção. Apenas se esqueceu de avisar à morte para entrar no esquema.

 Ana Guimarães

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