quinta-feira, 4 de abril de 2019

Sonho meu

SONHO MEU

Adivinhara sua presença, mas quando a vi não acreditei, estaria sonhando? Não me belisco, toco em seu pelo de leve, no temor de que o toque possa dissolvê-la, sua imagem, minha alucinação? Por um breve minuto cruzamos o limiar entre o mundo-como-tal o mundo-como-idéia. De repente ela se afasta, busca espaço para se alongar, como um gato. Estica primeiro as patas dianteiras, depois as traseiras, empinando o rabo, o focinho quase beijando o chão. Parece bocejar. Caminha para longe, porém dentro da minha vista (e eu da dela, evidente, todo amor é recíproco). Lá repousa o corpo com graça, cabeça erguida, olhar altivo, a desprezar a continuação do carinho, independente alma felina, teria assim ressuscitado? Ou seria um caso de vida paralela?

Se ela não me assustava nem quando, repreendida, ameaçava me morder, não seria agora, não importa em que dimensão esteja. Seus olhos brilham na escuridão do quarto. A pequena poça junto à janela obriga-me a levantar para pegar um pano de chão real que enxugue o xixi imaginário, ralhando com ela, que foge, se escondendo. Lavo as mãos na esperança de que a porta do banheiro seja empurrada, a qualquer momento, como outrora fazia, pedindo desculpa, oferecendo companhia.

Volto ao silêncio da noite, ainda esbravejando, para encontrá-la na cama, enovelada nas cobertas. Enche-me de lambidas, que eu termine com a zanga. A comoção é simultânea à coragem do tira-teima: um toque no interruptor do abajur e nada. Apago a luz decidido a dormir, a barrar essa obsessão que persiste e insiste, contudo logo a ouço divertindo-se sozinha com brinquedos de borracha, especialmente os que fazem barulho. De volta à ilusão. Melhor assim, de que serve o canteiro de rosas intacto, sem as suas investidas? A roupa estendida no varal, a salvo, secando? Comer sem ela ao lado, implorando migalhas? Sair (ou chegar) sem ganidos e latidos? E Justine, onde está, chorará por mim? Seu choro é tão justo e comovente quanto o de um homem? E se fosse um bicho inventado, feito apenas de papel e tinta, vocês se interessariam menos?

Sofro há um ano, desde que a levaram. Não é que o luto seja necessário, ele é compulsório. Não quero mais ser medicado, para que? Suas aparições, oníricas ou em vigília, continuam. Chega de pintura, desenho, escultura. Destas malditas colagens, quadrado ou triângulo, vermelho ou azul, tanto faz, para fugir do negro círculo da dor! Prefiro o nada do retângulo branco da página vazia, como já disse mais de uma vez, ninguém me ouviu. Roubei bloco e caneta, e aqui estou. Precisava contar o que (não) se passa. Relatar por escrito, prazer solitário onde se prescinde do objeto amado. Se ele não existe mais, pelo menos para mim, a fé se impõe. Fé na ficção, para torná-la realidade. A verdade não é uma flor num canteiro, esperando ser colhida – ela é efeito de palavra.

Escrever é captar o que não existe. Uma outra modalidade de organização de sentido. Vontade criando possibilidade. Mágica, ilusionismo. Finjo a dor que deveras sinto. Um texto vive per se, e tem vida eterna. Aqui estou sem mim, sem ti, mas feliz com esse fantasma. Puro instante. Sem passado (lembrança de presença), sem futuro (expectativa de ausência), só assim não dói. Se crio poemas, crônicas, contos posso recriar meu animal de estimação. Transfiro os cuidados que tinha com ele para os cuidados com as letras, um enlace substitutivo, onde salvo memórias da experiência. Minha cadela morta, ou distante, em mãos alheias, quase dá no mesmo, é como uma sombra que tento trazer de volta, torná-la apreensível. Chego na fronteira, chamo, e ela atende, vem. Um sonho louco, mas qual não é? 

Ana Guimarães

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